“O Senhor volte para ti o seu rosto e de dê a paz!” (Nm 6,26)

O relato do Nascimento de Jesus nos desafia a superar a rotina acostumada e romper as estreitezas da vida para poder acolher a admirável profundidade que se esconde e se revela na simplicidade da cena, que em seu nível mais profundo ou espiritual, fala de todos nós. Ali fala-se de alguns pastores, de um presépio, de um recém-nascido, de uma mulher que “guarda” um segredo, de um homem silencioso... Toda a cena quer introduzir-nos em um Silêncio admirado e agradecido, pleno de luz, de paz e de gratidão.

A simplicidade do relato nos convida a mergulhar no Mistério que aí se expressa. Tudo está aí. E, da mesma maneira, tudo é agora. Pastores, presépio, recém-nascido, um casal silencioso...: quando sabemos olhar, descobrimos que tudo está cheio da Presença que pacifica.

A Presença ou o Mistério não é uma realidade separada da nossa vida, nem à margem da realidade e da criação. Por esse motivo, os personagens presentes na Gruta de Belém representam a realidade inteira: somos nós mesmos, é tudo o que nos rodeia neste preciso momento, são todos os seres.

E diante dessa manifestação, o que nos resta? A atitude de Maria: acolher todas as coisas, “guardá-las”, “meditando-as no coração”. Ir mais além dos conceitos e das palavras e, desse modo, descansar – admirados, agradecidos, irmanados, pacificados – no Mistério e deixar-nos conduzir por Ele.

“Meditar as coisas no coração” significa ativar o “olhar contemplativo” que se encontra em todos nós e que se manifesta quando cessamos nosso palavreado crônico. Serenados interiormente, somos presentea-dos com o dom de permanecer no presente, onde tudo está bem, onde tudo flui mansamente e na santa paz. 

Este é o desafio diante do Novo Ano que se inicia: devemos primar por construir “ambientes de paz”: paz que vem do alto, que aquece nossos corações, plenifica nossas relações e se expande, tal como perfume, em todas as direções.

Paz é aspiração congênita do ser humano. Nosso coração humano foi feito para a paz e anseia a convi-vência harmoniosa com Deus, com o cosmos, com os nossos semelhantes. É processo interminável.

Na raiz bíblica do termo “shalom”, (em latim “pax”) está a ideia de “algo completo, inteiro”.  A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência está do lado da falta, da carência, do incompleto.

Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, rompe os vínculos, exclui os mais fracos...

Paz: há milênios esta palavra ressoa e ecoa na história dos povos. Inúmeros homens e mulheres a culti-vam secretamente no coração. Todos a invocam. Muitos dão a vida, defendendo-a...

A paz autêntica contém densidade humana. É paz de consciência inocente dos justos que fazem o bem, dos profetas que se arriscam em favor dos outros. Paz é humanidade alegre, espontânea, confiante.

Paz não é sossego, não é alienação, nem cumplicidade.

Paz requer bravura. Somente o ser humano amante da paz é realmente “perigoso”, não o violento.

Mas, a paz ainda não encontrou espaço para ser a companheira de estrada em nosso cotidiano. O contexto social-político-religioso no qual vivemos está carregado de profundas divisões, ódios, intolerâncias, mentiras, preconceitos, violências... Há um “cheiro de morte” que nos paralisa e nos impede viver relações mais sadias e respeitosas para com os outros.

No entanto, permanece a promessa profética de que ela habitará na nossa terra. Assim, o sonho impossível, que reina desde sempre no coração do Senhor, amante da Paz, se realizará, graças àquelas pessoas revolucio-nárias, que acreditam, desejam e realizam a paz. Na Gruta de Belém tudo exala paz e o encontro com Aquele que é o “príncipe da paz” nos inspira a sermos presenças pacificadoras.

Paz “solidária” que abraça os excluídos; paz “resistência” que não se acovarda; paz “audácia” que não se amedronta; paz “limpa” que não corrompe a ética; paz “profética” que encarna a justiça; paz “rebelada” que não se dobra; paz “estética” que revela a face bela da nova humanidade... (cf. Juvenal Arduini).

Na carta de S. Paulo aos Efésios, Cristo é chamado “a nossa paz” (Ef. 2,14).

A paz é característica do reino messiânico que Jesus inaugurou. Ele revela que a paz é um trabalho muito paciente, de artesanato. Ele era um artesão, um carpinteiro.

Ele sabia que para ser mestre na arte de fazer móveis era preciso saber aplainar muito bem. A paz começa nesta arte de aplainar o que em cada um de nós é áspero e duro; há divisões e conflitos em nosso interior...,  mas nós podemos, pacientemente,  construir a paz do coração.

Quem tem paz irradia luz; quem vive na luz constrói a paz. Paz expansiva, paz que é respiração da vida, paz marcada pela esperança.

               “Que a Paz de Cristo reine em vossos corações (Col. 3,15)

No início deste Novo ano confessamos: apareceu um Menino; fizeram-se visíveis a ternura, a paz e a doçura do Deus que salva.

A ternura pobre do presépio ajuda a dizer “sim” ao que importa e a recuperar nosso centro em Deus.

Por isso, a paz é carregada de ternura. Só a ternura de uma criança pode nos tirar de nossos lugares atrofiados. A ternura de Deus continua fazendo-se alternativa original. Quando expandimos nosso espaço interior e a acolhemos, a ternura nos move a fazer visitas inesperadas a enfermos, presentear tempo e não objetos, investir a “fundo perdido” em quietude, oração e reconciliação e substituir as felicitações impessoais dos celulares por palavras de vida, que ajudem a curar feridas do caminho.

A ternura alternativa acolhe solidões, sofrimentos familiares e enfrenta os contratempos da vida tal como aparecem, anunciando que Deus nasce para todas e cada uma de nossas histórias. Depende de nós abrir-lhe a porta e deixar que ela faça morada em nós.

Na Gruta de Belém todos são acolhidos e a paz brota da hospitalidade. Se queremos a paz, preparemos as boas-vindas, aprendamos a ver os outros não como inimigos, mas como seres humanos, cujos rostos nos convidam a expandir nossas fronteiras para encontrar-nos neles, em diálogo e comunhão com suas necessidades, sorrindo com eles e recebendo-os em nossas casas. A hospitalidade é a chave para construir um mundo humano, sem fronteiras, onde todas as pessoas possam viver juntas e em paz.

A paz, por si mesma, é expansiva; por isso, encontrar-nos com Deus na própria morada interna não é fechar-nos num intimismo estéril; implica ampliar o espaço do coração para acolher o outro que pensa, sente e ama de maneira diferente, porque também ele é morada da Criança de Belém.

Texto bíblico:  Lc 2,16-21 

Na oração: A paz é um dos dons que se faz visível no rosto do Deus-Menino e, como seus

(suas) seguidores(as), somos desafiados(as) a uma visão mais aprofundada, pessoal e coletiva, sobre o sentido e a força mobilizadora da verdadeira paz.

- Como exercer o “ministério da pacificação” no seu ambiente cotidiano? Como reconstruir os vínculos que foram rompidos por questões políticas, religiosas...?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

31.12.22