Nós cristãos temos sacralizado coisas, templos, objetos, títulos..., nos quais pensamos encontrar Deus e nos relacionar com Ele. No entanto, como seguidores de Jesus e enraizados no Evangelho, precisamos urgentemente caminhar para a “sacralização”  do ser humano.

 

É chegado o momento de assumir de verdade uma questão capital. O vazio dos templos, o pouco apreço e a baixa estima das práticas piedosas, dos dias religiosos, das coisas da religião... é a ocasião privilegiada que os “sinais dos tempos” nos servem de bandeja, para que caiamos na conta de que está acontecendo um “deslocamento” do sagrado, uma autêntica “metamorfose” do sagrado, que não é um atentado contra a religião e contra Deus. Trata-se, pelo contrário, de uma “recuperação” do sagrado no sentido autêntico dado por Jesus e que se encontra no cristianismo nascente.

 

O verdadeiramente sagrado, que é preciso respeitar e dignificar, é o ser humano, que está no centro da atividade e ensinamento de Jesus e acima das instituições religiosas.

 

A questão está clara. Jesus deslocou Deus dos lugares sagrados, O separou dos objetos sagrados, dos templos sagrados... e O colocou em cada ser humano, O revelou no meio da vida, das relações, do trabalho, da luta, das festas...

 

Este “deslocamento” de Deus é percebido claramente na cena das “Bodas de Caná”,  (Jo. 2,1-12). Em quê consistiu o primeiro “sinal” realizado por Jesus, no evangelho de S. João?

 

Mergulhando mais a fundo na cena damo-nos conta de que a água que Jesus transformou em vinho não era água para os usos domésticos ou, mais precisamente, para usos “profanos”; em outras palavras, não era “água para a vida” (beber, preparar refeições, lavar-se, regar...), mas era “água para a religião”. O Evangelho diz isso expressamente: “Havia ali seis talhas de pedra para a purificação dos judeus, com capacidade de setenta a cem litros cada”. Portanto, seiscentos litros de água, armazenadas em talhas de pedra. Expressa-se, assim, em linguagem metafórica, a enormidade e o peso da religião judaica; representa todo o sistema da observância ritual judaica, que impedia as pessoas viverem mais plenamente.

 

Jesus, na primeira oportunidade que teve, suprimiu a “água da religião”  e transformou-a em vinho, no generoso “vinho da vida”, sinal da abundância de vida e do prazer de viver. Definitivamente, o que Jesus quis dizer, mediante o primeiro dos “sinais”  que realizou em sua vida, foi que a velha ordem religiosa havia terminado. A partir de então, Deus manifesta sua “glória”  de outra maneira. Jesus traça e marca uma nova ordem: Deus deixou de impor e exigir rituais religiosos e purificações sagradas. Em vez disso, Deus se comunica “na vida”, no prazer da vida, na alegria de saborear a vida e a festa, em tudo o que, de maneira espontânea, evoca o melhor vinho que nós, humanos, podemos beber neste mundo.

 

Jesus “des-sacralizou” o templo, o sábado, o sacerdócio, as instituições religiosas judaicas, e “sacralizou” a festa como tempo e espaço de humanização. A “glória de Deus”, a partir de Jesus, não se manifesta mais no Templo, nos sacrifícios e nas solenidades litúrgicas, mas no prazer da festa e na alegria dos amantes que compartilham o melhor vinho. Isso é muito humano! E exatamente por isso é tão divino.

 

Não nos esqueçamos de que tudo isso aconteceu em uma festa de casamento.Essa é a razão pela qual é tão difícil converter-se ao Evangelho. De uma forma ou de outra, todos nós ouvimos, a todos nós chegou a mensagem da religião que prega a ética do dever e da renúncia, da moral, do sacrifício e da mortificação, da superação, da paciência, da privação de todo bem e, acima de tudo, a negação do prazer proporcionado pelo amor entre as pessoas.

 

Ao abolir o “sagrado” das instituições religiosas e do culto, abafadores de tantas injustiças, Jesus inaugura a normalidade do profano, do secular, da vida cotidiana, da vida partilhada e festiva... Nossa cultura e nossa religião nos educaram nessa mentalidade. E não nos explicaram que o verdadeiramente difícil é amar buscando sempre a felicidade da outra pessoa, sua realização, sua alegria, sua liberdade, sem pretender jamais dominá-la, nem fazê-la à nossa imagem e semelhança, em jamais pedir algo em troca. Amar assim, com tal transparência de sentimentos e de intenções, isso é pureza de coração. Por essa razão, aí nos deparamos todos com o grande obstáculo para nos deixarmos deslumbrar pela “glória” do Senhor.

 

Por essa razão, a grande revolução trazida por Jesus, na história das tradições religiosas e da humanidade, consistiu em demonstrar que precisamente a divinização do ser humano consiste em sua mais profunda e radical humanização.

 

Jesus entendeu e viveu a religião “de outra maneira”. Jesus entendeu a religião de um modo que sua forma de praticá-la não se ajustou ao modelo estabelecido até então. Jesus foi um leigo, que não fundou nenhum templo, nem levantou altares, nem organizou uma classe sacerdotal, nem impôs jejuns e privações ascéticas, nem dispôs cerimônias rituais ou purificações sagradas. De nada disso falam os Evangelhos.

 

Pelo contrário, os relatos evangélicos atestam muitas vezes que Jesus teve sérios conflitos com a religião sagrada de seu tempo, a ponto dos sacerdotes daquela religião verem n’Ele um perigo, uma ameaça; ou seja, o perigo e a ameaça que os “sinais” representavam para o “lugar santo” (templo) e sua religião em geral. Sabemos que Jesus disse a uma mulher samaritana que havia chegado a hora em que Deus não é mais adorado neste ou naquele templo. O que Deus quer é a adoração “em espírito e em verdade”.

 

O Deus de Jesus está deveras no templo de sempre: no ser humano. Não podemos imaginar Deus distante do humano, ou, pior ainda, em oposição ao humano e até rival do mais humano que há em nós. Nós cristãos cremos no mistério da “encarnação”. Quando falamos desse “mistério”, estamos nos referindo não só à divinização do ser humano, mas igualmente à humanização de Deus. Jesus nos revela um Deus tão profundamente humano que n’Ele fica desterrada qualquer forma de manifestação de desumanidade. E somente podemos crer no Deus de Jesus na medida, e só na medida, em que sejamos profundamente humanos.

 

Na oração: “Encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”; “Ver Deus em tudo e tudo em Deus”; “Em tudo amar e servir”... são expressões inacianas que revelam uma atitude contemplativa perante a vida.

- Sua experiência de Deus é vivida somente nos tempos de oração-celebração, ou também é sentida no ritmo cotidiano de sua vida?

- Quem é o Deus em quem você crê? É o Deus da lei, do sacrifício, cuja presença atrofia  de tudo o que é humano... ou é o  Deus de ternura, o Deus da vida e da festa...?

 

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI

14.01.2013