“Subiu num dos barcos e pediu que se afastasse um pouco da terra” (Lc 5,3)

 

Jesus entrou em conflito com o mundo religioso da sinagoga. A Lei, que se expressava em inumeráveis preceitos minuciosos, fragmentava a existência, atrofiava a criatividade e não representava vida nova para o povo. A novidade de Jesus não cabia nos moldes da sinagoga, e começou a buscar outros espaços onde criar a vida expansiva do Reino, elaborar novos sinais e cunhar novas palavras.

 

O “outro lado”, para Ele, passa a ser terra privilegiada, onde nasce o “novo” por obra do Espírito. Ali aparece o broto germinal do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se uma denúncia ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida. Isso vai gerar uma maneira nova de viver, um estilo de vida, um compromisso diferente, uma ação carregada de ousadia...

 

Uma multidão vinda de todas as partes o seguiu até à beira do lago de Genesaré, e Jesus pediu a seus discípulos que tivessem uma barca preparada, pois o povo o apertava, porque tinha curado a muitos. O povo acorre onde há vida nova que estremeça sua letargia. Jesus se afasta do centro, da sinagoga e busca as margens do lago. E ali desencadeia um “movimento humanizador”: vida destravada e abundante, horizonte de sentido, relações de comunhão...

 

Encontrando-se em meio a um mundo em efervescência, Jesus lançou por terra as paredes e os muros dos templos e sinagogas e mergulhou no mar espaçoso da vida cotidiana. Ele alcançou sua plenitude humana precisamente porque foi capaz de “transgredir” o que estava estabelecido e abrir-se à universalidade de todas as terras, de todos os povos, sem distinção de raças, condição social... Seu itinerário não foi unicamente geográfico. Mais que um simples deslocar-se, trata-se de um “modo de viver” e de situar-se no mundo. Ele se fez presente nos lugares socialmente rejeitados, lugares de exclusão e da marginalidade, e ali revelou a presença d’Aquele que se faz presente e santifica todos os lugares: o Pai.

 

Jesus, na Galiléia, encontrou os seus lugares: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens... Ele se fez presente nos lugares onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados” e que foram a razão de seu amor e do seu cuidado.

 

Na Galiléia, Jesus tem suas preferências e escolhe o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se fazem donos dos lugares ou os excluem dos “lugares sagrados”.

 

Jesus transitou livremente por diferentes espaços; o deserto foi para ele um espaço necessário de solidão e de oração, onde, na intimidade com o Pai, alimentava a originalidade de sua pessoa e de sua missão. As margens do lago constituíam a trama da vida cotidiana, lugar de trabalho, de mercado, de encontros. As margens das cidades situavam-no frente à vida descartada, excluída, enferma ou fracassada. A montanha foi um lugar de perspectiva em momentos especiais de mudança, como a eleição dos Doze, a apresentação das Bem-aventuranças ou a Transfiguração no caminho para a Páscoa.

 

Jesus não se move preso aos espaços do Templo, mas vive aberto à surpresa e ao dinamismo do Reino, que irrompe como graça no centro da vida cotidiana. Em seus deslocamentos descobre, nas margens do lago e nas aldeias dos camponeses, que os homens e mulheres considerados os excluídos e os sem lugares são os verdadeiros criadores de uma nova realidade, os reais protagonistas, construtores de um mundo novo, sal nos paladares desanimados e luz nas noites escuras da humanidade e da história.

 

Com sua presença inspiradora e provocativa, Jesus alarga os espaços e os corações das pessoas: ao entrar no barco, este deixa de ser simples instrumento de pesca para ser lugar do anúncio; Ele amplia o rotineiro modo de pescar (“lançai as redes em águas mais profundas”); por fim, desafia aqueles rudes pescadores a deixarem aquele atrofiado mar e entrar no vasto oceano da vida (“sereis pescadores do humano”). Do mar da Galileia ao mar da vida: este é o movimento que Jesus desperta nas pessoas.

 

Ele continua desafiando a que cada um mergulhe mais fundo no oceano do coração e ali ative os recursos ainda escondidos: novos sonhos, novas possibilidades, nova inspiração, novo sentido para a existência... Para isso, é preciso vencer o medo que atrofia tudo o que é humano em nós e entrar no movimento expansivo de Jesus.

 

Onde estão os espaços de nossa missão e de nossa presença? Em quê margens da sociedade, da economia, da cultura,  devemos nos situar para aí descobrir a novidade de Deus que nos desinstala e nos abre um futuro iluminador? Onde estão os espaços de solidão e de silêncio, de desintoxicação de informações, de encontro com o mais profundo de nós mesmos, por onde surge a palavra única que Deus nos dirige, integrando-nos como pessoas e expandindo-nos a uma presença mais criativa na realidade?

 

O profeta Isaías nos recomenda ampliar este “espaço interior”: “Alarga o espaço de tua tenda, estende sem medo tuas lonas, alonga tuas cordas, finca bem tuas estacas” (Is. 54,2). Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade e abertura às novas ideias e às novas descobertas. Algumas fortalezas e seguranças pessoais caem quando os “espaços interiores”, abrasados e iluminados pela força do Espírito, começam a romper as paredes e se encarnam em “espaços exteriores”, marcados pela beleza e encantamento: espaço familiar, espaço celebrativo, espaço esportivo, espaço de convivência... um espaço nobre que só tem sentido quando carregado de presenças.

 

Não tem sentido ampliar os espaços externos se nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade sente-se bloqueada... Espaço amplo é convite a sonhar alto, a pensar grande... ousar ir além, lançar por terra nosso modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos.

 

Deus nos chama cada dia, nos tira de nosso estreito mar, nos faz sair do que é nosso, da segurança, da comodidade... e nos faz entrar numa “terra nova”. A “travessia” ativa e revela o que há de melhor em cada um de nós. Igualmente, com nossa presença expansiva e inspiradora seremos também capazes de “pescar o humano” que está escondido no outro.

 

Somos desafiados a “viver uma vida no mundo e no coração da humanidade” (Pe. Kolvenbach). Precisamos levantar-nos cotidianamente de nossos “lugares” estreitos e seguros: há sempre um “lugar ferido” que nos espera, um “ambiente atrofiado” a ser curado, um “espaço limitado” a ser ampliado...

 

Texto bíblico:  Lc 5,1-11

 

Na oração: Para S. Inácio, os lugares nascem na imaginação; nos Exercícios Espirituais, ele nos convida, através do preâmbulo “composição vendo o lugar”, a imaginar lugares em movimento, lugares de encontro, de desafio, lugares provocativos e criativos..., enfim, lugares carregados de presença.

 

A “composição vendo o lugar” desperta em nós um novo “olhar” para perceber, com mais nitidez e intensidade, os lugares por onde transitamos, uma nova disposição para dar sentido e valor aos lugares cotidianos, um olhar solidário para perceber o lugar do outro, uma nova sensibilidade para “ver” a Presença d’Aquele que ocupa todos os lugares e que nos conduz para o “lugar” da plenitude.

 

Da imaginação para a realidade, da oração para a ação..., uma travessia dos “nossos mares estreitos” para os “amplos lugares cristificados”. Um “lugar sagrado” que nasce do coração, carregado de afeto, de inspiração, de vitalidade... O “lugar externo” é o prolongamento do lugar saboreado internamente.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP