“Qual dos dois fez a vontade do pai?” (Mt 21,31)
Em nosso contexto social e religioso reina a diplomacia do “transitar entre o sim e o não”, ou seja, dissimular, não ser claro, nem transparente, deixar as coisas numa certa e intencionada ambiguidade. Quando é pedido um “sim” ou um “não”, costuma-se deixar levar pela “covardia do meio termo”.
De fato, há tantos modos de evitar dar uma resposta clara, de não nos comprometer; até usamos desculpas convincentes para ocultar nossa incoerência. Dizer “sim” ou “não”, é rotundo, é radical, é ser coerente.
É isso que Jesus pede de seus seguidores(as).
O texto do evangelho deste domingo (26º Tempo Comum) nos convida a entrar no significado do “sim” e do “não” na vivência do seguimento e na nossa vida.
Procuremos entender o texto em seu contexto: o povo judeu disse “sim” ao aceitar a Lei de Moisés, mas se negou, através de seus dirigentes, a aceitar a proposta de Jesus. No entanto, os pagãos e os pecadores, que primeiro disseram “não”, ao final são aqueles que aceitaram o Reino, pois se deixaram impactar pelo modo de ser e de agir de Jesus. O “sim” foi sendo modelado a partir do chão da vida e não da Lei.
Para Jesus, a fidelidade a Deus não passa pela mera observância da Lei, mas pela prática de um amor incondicional. Ele transforma o modo de nos relacionar com o Pai, fundamentado no modo como Ele mesmo vive, não como o distante Deus do Templo, mas como o Abba próximo e comprometido com a vida. Isto desmonta o pedestal de uma religião super-estruturada ao redor das normas e das leis de pureza, de impureza, de sacrifícios como pagamento pelos pecados e que foram determinados pelos hierarcas que imitam a um “deus” distante, frio, a quem é preciso acalmá-lo com oferendas, sacrifícios e mortificações.
Para denunciar esta atitude petrificada e dúbia das autoridades religiosas, Jesus utiliza o inteligente e oriental recurso das parábolas. A “parábola dos dois filhos” chamados a trabalhar na vinha do pai está dirigida especialmente à infidelidade dos dirigentes religiosos: dizem, mas não fazem; são fiéis por fora, mas incoerentes por dentro.
Jesus nos pede hoje mais valor, mais audácia, mais claridade. Quer que o “sim” esteja acompanhado da obediência. Mas, obediência a quê e a quem?
Trata-se de uma obediência filial. O senhor da vinha convida seus próprios filhos para que vão trabalhar nela. Há um filho que tem sempre o “sim” na boca. Encanta-lhe viver do favor do pai e manter uma boa imagem de filho obediente. Mas, à hora da verdade, não trabalha na vinha; dedica-se a outras coisas. É um hipócrita.
O filho que tem um “não” na boca, vai e trabalha na vinha. Não se preocupa com sua boa imagem. Trabalha na vinha a partir do anonimato, a partir da não-ostentação. Ele é verdadeiramente o filho obediente.
O Evangelho deste domingo, usando a imagem de dois filhos chamados pelo pai a trabalhar na vinha, realça o verdadeiro sentido da “obediência”: significa dar audiência a quem merece. Se sabemos que Deus nos mostra um caminho incomparável, então obedecer-lhe é o melhor que podemos fazer; obedecemos por amor e não por medo. Neste caso, a obediência já não pode ser meramente formal, do tipo “sim, senhor”. Ela será um movimento do interior do coração, ela mexerá com o nosso íntimo.
A obediência não se restringe a cumprir mandatos, nem a seguir leis, pois ela está profundamente unida ao crer no outro; porque “entregamos o coração”, obedecemos, ou seja, entramos em sintonia com o coração do Outro. Porque “entregamos o coração”, na obediência nosso coração pulsa no mesmo ritmo do coração de Deus. Tal obediência, inspirada pela obediência de Jesus, não alimenta dependência nem atrofia nossa autonomia; pelo contrário, nos faz mais libres, criativos.
A obediência de Jesus brota de um autêntico e pleno exercício de sua liberdade. Por isso, a verdadeira obediência só é possível a partir da autonomia da pessoa e supõe necessariamente o exercício da liberdade.
Esta entrega radical só é possível no ambiente do amor e da intimidade.
Assim, a obediência pressupõe a liberdade; ainda mais, é uma expressão de ser livre frente à própria liberdade, quando a pessoa reconhece um referente superior que a fundamenta, porque só a partir deste referente chega a encontrar o sentido sobre si mesmo.
A originalidade da parábola está na afirmação que Jesus lança aos dirigentes religiosos daquela sociedade: “Eu vos asseguro que os publicanos e as prostitutas entrarão antes de vós no Reino de Deus”.
Sem dúvida, as palavras de Jesus soaram não só provocativas, mas diretamente heréticas e inclusive blasfe-mas aos ouvidos das pessoas “religiosas” que o escutavam. Afirmar que “publicanos e prostitutas” vão entrar na frente no Reino de Deus causa um profundo incômodo nas pessoas que reduzem suas vidas a cumprir leis, ritos, doutrinas, sem nenhuma sensibilidade solidária com aqueles que são colocados à margem.
Para a religião, o valor mais importante costuma ser a crença e a norma, não tanto a atitude nem o comportamento ético das pessoas.
Para Jesus não importam as crenças e normas, mas o amor e a bondade, ou seja, aquelas atitudes e ações que são coerentes com a verdade do que somos. Na nosso “eu profundo” temos reservas de bondade, de compaixão, de mansidão... e que devem ser ativadas continuamente.
Seguramente nem todos os publicanos e nem todas as prostitutas eram exemplos de amor e de bondade, mas Jesus via em seus corações mais verdade, humildade e humanidade que nos egos inflados dos chefes religiosos.
Que podia ver Jesus naqueles homens e mulheres desprezados por todos? Talvez sua humilhação. Quem sabe, um coração mais aberto a Deus e mais necessitado de seu perdão; ou ainda, uma compreensão e uma proximidade maior para com os últimos da sociedade. Talvez menos orgulho e prepotência que a dos escribas e sumos sacerdotes.
No entanto, hoje e sempre, vivem a verdadeira vontade do Pai aqueles(as) que traduzem em atos o evangelho de Jesus e aqueles(as) que se abrem com simplicidade e confiança ao seu perdão.
Em chave de “interioridade”, podemos dizer que estes dois filhos, estas duas atitudes, convivem dentro de nós. Somos aquela boa pessoa que diz “sim” ao projeto de Jesus, mas, quando toca o nosso ego ou os nossos interesses usamos desculpas mesquinhas, ou seja, não nos definimos, não nos comprometemos...
Quando não há coerência com nossas atitudes, com nossos “sins” e nossos “nãos”, um sentimento de ansiedade vai emergindo de nosso interior. Ou seja, nosso interior geme, porque sofremos certa angústia que pode se tornar crônica. Tal angústia vai, aos poucos, nos tornando rígidos, legalistas, marcados por uma tristeza interior causada pela mediocridade, pela falta de fôlego em colaborar com o projeto de Jesus.
“Sacerdotes e anciãos do povo” x “publicanos e prostitutas”: tais grupos estão também presentes, e em constante conflito, em nossa própria interioridade.
Como integrá-los e como conviver com eles para que nossa vida seja criativa e expansiva?
A parábola deste domingo nos convida a reconhecer e abraçar o “publicano” e a “prostituta” que cada um de nós carrega em nosso interior.
Simbolicamente, “publicano” e “prostituta” é aquela dimensão nossa que temos reprimida e escondida, nossa própria sombra. É claro que, enquanto não a reconhecermos, projetaremos nos outros o que em nós mesmos rejeitamos. Só quando abraçamos nossa “negatividade”, nos humanizamos, porque nos abrimos à humildade. E só então poderá emergir a bondade e a compaixão para com os outros.
Texto bíblico: Mt 21,28-32
Na oração: coloque-se diante de cada um dos filhos da parábola: qual deles determina sua vida?
- que atitudes prevalecem em seu “trabalho” na Vinha do Senhor?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.09.23
Imagem: Sieger Koder