“Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem” (Lc 3,11) 

Em meio às sombras, perplexidades, contradições, provocações e intolerâncias, que constituem o atual momento histórico, queremos, neste Advento, dar vez a um brado de esperança e expressar a fé no futuro da nossa vida. A esperança tem raízes na eternidade, mas ela se alimenta de pequenas coisas; nos despojados gestos ela floresce e aponta para um sentido novo. É preciso um coração contemplativo para captar o “mistério” que nos envolve. 

A esperança, como força transformadora da realidade, inclui uma clara tomada de decisões de dirigir as energias vitais para ir ao encontro daquilo que é imprescindível para a vida. Por isso, em um mundo de muita injustiça social, onde milhões de pessoas vivem em condições de pobreza extrema e submergidos em círculos de violência, a esperança se apresenta a nós como uma força capaz de despertar nossa consciência adormecida e assumir nossa responsabilidade. A esperança é sempre inquieta e mobilizadora, é impulso que nos faz desejar e buscar uma mudança decisiva que favoreça instaurar um mundo mais humanizador, abrindo-nos a um “mais além” que já está próximo. Mesmo diante dos profundos dilemas internos e sociais, achamos possível ser e viver de outro modo, inventamos e reinventamos opções, criamos novas saídas... e, sem cessar, sonhamos com o “mais” e o “melhor”. Afinal, somos seres de “travessia”... 

Essa “travessia” não é apenas geográfica; trata-se de uma experiência que requer a atitude de “saída de si” para ir ao outro como diferente; e isso implica “passar” para o seu lugar, aprender a ver o mundo a partir de sua perspectiva, deixar-nos questionar e desinstalar-nos por ele, tão despojado da condição de pessoa.  Ir ao encontro do outro só é possível a partir do cultivo da sensibilidade, entendida como o movimento afetivo necessário para olhar e sentir a verdade na realidade de quem sofre. Não se trata de “dar coisas”, mas deixar-nos “afetar cordialmente” pela dor do outro. 

Neste 3º. domingo do Advento, o apelo à mudança, na voz de João Batista, se torna mais concreto. “Quê devemos fazer”? Tal pergunta é uma prova da sinceridade daqueles que se aproximavam de João. Com três pinceladas o Batista enfatiza a necessidade de mudar a maneira de pensar e de agir: é preciso abrir-se à alteridade até chegar a partilhar com outros, é preciso sair do estreito círculo do “meu” para que a escravidão do possuir abra passagem à liberdade de preferir o bem maior da relação; ativar a alegria de saber que uma túnica sobrante abriga agora o corpo de um irmão; a economia deve estar a serviço da vida e de todas as pessoas; reacender o impulso a ser “pacifistas ativos”, defendendo e protegendo os pobres e indefesos. 

Encontramo-nos aqui diante da razão ética originária que não se baseia tanto numa compreensão da realidade, mas na compaixão com a pessoa do “outro”, excluído, pobre, dominado, marginalizado... Lucas apresenta a mensagem de João Batista a partir de uma perspectiva ética, que pode e deve aplicar-se a todos os povos. Deixa de lado os aspectos exclusivamente religiosos (confessionais) de sua mensagem e o condensa em um programa ético de deveres sociais, que se aplicam primeiramente a todos os homens e mulheres e logo a dois grupos especiais: os publicanos e os soldados. 

Esta é uma mensagem muito simples. Não precisa reuniões episcopais, nem conselhos de países, nem comissões internacionais. É uma mensagem imediata e próxima, de comunhão humana, pacífica, generosa. É uma mensagem que crê no ser humano. Não se trata de “matar” os publicanos e os soldados, mas de descobrir que também eles são humanos, iniciando a grande revolução da igualdade e partilha de bens. 

Esta é a moral natural de João Batista. Este é para Lucas o ponto de partida para chegar ao evangelho. Jesus vai além (é gratuidade). Mas, para chegar a Jesus é preciso passar por João Batista. A resposta de João Batista não é teoria vazia. É através de gestos e ações concretas de justiça, respeito, solidariedade, partilha e coerência cristã que se vai construindo um tecido social mais digno de filhos(as) de Deus, realizando as transformações radicais e profundas que as pessoas e a sociedade tanto necessitam. Frente a diferentes públicos, João não faz alusão nenhuma à religião; o que ele pede a todos é melhorar a convivência humana. O envolvimento com o “outro” nos conduz à autenticidade, à libertação de apegos e avareza, à liberdade para partilhar e receber e a uma imensa felicidade. 

A “sensibilidade solidária” suscita em nós um desejo novo que articula um novo horizonte de sentido às nossas vidas e gera um horizonte de utopia e de esperança por um mundo justo e fraterno. A solidariedade é a não-violência em ação; é a fonte de todas as qualidades espirituais: a capacidade de perdão, a acolhida compassiva, a tolerância e todas as demais virtudes. Além disso, é a que de fato dá sentido às nossas atividades cotidianas e as torna construtivas. 

A solidariedade permeia e ressignifica, assim, toda a nossa existência. Não é um evento, um ato isolado. Ela torna oblativa a vida em suas diferentes expressões, fermenta o cotidiano de nossas existências, infunde sentido e razão de ser àquilo que somos e fazemos. 

Nas experiências de “convivência” com os pobres adquirimos os valores evangélicos da capacidade de celebrar, da simplicidade, da hospitalidade... Eles tem um jeito de nos trazer de volta para o essencial da vida. Eles são uma fonte de esperança, uma fonte de autenticidade. Eles se tornam nossos amigos. 

Importa, portanto, “re-inventar” com urgência a solidariedade como valor ético e como atitude permanente de vida; não uma solidariedade ocasional, mas uma solidariedade cotidiana que se encarna nos pequenos gestos de inclusão do dia-a-dia. Na criação da “nova comunidade” dos(as) seguidores(as) de Jesus, a partilha substitui a acumulação e a abertura aos outros se apresenta como alternativa às relações interpessoais de opressão e exclusão; aqui está configurada uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus. 

Com nossos gestos solidários nos mobilizamos e nos aproximamos do Senhor que chega. Neste dia Deus discernirá entre o trigo e a palha que existem em nossa conduta. Vivemos a cultura da “palha”, que nos força permanecer na superficialidade, na aparência, na exterioridade da vida, impedindo-nos perceber o trigo presente em nossa interioridade. 

Vivemos, muitas vezes, imersos em meio a tanta palha que nos afoga e nos incapacita viver a cultura do encontro solidário. De fato, a cultura da superficialidade, da aparência, da vaidade... são as marcas de nossa sociedade atual; marcas que nos desfiguram e nos desumanizam. Só quem sai de si em direção ao outro, através de gestos solidários, é capaz de peneirar a palha para deixar emergir o trigo de vida que carrega dentro. 

Somente a “sensibilidade solidária” será capaz de fazer a pessoa retornar à sua casa, ao centro, ao seu eu profundo; só ela ativará os recursos consistentes, os pontos de luz, o trigo que carrega dentro. O ego não ama ninguém além de si mesmo, atendendo apenas às suas próprias necessidades e à sua própria gratificação. Sofrendo de uma falta total de compaixão ou empatia, ele pode ser extraordinariamente cruel para com os outros. Ele não se dá conta de que vive fechado em si mesmo, prisioneiro de uma lógica que o desumaniza, esvaziando-se de todo dignidade. Aumenta seus celeiros, mas não sabe ampliar o horizonte de sua vida. Aumenta sua riqueza, mas diminui e empobrece sua vida. Acumula bens, mas não conhece a amizade, o amor generoso, a alegria e a solidariedade. Não sabe compartilhar, só monopolizar. 

Finalmente, acaba-se por criar uma dura cortiça que defende e isola a pessoa do entorno e que a aliena numa insensibilidade para com tudo aquilo que não seja sua própria realidade. É uma espécie de "embriaguez" na qual a alteridade desaparece. 

A verdadeira riqueza é investir numa única fortuna: a do amor, do favorecimento da vida, a do descentramento de si, o do encontro solidário em favor dos mais pobres e desfavorecidos. 

Texto bíblico:  Lc 3,10-18 

Na Oração: Segundo o Batista, a conversão exige “saber peneirar” (saber selecionar ou eleger), “recolher o trigo” (ir ao essencial e não ficar na superfície) e “queimar a palha” (eliminar o que não serve ou o que imobiliza); acolher a Boa Nova da vinda do Senhor requer essa conversão.

- Se sua vida “passar pela peneira”, o quanto de trigo permanecerá? O quanto de palha deve ser lançado fora?

Pe. Adroaldo Palaoro sj