“Blindar” provém etimologicamente do indo-europeu blend, que significa confundir, tornar indistinto, daí passando para o inglês “blind”, cego. A blindagem ocorre não somente como estratégia militar, como reforço de segurança para veículos e residências, mas também podem se blindar sentidos sensoriais, perceptuais socioafetivos. Daí a expressão do cabeçalho: a surdez blindada é o “nó cego” da proteção armada, é o brinde da demonstração de poder.
Ela é bem retratada em “Avatar”, o filme. Lembrem-se do general que, de dentro de sua máquina – clone potencializa sua fúria destrutiva, egoísta, pondo abaixo e queimando tudo que encontra pela frente. Este é o furor típico de quem já perdeu, e que, mesmo assim, não admite derrota. Em sua ânsia por controle, o tirano é deficiente em sua percepção da vida, desenvolve daí aversão a ela. Da falta de fé, desenvolve a má fé totalitária. Vinga-se na natureza, no outro homem. O tirano tira e atira, mente e destrói. Tira o ‘nós’ da vida conjunta. Tira-nos do sério. Seu legado é a destruição total. “Depois de mim, o dilúvio”, diz.
“Avatar” significa originalmente “descida”: que tal descermos finalmente ao planeta Terra? Comportamo-nos como alienígenas que querem eliminar tudo que é vida nele. “A vida é um sopro”, ensina Oscar Niemeyer, por isso tornou-se longevo. Porém, sopro é vida, sopro da vida que só se dá como troca, obra, doação. Vida é a respiração do Eterno. Enquanto o tirano deixa para trás rastros de destruição arquitetada, o verdadeiro artista se eterniza por deveres bem cumpridos. Sopro gera devir de Casa, só (a) tirar garante lixo e sufoco. Não deixar rastros, diz a boa alma, o mundo é meu rastro, diz a alma doente.
Por trás de aparatos, artefatos, sistemas, poderes, chavões, duplicidades, escondem-se surdos e imaturos monstros da impermanência. Blindam-se corpos, mentes e seus negócios. Minha meta é tirar do cliente tudo que eu quero, sem que ele perceba, esclarece o executivo em reunião. A mentira é o blend de um roubo em andamento. Mas para iludir o cliente, precisa primeiro roubar de si, blindar a percepção de sua própria humanidade. A ilusão, motor do lucro só para si, funda a “ética” do sociopata: tirar-tudo-do-outro. Não esquecendo que é um psicopata que inventa os artifícios da sociopatia. A sociopatia é surdez blindada que vira norma.
Outras falas rotineiras demonstram este modelo de comportamento hostil, desviante, blindado. Indago uma síndica sobre a utilidade do alarme (blindex acústico da segurança) que instalara em sua garagem, assegurando a perturbação do sossego de todos nós. “Eu cuido do meu prédio, o Sr. cuide do seu”, esbraveja. “Então lançarei meu lixo no seu prédio para limpar o meu”, retruco. “Não é seu prédio, não é da sua conta”, diz a zeladora que varre a folhinha na calçada com mangueira de água. “A conta é sim de todos nós”, argumento. E o operador que anuncia com a serra elétrica a derrubada de linda árvore? “Um morador pediu, está escuro à noite”. “Mas a noite é escura, não é?”. “Que cada um cuide da própria casa”, sugere o prefeito ao ser interpelado sobre questões da violência.
O cultivo cotidiano da sociopatia por pequenos tiranos em competição ameaça a Casa de todos nós. Torna-a inabitável. Brindaremos o planeta com rastros e ruínas ou cumpriremos a respiração de nossos devires? A quem daremos força, ao tirano ou ao artista que mora em cada um de nós?
Ilan Grabe
Músico e Professor
Fevereiro 2013
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