“Durante a Ceia... Jesus se levantou da mesa, tirou o manto... e começou a lavar os pés dos discípulos”.
“Não serás amigo de teu amigo até que tenhais comido juntos uma porção de sal”, diz um provérbio árabe. E isso supõe tempo compartilhado, conversação prolongada, confidências entre amigos... Compartilhar a mesa é o grande símbolo da convivialidade, da reconciliação e da inclusão (Is. 25,6-8). A imagem que Cristo escolhe para falar-nos daquilo que é central no Reino é a do banquete, uma refeição festiva. Seu gesto de compartilhar a mesa com as pessoas excluídas prefigurava e preparava a Eucaristia como culminação de algo que foi sendo gestado e vivido naquelas refeições onde os últimos eram acolhidos e tinham um lugar preferencial.
No tempo de Jesus, aceitar alguém na própria mesa de refeição tinha um sentido muito profundo: implicava uma comunhão de ideias, de mentalidade, de forma de agir, de sentimentos sobre as coisas e as pessoas. Cabe aqui perguntar: que sentido estavam dando os apóstolos quando compartilhavam a mesa com Jesus?
Basicamente significava que eles estavam de acordo com Jesus e queriam compartilhar sua forma de pensar e de agir. Caso contrário, não teriam participado da refeição com Ele. O gesto ultrapassa evidentemente o fato de sentar-se juntos a uma mesma mesa e chegava até uma comunhão com o mais precioso que Jesus tinha em seu coração e em seu espírito, com seus sonhos e seus projetos.
A pedagogia de Jesus incluiu a “espiritualidade da mesa”. Ele, antes de fundar uma igreja, fundou a “mesa da vida” (mesa da Última Ceia): mesa da refeição como lugar de comunhão, fonte inesgotável de vida. A comunhão que faz sonhar com a mesa eterna no Reino e desafia seus participantes a viver a partilha como hábito e dinâmica que preserva e promove a vida.
O ritual da mesa rompe as distâncias e garante a proximidade, estabelece o estreitamento dos vínculos com o diferente. Junto à mesa, cada um se coloca diante do outro, não importando as diferenças de vida, opções, modos de ser... A comunhão supõe o rito da inclusão e da partilha. O simples gesto de passar ao outro um pedaço de pão é um gesto despojado de poder, de segundas intenções. A espiritualidade da mesa exala gratidão aos que dela se aventuram em assentar-se. Com isso ela nos interpela a vivermos uma espiritualidade da gratuidade e do serviço de uns para com os outros. Esta é a prova da autenticidade do verdadeiro seguimento de Jesus.
Esta foi a prática de Jesus que mais causou espanto e escândalo: a partilha nas mesas com pobres e pecadores. Literalmente, Jesus foi aquele que “virou mesas” de muitas pessoas e fundou uma outra mesa: mesa da partilha, da festa, mesa da fraternidade onde todos se sentem iguais... Mesa da vida. Trata-se de uma mesa provocativa, questionadora, incômoda... que requer mudança de lugar, de mentalidade, de atitude... Sair da própria mesa e caminhar em direção à mesa dos outros.
Comendo e bebendo com todos os excluídos, Jesus estava transgredindo e desafiando as formalidades do comportamento social e das regras que estabeleciam a desigualdade, a divisão, a exclusão... Jesus revelava uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos... Ele não só transitou por outras mesas, mas instituiu a grande Mesa para a festa, a intimidade, a memória: a “mesa do Lava-pés e da Última Ceia”. Ali, Ele “despoja-se do manto” (sinal de dignidade do “senhor”) e pega o avental (toalha, “ferramenta” do servo). Jesus está no meio dos homens como Aquele que serve.
“Despojar-se do manto” significa “dar a vida” sob a forma de serviço. Jesus coloca toda a sua pessoa aos pés dos seus discípulos. O Criador põe-se aos pés da criatura para revelar como ela é amada e como deve amar. “Levanta-se da mesa” – “senta-se à mesa”: movimento de partida e de chegada; mesa que projeta para o serviço e mesa que faz memória festiva, mesa do encontro
O Lava-pés é gesto ousado que quebra toda pretensão de poder. Jesus viu claramente que o perigo mais grave que ameaça seus seguidores é a tentação do poder. Não há dúvida de que isso é o que causa o maior dano a todos, o que mais nos desumaniza. Por isso, com esse gesto, Jesus expressa que nunca quis agir como o superior que se impõe com poder; do mesmo modo, viu em semelhante comportamento uma conduta radicalmente inaceitável entre seus seguidores. A relação que se estabeleceu entre os discípulos e Jesus não foi de submissão a um poder que manda e dá ordens, mas a do “seguimento” que brota da experiência de sentir-se atraído e seduzido pelo “modo de proceder” do mesmo Jesus.
“Tal Cristo, tal cristão”: na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”. “Vestir o coração” com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença atenciosa, do serviço desinteressado...
O que é “tirar o manto?” Para nós o “manto” poderia ser nossa máscara, nossa redoma, nossa capa de proteção que nos distancia dos outros...; é tudo aquilo que impede a agilidade e a prontidão no serviço... “Tirar o manto” é a atitude firme de quem se dispõe a “arrancar” tudo o que possa ser empecilho para melhor servir; é mover-se, despojado, em direção ao outro; é optar pela solidariedade e a partilha; é renovar a vontade de “incluir” o outro no nosso projeto de vida.
Precisamos “levantar-nos da mesa” cotidianamente. Há sempre um lar que nos espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Há pessoas que aguardam nossa presença compassiva e servidora, nosso coração aberto, nossa acolhida e cuidado amoroso... Ora, se não nos livrarmos do manto, tornar-se-á difícil realizar gestos ousados, criativos...
Sempre teremos “pés” para lavar, mãos estendidas para acolher, irmãos que nos esperam, situações delicadas a serem enfrentadas com coragem... A mesa da vida aponta para a direção da gratuidade, da alegria, do convívio, do amor e da comunhão. É preciso “sentar à mesa” para renovarmos as forças e redobrarmos a coragem de nos levantar e, na humildade, sem manto, servir com amor, do jeito de Jesus. “Levantar-nos da mesa” – “sentar-nos à mesa”: movimento de partida e de chegada; prolongamento do gesto provocativo e escandaloso de Jesus.
Isso é viver a Eucaristia no cotidiano da vida.
Texto bíblico: Jo. 13,1-17
Na oração: Não podemos esquecer que na origem daquilo que celebramos neste dia houve uma ceia de despedida, e que somos convidados não a um espetáculo, nem a uma representação, nem a uma conferência, mas a uma refeição fraterna. E, para participar da refeição, a primeira exigência é “ter fome”.
- “De quê tenho fome? De quê tenho sede?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI
25.03.2013