Se os seres humanos são seres de palavra e linguagem, não há como negar que o silêncio é parte constitutiva da nossa identidade. Sendo uma opção livre, é objeto de desejo e não de necessidade. Trata-se de algo que não pode ser imposto, mas deve, sim, ser conquistado por todo aquele ou aquela que a ele se abre voluntariamente.

 

Todo silêncio desejado implica um processo longo, delicado. Sua área de pertença é a disciplina, a ascese que faz o homem ou a mulher não se contentar com estímulos externos e superficiais, mas voltar-se para o seu interior e ali procurar, para dilatar e ampliar, seus espaços interiores e sua vida espiritual.

 

Porque somos seres de palavra, frequentemente expostos a ruídos, comunicações e estímulos diversos, essa disciplina pode ser exigente, até mesmo heroica, e ir fortemente contra nosso gosto imediato. Aprender a viver em silêncio durante longos períodos é condição de toda experiência iniciática profunda, podendo conduzir à experiência direta da autotranscendência, que configura nossa identidade de seres finitos chamados à infinitude.

 

O silêncio, no entanto, não é um fim em si mesmo. Dentro do entendimento da fé e da espiritualidade cristãs, o silêncio é a condição necessária para que aconteça, em nós, o verdadeiro diálogo e, a partir de nós, ressoe no mundo a verdadeira palavra.

 

Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio – na sua modalidade completa de 30 dias feitos em silêncio rigoroso, quebrado apenas pelas conversas com o diretor – dão bem a medida da importância dessa prática, pois o que deseja o grande mestre espiritual, fundador da Companhia de Jesus, é que o exercitante vá, pouco a pouco, libertando-se das vozes e ruídos que povoam e desorganizam seu interior, a fim de que a voz de Deus ali possa ressoar plenamente.

 

Ensinado e conduzido pelo silêncio, aquele que faz os Exercícios luta, sobretudo durante os primeiros dias, para calar as vozes interiores que o distraem, dividem, desorientam. Mas começará, progressivamente, a ouvir melhor, a distinguir os movimentos interiores e as moções do Espírito Santo. É, então, que as palavras e os ruídos se calam e pode emergir a Palavra – luminosa, pacífica e forte – que inaugura mundos, engravida virgens e transforma desertos em jardins.

 

Gestada no ventre fecundo do silêncio, essa Palavra tomará por inteiro aquele ou aquela que medita e contempla e o irá configurando ao Criador de quem é imagem e semelhança, ao Redentor que deseja imitar e seguir. No interior silenciado pelo Espírito, começará, sempre com sabor de novidade imperecível, a Nova Criação.

 

Maria Clara Bingemer

In: Em Companhia jan/fev 2018