“Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria, José e o recém-nascido deitado na manjedoura” (Lc 2,16)

1º. de janeiro é uma data carregada de conotações profundamente humanas: início de um novo ano, o encontro dos pastores com o Menino Jesus, a maternidade divina de Maria, dia Mundial da Paz... 

Ao começar o novo ano, a primeira atitude que devemos alimentar é a da gratidão: dar graças a Deus pelo dom do tempo, que é o dom da vida, o dom fundamental. O tempo é graça e tudo depende do que fazemos com ele: podemos fazer dele um tempo morto ou um tempo vivo (carregado de possibilidades, recursos, criatividade, tempo oblativo, aberto ao novo, tempo inspirado…). 

O começo do ano nos convida a pensar sobre nossa forma de ativar este “grande tesouro” que é o tempo; Deus nos concede este ano para que multipliquemos a vida, enriquecendo-a de sentido, qualidade e calor humano; é uma nova oportunidade que Ele nos concede para crescer e ajudar a crescer, para alcançar uma experiência nova da vida, de encontro com Ele, com os outros, conosco mesmos. 

A festa da travessia para um Novo Ano é uma ocasião privilegiada para descobrir o quê estamos fazendo com nosso tempo. Podemos estar desperdiçando ou perdendo aquilo que nos foi dado para que vivamos com mais intensidade. Vão passando os anos e com eles as oportunidades de dar verdadeiro sentido às nossas vidas. É o momento por excelência da potencialidade de vida, tempo mágico onde as promessas começam seu caminho de realização. 

Quem contempla a realidade com os olhos simples dos pastores, não faltarão ocasiões de reconhecer a criatividade de Deus em ação, a inovação do Espírito movendo corações, criando cenários novos, mais humanos, com mais profundidade, mais do Reino... 

Talvez muitos se perguntam para onde vai nosso mundo, surpreendidos e preocupados pelo crescimento de fenômenos desconcertantes. Em muitos países triunfam líderes populistas, manejados por forças ocultas sem escrúpulos e marcados por discursos intolerantes, preconceituosos e julgamentos moralistas; a corrupção vai lançando raízes em todos os ambientes; os conflitos e as rupturas se acentuam; a Igreja católica é sacudida por uma grande crise de credibilidade; o sistema de valores e conhecimentos está mudando profundamente. Vivemos um momento de transição ou um colapso de uma civilização: uma metamorfose da sociedade que afeta todos os aspectos da vida, pessoal e coletiva, de toda a humanidade. Trata-se, pois, de uma crise global, embora às vezes possa parecer local ou inclusive pessoal. 

Como nos tempos bíblicos, também estamos vivendo um “exílio”. Tanto naquele como neste contexto atual é que se revela a missão original e inspiradora dos profetas. Como ser presença diferenciada em meio a muita gente desconcertada e desesperançada? Como alimentar esperança? Como ativar uma imaginação criativa? 

Esta deve ser a marca característica dos(as) seguidores(as) de Jesus: o otimismo frente à realidade e a esperança diante daquilo que vem. Crer em um Deus que se encarna no simples e que realiza suas promessas, permite começar o ano como quem estreia todas as possibilidades, inclusive abertura às possibilidades antes inexistentes. Isto é o que ocorre em nosso tempo natalino: a irrupção de Deus no pequeno e a partir de baixo, modifica radicalmente nossa visão atrofiada da realidade e nos capacita a vislumbrar o broto germinal de uma nova história. Por isso, somos gente carregada de esperança, pois somos n’Aquele que faz tudo novo. 

Para muitos pode lhes causar estranheza que a Igreja faça coincidir o primeiro dia do novo ano civil com a festa de Santa Maria, Mãe de Deus. E, no entanto, é significativo que, desde o século IV, a Igreja, depois de celebrar solenemente o Nascimento do Salvador, nos motiva a começar o ano novo sob a proteção maternal de Maria, Mãe do Salvador e Mãe nossa. 

É bom que, diante do Novo Tempo que se inicia, elevemos nossos olhos para Maria. Ela nos acompanhará ao longo dos dias com cuidado e ternura de mãe. Ela inspirará nossa fé e nossa esperança. 

Dia Mundial da Paz. Talvez seja uma das carências que mais afeta o ser humano de hoje, porque a ausência de paz é a prova palpável de uma falta de humanidade em todos os níveis. Não podemos descobrir o que significa paz quando nos vemos cercados de violências e conflitos; não podemos experimentar a paz alimentando uma “cultura da indiferença” e da suspeita. 

Não são as contendas internacionais, por muito danosas que sejam, que impedem os seres humanos alcançar sua plenitude. Os grandes conflitos têm sua origem em nossos próprios conflitos internos; nossos corações estão carregados de maledicências, julgamentos, legalismos, moralismos e imposições sobre os outros... O medo daquele que pensa, crê, sente e ama de maneira diferente aumenta as distâncias, cria muros e bolhas de proteção que dão uma falsa sensação de segurança e paz. Nunca se investiu tanto em segurança e, no entanto, a cultura da paz está cada vez mais esvaziada. 

A paz não é uma realidade que possamos buscar com um cantil. A paz será sempre a consequência de relações verdadeiramente humanas, entre nós. Se não existe uma autêntica qualidade humana não pode haver uma verdadeira paz, nem entre as pessoas nem entre as nações. 

O primeiro passo na busca da paz deve ser dado por cada um de nós, caminhando em direção ao nosso próprio interior. Se não conseguimos uma harmonia interior, se não descobrimos nosso verdadeiro ser e o assumimos como a realidade fundamental em nós, nem teremos paz nem a podemos levar aos outros. Este processo de maturação pessoal é o fundamento de toda verdadeira paz. Uma autêntica paz interior se reflete em todas as nossas relações humanas, começando pelos mais próximos. 

Quando perdemos o caminho da interioridade, permanecemos na superficialidade de nós mesmos; ali não há húmus onde enraizar a paz; é da superficialidade de nós mesmos que brotam os julgamentos, a indiferença, a atrofia da comunhão, o extravio da ternura, a segregação..., constituindo o ambiente favorável para todo tipo de rupturas, conflitos, frieza nos relacionamentos... 

É preciso, como os pastores, entrar na Gruta interior para encontrar Aquele que é o Príncipe da Paz; aproximar desta Criança significa ativar todos os recursos pacíficos que carregamos dentro de nós.

Ah se recuperássemos o sentido do “shalom” judaico! Nessa palavra se encontra condensado todo o significado verdadeiro da paz. Nossa palavra “paz” tem conotações exclusivamente negativas: ausência de guerra, ausência de conflitos, de intrigas, etc... Mas, a expressão “shalom” se refere às realidades positivas; dizer “Shalom” significa manifestar um desejo de que Deus conceda a cada um tudo o que necessita para ser autenticamente humano, incluída a presença mesma de Deus no interior de cada um. Na raiz bíblica do termo “shalon” está a ideia de “algo completo, inteiro”.  A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência está do lado da falta, da carência, do incompleto. Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, quebra as relações, exclui os mais fracos... 

Este é o desafio diante do Novo Ano que se inicia: devemos primar por construir “ambientes de paz”: paz que vem do alto, que brota do interior e aquece nossos corações, plenifica nossas relações e se expande, tal como perfume, em todas as direções.

Paz é aspiração congênita do ser humano. Nosso coração humano foi feito para a paz e anseia a convivência harmoniosa com Deus, com o cosmos, com os nossos semelhantes. É processo interminável. 

Aprender a amar, preocupar-se com os outros, vibrar com a diferença, entrar em harmonia não só com as outras pessoas, mas com toda a criação é a autêntica preparação para a paz. Quem ama não cria conflitos e fica encantado quando todos tenham acesso aos melhores recursos na própria interioridade. 

Texto bíblico:  Lc 2,16-21 

Na oração: A partir do “olhar” admirado dos pastores, alimentar, ao longo deste ano, um processo minucioso de extirpação das “cataratas” do seu olhar interior: o olhar das lembranças negativas, das suspeitas, dos julgamentos, das comparações... e reacender o olhar contemplativo capaz de expressar a benevolência, a delicadeza, a acolhida, a cortesia, a serenidade, a modéstia, a afabilidade, a alegria simples de estar juntos...

- Recordar todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre você ao longo da vida.

Feliz Ano cheio de Deus!

Pe. Adroaldo Palaoro sj