«Ao ouvirem estas palavras, todos ficaram furiosos na sinagoga. Levantaram-se, expulsaram Jesus da cidade e levaram-n’O até ao cimo da colina sobre a qual a cidade estava edificada, a fim de O precipitarem dali abaixo. Mas Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho.» [Lc 4, 28-30]
Como nos é narrado no capítulo quatro do Evangelho de São Lucas, Jesus é recebido com hostilidade e desconfiança na Sua própria terra. A este propósito, disse o Papa Francisco que os conterrâneos de Jesus «queriam milagres, sinais prodigiosos», mas Jesus «apresentou-se como não esperavam».
É desarmante este jeito de Jesus. Também a mim me desconcerta que Se apresente na minha vida como e quando menos O espero. E, por isso, constantemente identifico, no meu dia a dia, a minha fácil adesão àquela multidão que, furiosa, expulsa Jesus da cidade. Junto-me a essa multidão quando, na relação com o próximo, não me liberto das minhas vontades e não me revisto de humildade para acolher a diferença e a mudança no outro. O que sou, sou-o em relação, e, no entanto, vejo-me demasiadas vezes a tentar anular como o outro se me apresenta, impondo a soberania dos meus quereres.
Tanto o eu como o outro vamos mudando, com cada dia vivido, cada instante rezado, cada sofrimento acolhido, cada alegria anunciada, cada decisão tomada, cada fragilidade assumida. E estas mudanças (algumas delas tão violentas) transformam a nossa relação. Se não tenho um coração aberto e uma humildade que aceita não se cumprirem sempre as minhas vontades, posso, até inconscientemente, com o passar do tempo, começar a ver com hostilidade essa ligação, esse outro. Se não sou capaz de me colocar no coração do outro, se não procuro ver a realidade através dos outros olhos que também a olham, posso estar a empossar a minha razão de um despotismo arrogante. E tudo isto há de fazer com que o desânimo e o abandono sejam as vozes mais gritantes do nosso vínculo. Nesse momento, estarei a levar Jesus para o cimo do monte, para O precipitar dali abaixo; estarei a expulsá-Lo deste “nós” para me centrar no “eu”.
Reconheço a cena relatada no Evangelho de São Lucas em relações de amizade. Arrisco-me a dizer que reconheço ainda mais amiúde a cena em relações de família e comunidade, em matrimónios, em laços que vão ficando mais ténues sem os implicados disso se darem conta. Um Amor que se manifesta como não se esperava ou desejava, a incompreensão que silenciosamente leva à fúria e ao desejo hostil de não guardar espaço para Jesus quando se está com o outro, o fechar-se em si próprio.
Mas agarro-me com esperança e alento à ideia de que continua a ser Amor o que se manifesta. Mesmo que seja como e quando não o esperávamos. A multidão reage furiosa e leva Jesus para o cimo da colina, a fim de O precipitar dali abaixo. Se realmente o desejasse, tal o teria feito. Porém, como ouvi um dia o P. Miguel Pedro Melo, sj, dizer, a propósito desta passagem, «Jesus não teve dificuldade em passar pelo meio da multidão e seguir o Seu caminho porque a própria multidão se sentiu dividida».
Será certamente reconciliador voltar a olhar para uma relação que julgávamos perdida e assumir que as nossas certezas são, afinal, lugares de dúvida. Pois é onde nos sentimos divididos que Jesus encontrará o espaço para passar pelo meio. E, passando pelo meio, semeará o Bem e conduzir-nos-á pelo Seu caminho, resgatando o que, antes de o ser, já era Amor.
Façamos, pois, caminho pelas fragilidades das nossas relações, na certeza confiante de que a Deus nada é impossível.
Suzana Mendes Gonçalves
In: pontosj.pt 14.06.23