“Vamos a Belém ver este acontecimento que o Senhor nos revelou” (Lc 2,15) 

Não há dúvida que este Natal vai ser muito diferente dos anos anteriores. Para muitas pessoas pode ser um tempo de dor pelas perdas familiares, amizades, trabalho, saúde... Devido ao confinamento, sentiremos muito não poder nos encontrar com tantas pessoas como gostaríamos, nem nos abraçar, nem prolongar a noite de festa. Este Natal vai ser vivido na vulnerabilidade e na incerteza sobre o futuro de nossas vidas, do trabalho, de nossa humanidade e de nossa mãe Terra.

Quem sabe, o espírito natalino talvez nos ajude a encontrar uma outra maneira de superar o confinamento, menos arriscada e mais enriquecedora. Se estamos confinados por fora, busquemos nos des-confinar por dentro. Se somos vazios por dentro, seremos vulneráveis a tudo; diferentes “vírus” poderão nos contaminar.  O consumismo, a competição, a política do “pão e circo”... confinaram o Natal e deixaram nossos interiores muito fechados e vazios. Há muito tempo que celebramos o Natal sem “alma”.

O Natal, já tão desfigurado, poderia ajudar a nos enriquecer e nos comunicar por dentro, porque nossos contatos exteriores estão muito limitados; seria uma ocasião privilegiada para recuperarmos o sentido de um natal autenticamente humano e cristão. É preciso “des-confinar” o Natal!

Nesse sentido, e apesar de tudo, Natal pode ser um momento de aprendizagem vital. Crescemos em consciência que o confinamento imposto pela situação pandêmica é movido pelo amor, respeito, responsabilidade, solidariedade, empatia e cuidado de nós mesmos e dos outros.

Inspirados nos “pastores que vão a Belém”, poderemos sair do confinamento tão plenificados por dentro que seremos capazes de suportar essa dolorosa falta de contatos exteriores, tão encantadores e tão necessários. 

“Vamos a Belém”, disseram entre si os pastores, cheios de ânimo e surpresos. É de noite e estão ao relento. De imediato a escuridão se ilumina, irrompe a voz dos anjos, que é o divino no coração da vida. “Não tenhais medo. Hoje, na cidade de Davi nasceu para vós um Salvador”. E para lá se dirigiram.

Os pastores nos indicam em que direção buscar o mistério do Natal: “Vamos a Belém”.

Vamos a Belém com os pastores, e entremos com eles na gruta. Eles nos convidam e nos conduzem. Vamos levando o presente de nossa pobreza e de nossos limites humanos; vamos sem medo de não nos sentirmos dignos, carregando em nossas pobres mãos a situação de dor em que se encontra a humanidade inteira.

Para o cristão, celebrar o Natal é “voltar a Belém”.

Não um Belém com reis magos, camelos e dromedários, carregados de tesouros, com pastores ingênuos e cenas costumeiras, neve de algodão e paisagens de serragem, musgo verde, árvores, fogueiras e luzes intermitentes de cores variadas, músicas natalinas, a estrela cravada no céu, vigiando a gruta, com José, Maria e Jesus, o boi e o burrinho... Uma repetição para todos, sem questionamento, sem mensagem; natal doce, regado a comidas e bebidas. Este tipo de “belém” não inquieta, nem incomoda, nem convida à reflexão e oração: apresenta um Natal “normótico”.

O primeiro Belém não foi assim. Foi um acontecimento que gritava, e continua gritando aos quatro ventos, que a situação não podia continuar como estava e como está hoje. Aquele Belém levantou a esperança dos pobres, pôs as periferias em efervescência, abriu um novo horizonte de sentido para toda a humanidade.

Deus não fixou morada entre as muralhas e palácios de Jerusalém, mas em uma aldeia insignificante, berço do rei Davi. Deus “tem um fraco” por aqueles que não são contados: uma aldeia pequena será o lugar eleito. O que ali aconteceu foi como um relâmpago na obscuridade da noite da história...

Não podemos deixar que “nos roubem o verdadeiro Natal”! 

“Vamos a Belém”. Mas, a quê Belém? Ao antigo Belém da Judéia? Ou ao Belém das ficções e das crenças? Vamos, antes, aos “beléns” – são tantos – de terra e de carne que povoam a Terra.

Também o Belém histórico, do qual falam os evangelhos, aquele que deu nome a tantos outros lugares, é uma imagem do verdadeiro Belém que ainda não é realidade. Os Evangelhos falam de Belém em termos proféticos, antes que históricos, e a profecia continua sem se cumprir: Belém continua sendo uma localidade submetida na Cisjordânia palestina, ocupada por Israel. Belém rodeada, isolada por um muro inumano, muro de cimento e de soldados que restringem a liberdade de entrada e de saída de seus habitantes.

Belém é toda a geografia do planeta em sua diversidade e contradições, com seus dramas mais terríveis e com seus sonhos mais belos. É figura de todos os “beléns”: imagem de todas as injustiças e feridas do mundo; ao mesmo tempo, imagem de outro mundo que devemos engendrar, imagem da força do pequeno e do simples, da bondade mais forte, da fé na vida e na humanidade, apesar de tudo.

Não é à toa que Belém significa “cidade do pão”, do pão que falta para tantos, de tanto pão que é desperdiçado, pão da alegria dos comensais, da felicidade, da bondade e da partilha...

Belém é o nome dessa cidade futura de todos os homens e mulheres, de todos os viventes. 

Esse é o Belém da noite de Natal. Os Evangelhos não são crônicas daquilo que alguma vez aconteceu no campo dos pastores, nos aforas de Belém da Judéia. São muito mais profecia daquilo que devemos fazer com que aconteça: que haja “teto, terra e trabalho” para todos. Como os poemas e as profecias, os evangelhos foram escritos para mover o coração a liberar a esperança, a alimentar a liberdade, sempre tão ameaçadas. Não foram escritos para contar o passado, mas para imaginar e suscitar o futuro.

Caminhemos, pois. Diante do Belém de nossa casa, queremos inclinar-nos diante do menino Jesus – profecia da humanidade – como Maria e José. E voltar a sonhar, e que o sonho nos impulsione a construir o Belém de um futuro muito melhor para todos.

Em Belém seremos pacificados de nossas ansiedades de fazer mais e de ter mais, de nossas aspirações de poder e vaidade, de nossas pressas e de nossos estresses; se permanecermos em silêncio ali, diante do menino deitado no presépio, brotará em nós um desejo profundo de sermos mais humanos, de sermos aquilo que já somos e que se faz visível no rosto aberto daquela criança; ao mesmo tempo, brotará um desejo de venerar cada ser humano, de contemplá-lo em seu interior, esse lugar ainda não profanado em cada pessoa, o lugar de sua infância e de sua inocência. 

Há muito que ver em Belém, mas nem todos os olhares poderão acolher o que ali acontece. Há olhares opacos que não se alegrarão, olhares desconfiados que não o entenderão, olhares frios que não vibrarão com a novidade da gruta... Somente os olhares dos pobres e pequenos se admirarão, e a paz do coração será sua recompensa.

“Ver de novo”, ver outras coisas diferentes daquilo que estamos acostumados a ver é também “nascer de novo”. É preciso despertar o “pastor interior” que há em nós, nossa capacidade de atenção à vida, de buscar com outros, de deixar-nos surpreender diante da presença despojada de Deus.

Acostumados a nos deixar impressionar pelo extraordinário e pomposo, somos incapazes de perceber como Deus vem diariamente a nós. O teólogo José Antonio Pagola nos diz que Deus não se deixa aprisionar em nossos esquemas e moldes de pensamento: “Imaginamo-Lo forte e poderoso, majestoso e onipotente, mas Ele se oferece a nós na fragilidade de um pobre menino, nascido na mais absoluta simplicidade e pobreza. Colocamo-Lo quase sempre no extraordinário, prodigioso e surpreendente, mas Ele se apresenta a nós no cotidiano, no normal e comum. Imaginamo-Lo grande e distante, e Ele se faz pequeno e próximo a nós”. 

Texto bíblicoLc 2,1-15 

Na oração: com certeza, o Natal deste ano nos oferecerá a oportunidade de celebrá-lo de uma maneira mais autêntica e cristã. Isto requer uma preparação e processo interior.

- Como você está se mobilizando para celebrar este Nascimento surpreendente, que mudou a história?

Um inspirado Natal a todos!

Pe. Adroaldo Palaoro sj

23.12.2020

Imagem: Bartolomé Murilo