Há tempos coloquei esta questão a uma cliente.
 
Uma janela, é um vazio ou é um cheio?
Em Arquitetura - expliquei - é usual chamar-lhe vão, que quer dizer ‘vazio’.
Será vazio?
 
A minha cliente parou um instante a ponderar.
Ao fim de um tempo, declarou-se rendida perante a dificuldade da pergunta.
 
Claro, trata-se de um falso dilema. 
Uma janela é um vazio e é um cheio ao mesmo tempo.
 
Primeiro é um vazio na parede de tijolo, isolamento, argamassa e tinta. 
E depois é um cheio porque permite a entrada de luz, ar, e a vista de fora.
 
E com isto - tenho consciência - posso ter perdido a minha cliente.
 
É que quem permanece o tempo suficiente com este dilema consegue ultrapassá-lo. Percebe que se deve elevar para outro nível - o do paradoxo. E, aí sim, o que era uma disjunção (‘ou isto ou aquilo’) transforma-se numa conjunção (‘isto, sim, e (sobretudo) aquilo’). E, com isto, resolve-se uma das principais questões da existência humana. 
  • o despertador a tocar de manhã, é um ‘vazio’ ou é um ‘cheio’?
  • o sinal vermelho no ‘tablier’ do carro, a indicar falta de gasolina, é um ‘vazio’ ou é um ‘cheio’?
  • o alarme dos bombeiros a soar, é um ‘vazio’ ou é um ‘cheio’?
  • os sentimentos - mesmo que sejam de irritação, medo, ansiedade, saudade - são um ‘vazio’ ou são um ‘cheio’?
 
E para os mais ousados:
 
  • uma doença, um acidente, uma morte, é um ‘vazio’ ou é um ‘cheio’?
 
Claro, depende do nível de consciência com que o olhemos.
Depende do lugar a partir do qual nos relacionemos com a 'realidade'.
 
Por isso é que, pessoas diferentes, são capazes de responder à mesma realidade de maneiras diferentes.
Por isso é que, em fases ou momentos diferentes, somos capazes de ver realidades diferentes na mesma realidade.
 
Quando percebemos isto, percebemos que aquilo a que chamamos 'realidade' vem da nossa perceção - que muda assim como mudam as estações e as nuvens no céu.
 
Então, mesmo mantendo-nos no tempo presente - ou seja, agora mesmo! -, somos capazes de alterar a nossa perceção dos acontecimentos. Então porque não fazê-lo com aquilo que mais precisemos neste momento?
 
  • e se isto que sinto como uma perda importante for um ‘cheio’?
  • e se esta adversidade for um mestre, o que me quer ensinar?
  • e se acreditar que já tenho (mesmo!) tudo o que preciso para os desafios do momento presente e que o que não tenho é porque não preciso?
  • e se confiasse que tudo - tudo - o que me acontece, acontece para o meu bem mais elevado?
 
Claro, uma parte de nós, perante estas questões, pode querer mandar a Vida à m**** ou à fava. É absolutamente compreensível: corresponde à parte de nós que vive isso como 'vazio'. Aí, é-nos pedida curiosidade e compaixão.
 
Depois é uma questão de entrar em contacto com a outra parte de nós que é capaz de viver isso como 'cheio'. 
 
Que parte é essa? 
 
É essa parte que, perante as mesmas perguntas, sente um impulso de vitalidade, uma excitação do tipo: 
 
  • Pois é! 
  • E se isto for mesmo verdade?
 
Ou seja, é essa mesma parte de ti que te fez ler este texto até aqui. 
 
É essa parte que te põe em movimento todos os dias. É essa parte na qual toda a tua esperança se renova, na qual o teu coração, a tua cabeça e as tuas entranhas se voltam a alinhar.
 
É essa parte, que bem conheces.
 
Imagine-se o que seria se conseguíssemos todos olhar para este ‘vazio’ que nos habita e percebêssemos que é, em simultâneo, um cheio que nos permite conectarmos com o que há em nós e para lá de nós.
 
Imagine-se o que seria aproveitarmos cada manifestação de fome existencial, cada dor de impotência, cada sensação de incompletude ou sem sentido, e a passássemos a tomar como um momento de encontro, um impulso de vitalidade, um rasgo criativo, um resgate da conexão entre a essência e a existência!
 
O problema é ainda entendermos esse ‘vazio’ como sendo uma interferência, um obstáculo, algo que não é suposto. Um erro da criação!
 
Portanto, trata-se não tanto de uma mudança nas circunstâncias externas.
Trata-se - isso sim - de uma mudança de visão, uma mudança na forma de pensar, ver, viver. 
 
Bem mais simples do que resolver o irresolúvel. Bem mais eficaz do que milhares de anos de soluções procuradas pela humanidade para ultrapassar este problema. Bem mais rápido do que tudo o que possamos fazer para tentar fugir a esse ‘vazio’. Bem mais barato do que tudo o que possamos adquirir e consumir para tentar preencher o nosso ‘vazio’.
 
A isto chama-se Inteligência Espiritual. 
 
E por isso é que há quem diga que não há nada mais prático do que a espiritualidade.
 
Como uma casa sem janelas se torna inabitável, assim também nós nos tornamos inabitáveis quando - para tentar fugir ao vazio existencial - tentamos entaipar as nossas portas e janelas com tijolos de hiperativismo, consumismo, entretenimento, agitação.
 
O que aconteceria se todos aprendêssemos a entender cada ‘vazio’ como cheio?
Reconheceríamos que somos muito mais iluminados, mais arejados, mais visionários do que pensamos que somos.
 
Quanto a mim, posso ter perdido a minha cliente para sempre. 
 
E ainda bem.
 
João Delicado
In: verparaalemdolhar.blogspot.com 29.02.2020