Estava na casa dos meus pais e ouvi do quarto a apresentadora Sônia Abrão falar que “quem tem 5 amigos pode se considerar um milionário”. Eu já não gosto do trabalho dela – principalmente depois do modo com que tratou a morte de uma ex-aluna minha, explorando o assassinato e a miséria humana com fins de audiência – e ouvir tal sentença me deixou incomodado. Como é próprio de programas medíocres que são produzidos com a intenção de atingir as camadas empobrecidas da população e aliená-las, cria-se sempre um clima de desesperação e desesperança. Será que a amizade é algo tão raro?



O problema de postulados e sentenças como estas me parece duplo. Uma face se dá na dificuldade de comprovação. Falta pesquisa consistente que avalie a qualidade e a quantidade das amizades. A segunda diz respeito à origem dessas falácias. Geralmente elas brotam de experiências ruins, carecendo de objetividade. Um coração machucado pode muito bem turvar a visão. O fato de um grande amigo ter se mostrado mau não quer dizer que todos os outros o serão.



Eis uma das frases de pessoas feridas: “Quando a gente precisa de ajuda, não aparece ninguém”. Julgo infeliz, na maioria das vezes, tais percepções. Geralmente estou disposto a ajudar amigos e desconhecidos. Contudo, não tenho condições humanas de ligar para todo mundo que gosto e perguntar com regularidade se está bem e se eu posso ajudar com alguma coisa. A coisa mais fácil é que aquele que precisa vá buscar ajuda e não quem pode ajudar fique buscando alguém necessitado entre seus amigos. Aliás, a melhor maneira de se viver a segunda opção é se inscrevendo como voluntário de algum trabalho social ou sendo um sócio colaborador que deposita frequentemente uma parte de sua renda para tais ações. Agora, quem diz que não encontrou ninguém numa hora de necessidade, por acaso, procurou todos os seus amigos um a um?



Imagino alguém que tenha 5000 pessoas nos círculos sociais dos quais faz parte. São eles pessoas da faculdade, do trabalho, do bairro, da Igreja, do clube etc. Em cada um desses lugares, suponhamos, que esse alguém tenha 3 pessoas mais próximas, totalizando umas 21. Não obstante, sua presença pode ter criado antipatias que, somadas, resultem em 70 pessoas. Ou seja, há 4909 pessoas com as quais esse alguém tem uma relação amistosa, ainda que pouco profunda, e que lhe nutrem algum afeto positivo. O grau de amizade pode até não ser alto, mas a maioria pode estar numa disposição boa em relação a ela. De algum modo, essa massa é considerada como neutra, e as 21 amizades passam a significar 5. Ora, porque 21 vira 5? Como todo mundo tem família, trabalho, questões de saúde e cuidado pessoal etc., não dá para se fazer presente na vida de todo mundo com a intensidade que o afeto manda, mas só na daqueles que a rotina facilita a presença.



Somemos aqui o olhar ferido. Há pessoas para quem uma fala dura roube a alegria do dia. Basta um olhar atravessado para mudar a cor do dia de alguém.  Daí os 70 inimigos ocuparem mais espaço na mente de quem se sente odiado ou perseguido. Para olhares pessimistas, os amigos próximos são menos do que realmente são e os inimigos maiores. O problema aumenta com a paranoia. Imagine alguém que se isola por medo de se relacionar. A solidão somada ao medo pode adoecer as pessoas.



Talvez algumas pessoas saibam construir relações melhores que outras. Quem sabe eu não tive a sorte de conhecê-las e por isso considere ter muitíssimo mais que 5 amigos? Tudo bem que há uma gradação no nível de amizade e que não pode ser medida só pela profundidade da partilha de vida, de favores trocados ou de afetos demonstrados. Há muita variação nisso. Há pessoas a quem o carinho não se mostra em palavras ternas e afagos, mas em presença efetiva. Julgar que uma pessoa assim é menos amiga é um tanto temerário.  A ausência também pode não significar muita coisa. Afinal, quem nunca reencontrou alguém que não via por muito tempo e atou uma conversa que deixou o sentimento de nunca terem se apartado?



Melhor que a lamúria de não ter amigos é parar para pensar nas relações que se tem e atentar para uma simples realidade: quem eu quero e quem me quer bem? Lembrar-se dos rostos e das histórias vividas juntos pode trazer o conforto para a alma de que não se está sozinho. O segundo passo é ir ao encontro de quem se ama e celebrar a amizade.  Aliás, tem mais amigo quem amigo se faz.

 

Gilmar P. da Silva sj

(texto originalmente publicado no site www.domtotal.com