Em todo momento histórico, quando a Igreja e a sociedade são sacudidas por grandes mudanças, surgem homens e mulheres que rompem com esquemas e seguranças envelhecidos e se deixam conduzir pelo Espírito ao deserto, às margens, às fronteiras... fugindo de um ambiente e de uma ordem asfixiantes. A fronteira, para eles, passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo” por obra do Espírito.
Ali aparece o broto germinal do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida. Ali descobrem-se traços nunca antes vistos da pessoa de Jesus, ao olhá-lo agora a partir de uma situação inédita. Uma vez descoberta a fronteira, situar-se nela passa a significar colaboração respeitosa com o Deus presente e ativo em toda situação humana. Isso vai gerar uma maneira nova de viver, um estilo de vida, um compromisso diferente, uma ação carregada de ousadia...
Foi num contexto assim que surgiu a figura de S. Inácio, o “peregrino” que ia buscando a pé e coxeando pelos caminhos da Europa, o futuro que Deus lhe oferecia. Este caminho não o conduzia somente à fronteira, mas ao futuro, ou seja, não se tratava somente de romper com a ordem presente, mas de distanciar-se dela para experimentar a novidade de Deus no meio deste mundo.
A experiência de Inácio começa em Loyola (1522), num momento histórico caracterizado, de um lado, pelo desmoronamento de fronteiras seculares (grandes descobrimentos) e, de outro, pelo surgimento de novas fronteiras ideológicas, políticas, religiosas... Inácio chega a Loyola, ferido e humilhado por defender fronteiras políticas, mas ambicioso por continuar conquistando outras.
Diante da leitura de “Vita Christi” desmoronou-se sua própria fronteira pessoal, aquela dos “grandes e vãos desejos de ganhar honra” (Aut. 1), que, de repente se vê rompida e invadida por Deus. Tudo começa a ser percebido como novo: “...lhe pareciam novas todas as coisas” (Aut. 30).
A partir de agora as velhas fronteiras geográficas e políticas pelas quais Inácio lutou apaixonadamente, serão substituídas por outras, aquelas do coração humano. A conversão, para ele, passa a significar experiência de fronteira: rendição de uma fortaleza, troca de bandeira e de senhor no próprio coração; desalojamento dos falsos senhores de seu interior e oferecimento de sua pessoa ao “Senhor”, que se dá no seguimento, ou seja, vontade de situar-se com Ele nos “extremos” humanos.
Quando S. Inácio vivia movido “por um grande e vão desejo de ganhar honra”, foi criador de fronteira. A partir do momento em que Deus invade as suas fronteiras e ele se descobre encastelado, seus olhos se abrem para contemplar “toda a grande extensão e a curvatura da terra cheia de homens” (EE. 103) fechados em infinidades de estreitas fronteiras (escravidões, necessidades, mortes...). A partir desse momento, brotam em seu interior “vivos desejos de ajudar o próximo”, isto é, de eliminar suas fronteiras.
Contemplar o olhar de Deus sobre a terra cheia de homens – isolados, entrincheirados sobre si mesmos nos minifúndios de seus egoísmos – é para Inácio experiência definitiva. A partir de então, situar-se nas fronteiras da humanidade e buscar a comunhão universal será sua nova visão, seu lugar teológico, sua nova missão...
“Ajudar as almas” passa a significar, desde então, descer com Deus às fronteiras que a humanidade levanta frente a si mesma e frente a Deus: fronteiras de morte, divisão, ódio...
Na realidade, da experiência de Inácio não brota diretamente uma estratégia de fronteiras, mas um homem internamente reconstruído, com vontade de situar-se ali onde algo limita, empobrece, degrada... ou simplesmente comporta alguma carência na condição própria do ser humano.
“Servir nas fronteiras” se traduzirá numa necessidade interior de contemplar o ser humano em seus “extremos” e de se comprometer com ele, para abri-lo à vida. A História, em sua densidade divina, será lida como “chamado” e será respondida na disponibilidade pessoal para o encontro, a presença e a entrega.
Além disso, o que brotou da própria experiência de Inácio foi a preocupação pessoal por formar pessoas capazes de mover-se por “vivos desejos da salvação do próximo” e, por isso, de arriscar-se nas múltiplas e variadas situações humanas de fronteiras. A importância que Inácio dá ao “desejo”, que alarga o ser humano para além de si mesmo, tem também aqui seu lugar. Descobrir os melhores desejos na pessoa, apoiá-los, alimentá-los, ajudá-los a crescer... é a melhor forma de libertá-la de suas limitadas fronteiras.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI