“E, enquanto rezava, o céu se abril e o Espírito desceu sobre Jesus...” (Lc 3,21-22)

Terminado o “tempo natalino”, começamos hoje o “tempo comum” (Ano C), ou seja, a vida pública de Jesus, sua missão como Filho em favor dos filhos e filhas. O relato do batismo – que marca a passagem da vida em Nazaré para a vida peregrina – faz referência a uma experiência fundante de Jesus: confirmado pelo Pai, impulsionado pelo Espírito, Ele descobre o sentido de sua vida e a missão que devia realizar. 

O batismo de Jesus significou uma profunda experiência espiritual, muito ligada à sua atitude humilde de aproximar-se do rio Jordão, onde as pessoas simples do povo buscavam no batismo de João uma purificação de seus pecados. Jesus foi reconhecido pelos pastores e magos, mas não pelos que compartilhavam com Ele a fila dos pecadores. Uma fila que margeava o rio Jordão, constituída por aqueles que queriam receber o batismo das mãos de João. E ali se pôs Jesus, entre eles, em silêncio. Não era um a mais, mas parecia ser. 

Quê foi que levou Jesus a tomar esta decisão? Quê esperava encontrar com o batismo de João? Quais foram os sentimentos que o acompanharam durante este percurso de mais de 100 quilômetros desde Nazaré até o lugar onde recebeu seu batismo? Foi uma viagem solitária ou a fez em companhia de alguns amigos e amigas que também buscavam o mesmo? 

Jesus “desce” ao Jordão; este gesto resume sua descida do céu à terra, sua “kénosis”, seu esvaziamento radical. É uma “descida” às águas da humanidade; por isso, sobre Ele “desce o Espírito”. O Espírito não “desce” sobre aquele(a) que “sobe” ao pedestal da vaidade, do poder, da intolerância, do preconceito... Ali, o “ego inflado” não abre espaço para se deixar inspirar pelo mesmo Espírito que conduzia Jesus. É preciso “descer” às águas da própria existência, “entrar na fila solidária” da fragilidade humana, passar pelas águas da renovação vital e sair do outro lado, purificado e humanizado.

Embora não reconhecido pelas pessoas, ao entrar nas águas do Jordão, Jesus foi reconhecido e confirmado pelo Pai. E fez isso com uma voz potente para que todos se dessem conta de que o Filho queria compartilhar a situação da humanidade. E o Pai lhe deu carta branca para estar entre nós sem privilégios, continuando o despojamento que lhe supôs entrar em nosso mundo.

O batismo comove Jesus por dentro, o transtorna, parece que lhe invadem uma compaixão e ternura infinitas. O Deus dos pais se revela a Ele como Fonte de Vida, como Misericórdia e Compaixão, como fonte de dignificação e perdão. O Céu deixa de estar em silêncio, o Céu não se compraz na Lei e no Templo, o Céu se compraz em Jesus, e, a partir de sua profunda percepção do Deus como Ternura e Fonte da Vida, sua vida vai se revelar como Boa Notícia para os abatidos de toda a humanidade. Jesus não será mais o mesmo; o “filho do carpinteiro” foi tocado pelo Compassivo e sua vida vai se converter em visita de Deus a seu povo, em causa de liberdade para os oprimidos, em saúde para os enfermos, em perdão para os indignos, em inclusão para os excluídos, em festa para os tristes...

A Bíblia nos convida a tomar consciência que os lugares de encontro de Deus com o ser humano não são unicamente os sagrados, institucionais ou majestosos, mas, principalmente, os lugares da “margem”, do cotidiano, das experiências de fragilidade e limite, das obscuridades e dúvidas... enfim, das fendas da vida.

E foi das “fendas da humanidade” que o próprio Jesus entrou em comunhão com o Pai.

Segundo o evangelho de hoje, Jesus se faz presente na “fenda’ mais profunda da terra, no Jordão, e é precisamente ali onde Ele escuta a voz do Pai indicando-o como o Filho amado em quem “põe o seu bem-querer”. A partir desse momento, Jesus se descobre portador dessa “complacência divina” e vai fazendo-a presente nos diferentes lugares por onde se desloca com uma mobilidade surpreendente: do deserto à Galileia, onde anuncia a chegada do Reino; às margens do mar, chamando os primeiros discípulos; em Cafarnaum onde exerce seu ministério terapêutico; às portas das casas, acolhendo uma multidão de enfermos; no descampado onde oferece a grande mesa da partilha; nos territórios fronteiriços, onde acolhe e entra em diálogo com o diferente...

Não são lugares “sagrados”; é sua presença que os converte em “teofânicos” (manifestação da presença divina), porque ali onde Ele se faz presente, os céus se “rasgam” e Deus “se deixa ver” em seu Filho, e Suas palavras continuam ressoando em nós, convidando-nos a escutá-lo. 

Viver a vocação batismal ativa nossa sensibilidade mais profunda, fazendo-nos entrar em sintonia com Deus e com a realidade. Deus age diretamente no coração e nos conduz com delicadeza, com carinho e com liberdade, preparando-nos para a grande “salto” na vida. E nosso coração aberto, atento, sintonizado com a ação de Deus, dispõe-se, coopera e responde à Graça divina, empenhando-se por encontrar “o que tanto deseja”. Essa é a experiência mística da vida: “sentir Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”. 

O(a) seguidor(a) de Jesus faz a experiência da intimidade, da presença, da comunhão, da proximidade de Deus em sua própria vida. Ele(a) vive embriagado(a) de vida, vive como um peixe nos oceanos de Deus, dizendo um profundo sim às ondas, ao vento, ao sol, à existência... Ele(a) sente-se cativado(a), envolvi-do(a), amado(a), sintonizado(a), habitado(a) por Deus de tal maneira que seus olhos, gestos, suas atitudes, palavras, seu coração, sua existência, transbordam Deus. Sente-se envolvido(a) pela “onda” de Deus e sintoniza-se com o Seu coração. Tal experiência é incomunicável; ninguém pode vivê-la por ele(a). 

A vivência batismal implica um contínuo “estar presente” diante do Deus Presente. E estar presente é estar “acordado”, no sentido de desperto e atento, e também no sentido musical de estar afinado, “em acorde”, sintonizado com a Presença que se revela de maneira “sempre nova e inesperada”.  

Dentro de cada um de nós existe uma música, uma melodia, uma nota do divino. É preciso criar espaço para que ela possa fluir em forma de canto, de dança, de louvor... No meio desse mundo confuso e dividido é necessário encontrar um princípio integrador; é preciso compor uma sinfonia, buscar a “com-sonância” das diferentes vozes e instrumentos presentes ao nosso redor. O compromisso batismal é esse momento delicado que nos ajuda a recuperar o “som primordial”, e portanto, a unidade do sentido da nossa existência. Por isso, “viver a vocação batismal” não é evento, mas sintonia com o coração de Deus; é estar “antenado” no modo de agir de Deus e corresponder a essa ação divina. Faz-se necessário, portanto, um contínuo discernimento para deixar-se conduzir pelo Espírito e prolongar o modo original de ser e viver de Jesus. 

Na oração:  Todo(a) seguidor(a) de Jesus é testemunha de uma presença contemplada e ouvida no silêncio da oração.

- Deixe-se levar como se estivesse num rio, observando-se com um olhar interior, escutando, sentindo...

- O Batismo implica expandir os espaços interiores, romper com tudo aquilo que atrofia a vida para acolher o novo: nova missão, novo compromisso, nova presença solidária, acolhida do diferente...

- Renove seu compromisso batismal: ser presença diferenciada em meio a um mundo carregado de morte e violência. 

Pe. Adroaldo Palaoro sj