A primeira das seis propostas que Italo Calvino faz para o próximo milénio (este que estamos a viver) é a reconquista da leveza. Se tudo no tempo parece empurrar-nos com ilimitada gravidade para a rasura, temos de entender, então, a leveza como o ato de contrariar esse peso. De fato, somos chamados a “aliviar” a espessura de tudo aquilo que obscurece o texto do mundo e nos obscurece. A leveza é uma espécie de pacto a estabelecer com a transparência. E, progressivamente, deverá tornar-se um estilo, uma dicção, um modo esperançoso de habitar a nossa história.

 

Com Calvino aprendemos duas coisas importantes sobre a leveza: a primeira de todas é que ela nos pede uma arte de resistência, pois só reconquistamos a leveza a custo de uma paciente luta (a maior parte das vezes connosco próprios); a segunda é a necessidade de ativarmos a nossa capacidade de deslocação (na verdade, só um olhar peregrino possui a agilidade espiritual para não se deixar sequestrar pelo desânimo).

 

Fixemo-nos na primeira: uma atitude de resistência. A leveza convoca-nos para a redescoberta das fontes profundas e adormecidas do nosso Ser e da linguagem. Num mundo de ruído, de mensagens que se atropelam, de imagens que se devoram (e nos devoram) de tão repetidas e sobrepostas há que combater a banalização. Mergulhados num excesso de signos, nem nos damos bem conta da pobreza simbólica com que construímos, dia a dia, a nossa vida. Tornamo-nos mais consumidores, que criadores. A nossa ação confunde-se com um automatismo que renuncia à vocação que o gesto, a palavra ou o silêncio têm de impregnar o mundo de sentido. Precisamos de leveza, então. Isto é, de exatidão. Sim, não se pense que a leveza é simplesmente uma forma mais ligeira de conduzir a realidade, pois ela nada tem de ligeireza ou de superficialidade. Com razão, Calvino cita um verso de Paul Valéry: «É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma». «Leve como o pássaro», quer dizer, autêntico, preciso, consistente. A leveza não tem a ver com plumas, mas com a aprendizagem do que é voar, do que é ascender, do que é desprender-se para ser. A leveza é uma escolha.

 

A segunda tarefa passa pela sabedoria de não ficar aprisionado a um modo único de olhar a realidade. Italo Calvino explica-a deste modo: «Cada vez que o reino humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que […] eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle». A leveza desafia-nos não a mudar de vida ou a romper com aquilo que estruturalmente somos. Pelo contrário, ela supõe uma aceitação. Mas incita-nos incessantemente a olhar a realidade quotidiana com olhos novos. Escrevia Saramago na conclusão do seu “Viagem a Portugal”: «Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: “Não há mais que ver”, sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite… É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem…».

 

José Tolentino Mendonça