“Quem dentre vós não tiver pecado seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra” (Jo .8,7)

 

Há em todos nós uma dificuldade básica em fazer-nos conscientes e responsáveis de nossos erros. Em muitas ocasiões atua em nós um mecanismo de defesa em forma de negação e de cegueira que pretende evitar a dor e a ferida interior da culpa, preservando nossa auto-imagem e nosso narcisismo. Introjetamos em nós a falsa ideia de perfeição; há uma cobrança social de que não podemos fracassar; temos resistências em assumir nossa condição humana (húmus) pobre e frágil; pesa sobre nossos ombros a força da falsa imagem de que somos semi-deuses...

 

Uma interioridade petrificada se expressa numa atitude de intolerância e insensibilidade frente aos outros. Normalmente, a petrificação interior é sempre recheada de devocionismos externos, repetitivos, de moralismos estéreis... O legalismo intransigente e inflexível desemboca no orgulho e na vaidade, levando a pessoa a assumir o lugar de Deus, fazendo-se juiz dos outros. Quando a culpa não é reconhecida, porque o próprio perfeccionismo o impede, facilmente a projetamos sobre os outros. E descarregamos sobre outros nossa própria insatisfação, frustração e os nossos próprios sentimentos de culpabilidade.

 

Elegemos assim uns “bodes expiatórios” sobre os quais lançar o nosso próprio mal interno e, desse modo, procuramos aliviar esse íntimo mal-estar e o peso moral. Quem tem o coração petrificado não tem bênçãos a oferecer, mas pedras a serem atiradas.

Tal atitude é encontrada  claramente na cena evangélica da mulher surpreendida em adultério. Ali temos as “pedras na mão”, magnífico símbolo da culpabilidade, prontas a serem lançadas sobre alguém em quem se projeta a própria maldade não reconhecida. Numa postura arrogante, os escribas e fariseus tomam para si o poder de julgar os outros, de dar aos outros o que eles pensam que merecem (recompensa ou castigo, a vida ou a morte).

 

O “arrogante” é um ser petrificado: a lei é a sua; a palavra é a sua; a verdade é a sua; o momento é o seu. É por isso que Jesus apela ao grupo dos agressores a que dirijam o olhar sobre seu próprio interior e, no reconhecimento de seu próprio pecado, a pedra possa cair de suas mãos. A mulher ficou livre. Os agressores, de outra maneira, também livres do engano de negar sua culpa para projetá-la maleficamente  sobre aquela pobre mulher.

 

Com frequência, Jesus apela de maneira surpreendente às pessoas que encontra na vida. Quando as “pessoas de bem” quiseram apedrejar uma mulher adúltera, Jesus, com um humor muito sutil, deu a “volta por cima” diante da situação embaraçosa e a transformou em uma possibilidade de crescimento para cada um deles, tanto para a mulher como para aqueles que queriam matá-la.

 

Cada um é encontrado onde está e é convidado a dar um passo para a vida. Jesus não condena às pessoas que acreditavam serem “justas”, mas as fez compreender que uma lei deve sustentar a vida e não matá-la. Jesus não aprova o comportamento da mulher, tampouco a condena como pessoa, mas lhe dá uma nova oportunidade de vida e lhe abre um  novo futuro.

 

No seu longo peregrinar, Jesus encontra as pessoas na situação em que estão, com suas penas, suas dúvidas, suas debilidades e seus fracassos, e as convida a dar um passo adiante na vida. Mas as deixa livres, mesmo as preconceituosas e legalistas, essas que sabem tudo, incapazes de perceber suas próprias debilidades e até se negam em considerá-las.

 

As “pedras na mão” são fáceis de encontrá-las também em nossas vidas. O convite de Jesus a reconhecer nosso pecado é a única via para que essas pedras não caiam sobre nenhum inocente e, ao mesmo tempo, nós possamos encontrar a possibilidade da transformação e da mudança. A arrogância também é nossa; manifesta-se no nosso pensar e agir cotidianos. Ela é a base de nossas intransigências, dos nossos preconceitos, dos nossos dogmatismos, de nossas críticas amargas, dos comentários maldosos... A arrogância mora no nosso desprezo e nas nossas ironias. Ela nos paralisa.Por isso, a maior infelicidade é ficar estagnado: emoção petrificada, conceitos e pré-conceitos petrificados, imagem de Deus petrificada, atitudes petrificadas, religião petrificada (legalismo, moralismo, perfeccionismo...). Somos submetidos ao grande risco de ficarmos imobilizados, emparedados em nosso corpo, rígidos em nossos pensamentos, em nosso coração e em nosso espírito.

 

Um outro aspecto a ser levado em consideração: há algo de diferente que é transmitido pelo rosto humano. Existe alguma coisa, além da aparência, que é comunicada pelo olhar de um ser humano. E onde estará esse “ponto” inacessível no qual se encontram os olhares? De onde vem esse olhar? Nosso olhar, normalmente é carregado de lembranças negativas, de julgamentos, de suspeitas, de comparações...  No evangelho de hoje, onde os homens viam uma adúltera, Jesus via uma mulher. Seu olhar não se detinha na máscara, mas contemplava o rosto e despertava na pessoa ricas possibilidades de vida.

Com o olhar, podemos transformar uma pessoa, destruí-la ou reconstruí-la, aniquilá-la ou fazê-la renascer, restituí-la a si mesma e ao futuro, fazê-la chorar ou consolá-la, expressar-lhe ódio, indiferença ou amor... Muitas vezes, o presente mais precioso que podemos dar a alguém é um olhar diferente; o futuro, a acolhida, o perdão, a alegria... dessa pessoa podem depender desse olhar novo, cheio de afeto e confiança. Em muitas situações difíceis da vida, o que salva é o olhar.

 

Olhar com os “olhos cristificados”: eis o desafio. Não se trata de qualquer olhar. É o olhar limpo, diáfano, que desarma, que não esconde engano ou segundas intenções, que não só apresenta um rosto, senão que em si mesmo é a entrega total de quem olha.

 

Contemplar o rosto do outro é sentir sua presença, sem pré-conceitos e pré-juízos..., vendo nele o sinal da ternura de Deus. Passar da contemplação à acolhida: este é o movimento da oração dos olhos. Olhar admirado e gratuito, como aquele de Cristo, que transforma, que liberta e que se comove diante da realidade, especialmente da frágil realidade humana.

 

Jesus olha cada ser humano como tal, mas este gesto não é um simples ver as pessoas, mas um olhá-las a fundo; ou seja, Jesus dirige seu olhar às pessoas para perceber nelas aquilo que para Ele é o mais importante: quer ver quê traços e quê imagem de Deus as pessoas revelam para quem as olha.

 

Ao olhar os seres humanos Jesus faz refletir a dignidade que eles carregam: filhos(as) de Deus, as criaturas mais apreciadas pelo Criador. E que por isso merecem viver.

 

Texto bíblico:  Jo. 8,1-11

 

Na oração: Contemplar as “pedras” presentes na própria mão (contra quem costumo lançá-las?...)

 

* O que nos faz ficar petrificados por dentro? tão duros, tão insensíveis?

* Como passar do coração de pedra para a morada da fonte de água viva?

* Como libertar o nosso coração dos medos que nos levam a excluir e rejeitar os outros e fechar-

nos numa fria rigidez?

 

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do CEI - Centro de Espiritualidade Inaciana

11.03.2013