Depois do grande silêncio quaresmal, as comunidades cristãs voltam a dizer a palavra “aleluia”. Os 40 dias da quaresma serviram para criar fome dessa palavra temporariamente interdita, para sentir o desconforto que significa sermos privados dela. Serviram para reativar em nós o desejo, para nos sentirmos em tensão. Permitiram que crescesse irreprimível ao longo dos dias a vontade de a cantar. Essa palavra é mais do que uma palavra: é uma senha. Ela resume a grande viragem pascal, a novidade que até a Páscoa de Cristo o mundo desconhecia e que agora se manifesta escancarada aos olhos de todos, o acontecimento inédito que opera a reviravolta da história. Sim, aleluia: Jesus ressuscitou e abriu, aos nossos lábios mortais a possibilidade de conjugar esse verbo (o verbo ressuscitar) que nenhum de nós acreditaria possível. É isso mesmo que relatam as narrativas bíblicas que se leem nestes dias. Enganos como as de Madalena que confundiu o Mestre com o jardineiro, são iguais aos que diariamente repetimos. Marcações de incredulidade como as que faz Tomé (“Se não vir o sinal dos pregos nas suas mãos, e não tocar com o meu dedo no lugar dos pregos, e não puser a minha mão no seu lado... não acreditarei”), estamos prontos a repeti-las a todo o momento. Perplexidades como as de Pedro que entra no sepulcro vazio e vê a mortalha abandonada, sem saber o que pensar, habitam-nos ainda agora. O ceticismo pragmático dos discípulos de Emaús que deixam para trás Jerusalém, julgando ter assistido ao ponto final de tudo, cola-se assiduamente à nossa pele. Nenhum deles sabia — como nós não sabíamos — que a morte daquele Justo, a propósito do qual o soldado que o vê a expirar comenta, “verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus!” (Mc 15:39), era afinal não o fim, mas o começo. Era, é e será “o primeiro dia”. O nosso “primeiro dia” e o do mundo. Nós não sabíamos. 

Atravessámos o drama de Sexta-Feira Santa e o silêncio do sábado sem nada entender. Sophia de Mello Breyner Andresen empresta palavras para exprimir o retumbante desconcerto que nos assalta: “Ei-lo caído à beira do caminho,/ Ele — o que partira com mais força/ Ele — o que partira para mais longe.// Porque o ergueste assim como um sinal?/ Pusemos tantos sonhos em seu nome!/ Como iremos além da encruzilhada/ Onde os seus olhos de astro se quebraram?” De fato, é aí que nos situamos, perguntando-nos “como iremos além da encruzilhada”.

“Aleluia” é uma palavra-bússola: dizemo-la porque a Páscoa irrompe decisiva como um norte. “Aleluia” é a palavra-alavanca: dizemo-la porque a Páscoa irrompe como um interminável jato de vida que nos projeta. “Aleluia” é uma espécie de alvoroço, é a vocalização de um sobressalto: entoamo-lo porque a Páscoa de Jesus transporta consigo o poder de reconfigurar o mundo, de redefinir, em chave de esperança, a esquadria do nosso destino. Ousemos neste abril tão precário dizer firmemente “aleluia”. 

Santo Agostinho, que assinou uma das mais belas reflexões sobre esta palavra, ensinava que a história do nosso destino tem duas fases: “Uma que decorre agora no meio das tentações e tribulações desta vida, e a outra que será na segurança e na alegria eternas. Por esse motivo foi também instituído para nós a celebração de dois tempos, aquele anterior à Páscoa e aquele que lhe sucede. O tempo que precede a Páscoa representa a tribulação na qual nos encontramos; aquele que se segue à Páscoa representa a felicidade que gozaremos. (...) O aleluia que dizemos por enquanto é como o canto do viandante; todavia, tendemos àquela pátria onde (...) tudo será aleluia.”

Dom José Tolentino Mendonça

23.04.22

In: imissio.net 

Imagem: flor Aleluia - Senna bicapsularis