“Eu sou a voz que grita no deserto” Jo 1,23)

 

 

É frequente ler nos jornais e na internet títulos como estes: “a canção mais ouvida da semana”, “o livro mais vendido”, “o filme mais assistido”... E se aparecesse, algum dia, um título assim: “a voz mais escutada pelos cristãos durante a semana”! Os cristãos, como todas as demais pessoas, escutam muitas vozes, muitas canções, muitas notícias, muitos comentários... Será a voz profética na comunidade, uma dessas vozes mais escutadas?

 

Na Igreja, como na sociedade, há excesso de palavras, há excesso de discursos, de declarações, de documentos. Sobram palavras, e nos falta a Palavra. “No princípio era o Verbo, depois só verbos”. O que as pessoas escutam de nós cristãos, hoje? Nossas palavras, nossas vozes, nossas ideias, nossas teologias, nossas ideologias..., é palavreado vazio, é palavra rotineira, improvisada, não pensada, não vivida...?  Ou escutam palavras de vida e de esperança, palavras que abrem um sentido para a existência?

 

As pessoas escutam hoje a voz de Deus em nossa voz? Escutam a voz de Jesus na voz da Igreja? Ou elas estão cansadas de escutar sempre o mesmo, palavras que não despertam o interesse nem o gosto espiritual? Palavras que adormecem o espírito e não fazem brotar a esperança? Palavras que resvalam pela pele da alma e não conseguem atingir o centro de suas vidas? Nossa voz chega à alma das pessoas, levando consolo, inspiração e esperança?

 

João é a voz que grita. A verdade é o que está já aí e ninguém a reconhece. João é aquele que tem consciência de sua identidade e de sua missão; ele tem a honestidade de reconhecer sua verdade e a sinceridade de não ser considerado como Messias; ele não se faz o centro das atenções mas indica sempre o “outro”; ele não atrai os olhares sobre si mesmo mas convida a olhar o “outro”. Sua voz anuncia um Outro. A identidade de João é revelada pela sua relação com Jesus. Sua voz está a serviço de Jesus. Não é a voz que louva a si mesmo.

 

 

Neste tempo de Advento somos convidados a descer em direção à nossa interioridade, para deixar aflorar o que é mais original em nós, nossa verdadeira identidade. Desconhecemos a nós mesmos, a nossa originalidade. Somos únicos, sagrados, com uma voz única. Nossa identidade se expressa também através da voz.

 

Nossa voz é desvelamento de nossa interioridade; a voz revela aquilo que está cheio nosso interior. Voz descentrada ou voz centrada em si mesmo? Voz que fala de si mesmo ou voz aberta à realidade? Nossa voz está a serviço de quê? De quem? É voz que eleva e salva o outro, ou voz que critica, afunda? É voz que aponta para um sentido? Somos “voz de quem não tem voz”?

 

Vivemos a cultura da aparência, da massificação, do vozerio crônico. O que vale é quem fala mais alto, se impõe, não abre espaço para os outros se expressarem. Vive-se às custas dos outros, mendigando elogios, bajulações... Daí a superficialidade da vida.

 

São muitas as vozes que nos tocam e nos constituem. Às vezes, elas ressoam em nós como brisa suave, às vezes como punhais, mas sempre nos deixando marcas profundas de estímulos ou de desânimo: sentimentos de alegria ou tristeza, de paz ou guerra, de tranquilidade ou inquietação, de fé ou descrença... de amor ou ódio.

 

Ambivalentes como nós, as vozes podem criar armadilhas ou abrir portas para largos horizontes, podem embalar ou derrubar, acolher ou afastar; com elas podemos fortalecer a vida ou asfixiá-la, podemos sacudir consciências, animar, levantar, entusiasmar, provocar ímpetos de se arriscar a viver até o fundo; ou podemos desanimar, sufocar, destruir, seduzir para fazer da vida um sucesso trivial e sem sentido.

 

Existem vozes que podem mudar a vida, para o bem ou para o mal. Há uma voz que constrói e uma que destrói, uma voz que comunica calor e luz, outra que semeia frieza, uma que infunde confiança e restitui o indivíduo a si mesmo e ao seu futuro, outra que o arrasa.

 

“Morte e vida estão em poder da língua” (Prov. 18,21). Há vozes que ferem e há vozes que elevam. Há uma voz pela qual tudo começa e recomeça, outra pela qual tudo termina, deixando o silêncio atrás de si. Depois de certas vozes, não resta mais nada a dizer. Todos conhecemos pessoas destruídas pelas vozes agressivas, como também pessoas reconstruídas, recriadas pelo ressonância das vozes ternas.

 

Todo encontro com o nosso semelhante revela a nossa relação com as vozes, as boas e as más, as que unem e as que dividem, as que consolam e as que amedrontam, as que curam e as que matam.

Certas vozes nos acompanham por muito tempo. Todos nós lembramos de vozes proferidas por pessoas especiais em momentos de dificuldades, que nos deram luz e força.

 

Toda voz tem também uma força operativa, desencadeia um movimento... Quando falamos, algo acontece, muda alguma coisa dentro de nós e nos nossos interlocutores. Elas abrem e chegam ao coração, despertando as esperanças adormecidas. Aparentemente nada mudou; mas é possível que tudo tenha mudado. A voz foi além de sua vibração sonora.

 

Na Igreja todos somos chamados a ser microfones de Deus. Mas a voz que as pessoas tem de escutar é a de Deus. Por isso temos que anunciar sua Palavra mais que nossas palavras. Como João Batista, o cristão é chamado a ser voz que anuncia e denuncia; ele se reconhece como a “voz que grita no deserto”; ele se define como “a voz dos que sofrem”, a “voz dos que não tem voz”, a “voz dos oprimidos que buscam a liberdade”, a “voz daqueles que ninguém os ouve”, a “voz que anuncia a presença de Deus na história”... O cristão é sempre a “voz do Outro”; o cristão é sempre a voz de Deus hoje. Voz de Deus nem sempre escutada; voz de Deus que hoje parece estar em silêncio.

 

O cristão é a voz de Deus que está ali, apontando para o novo, e parece que ninguém a quer ouvir.

No entanto, nada o faz calar; sua presença expande a Voz de Vida.

 

Texto bíblico:  Jo 1,6-8.19-28

  

Na oração:  Você é atento ao que fala, o modo como fala,  o tom e os sentimentos que sua voz expressa? Você consegue distinguir sua voz em contextos diferentes? É voz que eleva ou que arrasa? Voz que acalenta ou voz que julga? Voz que se fixa no passado ou voz que abre possibilidades para o futuro? Voz que anima ou voz que afunda?... Você deixa “ressoar” a Voz de Deus em sua voz?

 

Dê graças, não tanto por dizer palavras, mas que sua vida se converta em Palavra de Deus, em Evangelho.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI