“Esforçai-vos por entrar pela porta estreita…” (Lc. 13,24)

21º Dom Tempo Comum

 

 

Há frases no Evangelho que, por serem tão duras e incômodas para nossos ouvidos, dão impressão de que nos encontramos diante de um cristianismo tenebroso e ameaçante; muitas vezes, quase inconscientemente, as colocamos entre parêntesis e as esquecemos para não sentirmos interpelados por elas. Uma delas é, sem dúvida, esta que escutamos hoje dos lábios de Jesus: “esforçai-vos por entrar pela porta estreita...”

 

O chamado de Jesus a “entrar pela porta estreita” pode dar a impressão de um rigorismo estreito, rígido, legalista e estéril, em lugar de orientar-nos para a verdadeira radicalidade exigida por Ele. Entrar pela “porta estreita” não é um moralismo raquítico e sem horizontes, mas uma atitude exigente e responsável: a porta pela qual entram aqueles que se esforçam por viver fielmente o amor radical a Deus e ao irmão, aqueles que procuram agir pensando nos outros, aqueles que vivem com sentido de solidariedade e comunhão.

 

Não basta ser filho de Abraão. É necessário acolher a mensagem de Jesus e suas profundas exigências. Jesus chama à radicalidade e nos convida a mudar a orientação do coração para viver dando primazia absoluta ao amor de Deus e aos irmãos.

 

O personagem anônimo que faz a pergunta a Jesus, no evangelho de hoje, não está muito interessado pela sua salvação; ele tem dúvidas quanto à salvação dos outros: pergunta pelos que vão se salvar. Não pergunta “se ele se salvará”. Além disso, dirige a Jesus uma pergunta mesquinha. Não pergunta se serão “muitos” mas se “serão poucos”. Parece como aqueles que lhes interessa somente as notícias raras, as más notícias. Dizer que todos vão se salvar não é notícia. Mas dizer que serão poucos, isso dá a impressão de ser uma notícia chamativa, porque seria falar do fracasso de Deus. E isso sim é importante.

 

No fundo, a pergunta daquele homem desconhecido é uma ofensa ao amor de Deus que quer que todos se salvem e que enviou o seu Filho não para condenar a alguém mas para salvar a todos. Na porta do céu nunca encontraremos este letreiro “esgotadas as entradas”. Jesus não responde à curiosidade. E, como sempre, responde mostrando-lhe o caminho da salvação. Mostra-lhe a porta pela qual se chega à salvação; porta suficientemente larga pela qual todos podemos entrar. Acaso, não disse Ele mesmo no Evangelho de João: “Eu sou a porta; quem entrar por mim, será salvo” (10,9)?

 

“Entrar pela porta estreita” é seguir Jesus, aprender a viver como Ele, assumir seu estilo de vida e sua opção pelo Reino. Jesus é a porta sempre aberta; ninguém a pode fechar.

 

O ser humano sempre se perguntou pela vida futura, pela salvação. Frente a esta inquietação, a resposta de Jesus nos apela a “entrar pela porta estreita”. Mas o texto não diz em quê consiste exatamente. Ao longo da história da espiritualidade cristã esta frase foi entendida como “sacrifício”, “mortificação”, “renúncia”... Uma leitura mais serena daquelas palavras, no entanto, nos faz ver que não se pode confundir “porta estreita” com “conquista de méritos e recompensas”, inflando um “eu religioso e perfeccionista”. Aliás, um “eu inflado”, compulsivo, cheio de si, obeso...não tem como passar pela “porta estreita”.

 

Para entrar pela porta estreita é preciso despojar-se de tudo aquilo que foi sendo acumulado ao longo da vida: posses, honras, consumismo, vaidades, poder, prestígio... “Entrar pela porta estreita” é desapropri-ação do eu, é desinflar-se, deixar transparecer a verdadeira identidade de meu ser.

 

A parábola de Jesus também põe em questão nossas falsas imagens de Deus. O Deus de Jesus não é um Deus mesquinho, que prepara a festa para um número restrito. O que existe é um chamado universal e permanente à conversão. A “salvação” consiste em “sentar-se à mesa no reino de Deus”, uma imagem festiva, convivencial e comensal, com a qual normalmente se designa a Plenitude divina na bíblia. A mesa já está posta mas só poderemos ter acesso para saborear o banquete se rompemos o balão do eu cheio de si que anda buscando migalhas, colocando nelas o sentido da própria existência.

 

Para relacionar-nos humanamente com o Deus que Jesus nos revelou, o mais urgente que devemos fazer é quebrar as “falsas imagens” d’Ele que carregamos em nossas consciências, em nossa intimidade mais secreta. E a primeira e principal imagem falsa é que Deus é uma ameaça da qual devemos nos proteger.

 

De fato, a presença de Deus na vida e na história de muitas pessoas é vivida secretamente sob as vestes do temor e do medo. Um “Deus” que a todos pedirá contas no juízo, onde teremos de responder pelo mau uso de nossos dons; um “Deus” que nos castiga com desgraças, por causa de nossos fracassos; um “Deus” interesseiro, um ídolo que nos amarra e não nos deixa viver, que impõe obrigações duras e dificulta nossa entrada no banquete; um “deus-patrão” que nos prende com contratos e cobranças; um “Deus” que é um constante perigo, causador do Grande Medo que nos paralisa.

 

Estas falsas imagens de Deus, no entanto, causam dano e afetam a vida em todas as suas dimensões (pessoal, familiar, social, espiritual). Por detrás destas imagens se encontram crenças religiosas às quais chamamos crenças tóxicas, porque envenenam a mente e o coração e não nos deixam amadurecer, nem no nível humano nem no nível espiritual.

 

Estas crenças tóxicas podem gerar personalidades dependentes e submissas, neuróticas e ansiosas, medrosas e passivas, moralistas e perfeccionistas; ou talvez personalidades agressivas, dominantes, vingativas, controladoras. São o reflexo de uma imagem distorcida de Deus e “chegamos a nos parecer com o Deus que projetamos”. Esta distorção é o resultado, muitas vezes, de uma educação rigorosa e moralista, produto de uma espiritualidade dualista que coloca a perfeição como o ideal de todo cristão e o menosprezo de tudo o que não é “espiritual”. Estas crenças religiosas geram uma fé tóxica ou insana porque nos afastam do Deus de Jesus e podem favorecer a dependência religiosa e o abuso espiritual.

 

Tomar consciência das imagens distorcidas que temos de Deus e das crenças tóxicas que as sustentam, aceitar e acolher tudo o que é humano, são dimensões que favorecem o crescimento e a maturidade e nos permitem viver em equilíbrio. Poderemos, assim, viver uma espiritualidade que nos ajude a processar a vida a partir da imagem de Deus mais de acordo com o Deus de Jesus. Um Deus misericordioso, que toma a iniciativa e nos ama primeiro, nos ama tal como somos e nos capacita e “entrar pela porta estreita”.

 

Com essa mensagem forte, Jesus nos convida a procurar e encontrar a chave para abrir a porta da casa do próprio interior, a entrar em contato com nosso coração, com o mundo do inconsciente, com o mundo dos nossos sentimentos, impulsos, dinamismos... de uma vida plena.  Quem não entra em contato com sua interioridade fica excluído da vida.

 

Conhecemos a imagem da porta nos nossos sonhos. Quando sonhamos com uma porta trancada, isso significa que perdemos o contato com nosso interior, com nosso coração, com nossa alma e vivemos apenas o lado externo. As pessoas que o dono da casa afirma não conhecer vivem apenas na exterioridade. Elas não tem uma vida ruim. Mas tudo que fazem é apenas exterioridade e não tem nenhuma relação com seu coração. Até mesmo sua fé é meramente exterior. Elas vão à Igreja e cumprem os rituais. Elas até acreditam em Jesus, dizem ter comido e bebido com Ele e ter ouvido seu ensinamento. Mas seu coração está fechado.

 

Jesus não consegue ter acesso a ele. Já não é mais “porta estreita” mas “porta fechada”.

 

Texto bíblico:  Lc 13,22-30

 

* Poderia identificar algumas falsas imagens que você tem de Deus?

   Como se traduzem em sua vida cotidiana estas imagens? Em quê condutas e atitudes concretas?

 

*Quais são as “gorduras inúteis” (apegos) acumuladas em seu interior, que dificultam sua caminhada pela vida e impedem passar pela “porta estreita” do seguimento de Jesus?

 

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI

19.08.2013