“Se tua mão, teu pé, teu olho... te levam a pecar, arranca-os”
Com sua presença e ternura, Jesus, no Evangelho deste 26º Domingo do Tempo Comum, quebra as atitudes preconceituosas que delimitam friamente os espaços e alimentam proibições que impedem a manifestação da vida. Para Ele, toda pessoa que favorece a vida, em qualquer situação, é uma “aliada”, está “a nosso favor”. Ou seja, do Reino não se exclui ninguém; todos estão convidados. Todo aquele que sinceramente busca o bem e se compromete com a vida está a favor do Reino.
Jesus reprime a postura sectária, preconceituosa e excludente de seus discípulos, e adota uma atitude aberta e inclusiva, onde o mais importante é libertar o ser humano de tudo o que lhe oprime.
O estreitamento de mentalidade do discípulo João colide com a abertura do coração de Jesus.
Para o Mestre, o que conta é o bem que se faz. Jamais uma simples pertença grupal, uma simples afinidade ou mesmo proximidades culturais e cultuais, podem substituir o bem que se deve praticar. Conta o bem que só pode ser feito em nome de Deus; só Ele é a fonte única do bem. Deus só está presente onde se pratica o bem. O bem que se faz não é, em hipótese alguma, contradição a Deus. A força do bem é a condição única para alargar o horizonte e superar toda atitude preconceituosa estreita.
E o bem se torna valor absoluto, definindo a condição do verdadeiro discipulado.
Ser discípulo de Jesus, portanto, é compreender a vida como altar de ofertas para o bem.
O Mestre da Galileia revela o simples e, aparentemente, tão insignificante ato de oferta de um copo d’água como remédio que cura a rigidez do preconceito e vence a incapacidade de perceber a ternura acolhedora em cada gesto oblativo e sua importância na construção da vida e na recriação da dignidade humana.
Vale um copo d’água que se dá. Vale pela importância sempre primeira do outro, não importa quem quer que seja, fazendo valer o princípio norteador do coração amoroso de Deus.
Jesus rompe toda tentação sectária em seus seguidores. Ele não constituiu seu grupo para controlar sua salvação messiânica. Ele não é rabino de uma escola fechada, mas Profeta de uma salvação aberta a todos. Jesus não é monopólio de ninguém. Todo aquele que está a favor do ser humano está com Jesus. Todo aquele que trabalha pela justiça, pela paz, pela liberdade... está em profunda sintonia com Ele. Há uma infinidade de pessoas de boa vontade que trabalham por uma humanidade mais digna, mais justa e livre. Nelas está atuando o Espírito de Jesus. Devemos senti-los como amigos e aliados, nunca como adversários.
O(a) seguidor(a) de Jesus deve ser sempre fermento de unidade e nunca causa de discórdia e exclusão.
Jesus, como bom Mestre, aproveita da ocasião para denunciar o veneno que mata toda possibilidade para a vivência do bem, do amor, da verdade: é a presença do “escândalo”, tanto no nível pessoal quanto comunitário. De fato, como no tempo de Jesus, também vivemos em uma sociedade de escândalos, que utiliza e destrói os pequenos. Há escândalos de gastos militares, de mentiras políticas generalizadas, de riqueza ostentosa fruto da exploração dos mais frágeis, de corrupção e violência, de poder despótico...
Assim, o evangelho deste domingo situa o grande pecado que consiste em “escandalizar” os pequenos (utilizar, fazer cair, perverter, abusar) no plano social, religioso, econômico, sexual... Trata-se do domínio de vidas e consciências. Nesse contexto Jesus introduz a referência simbólica da mão, do pé e do olho que escandaliza ou destrói os outros, acrescentando que o seu seguidor é capaz de “cortar” a mão ou o pé ou de arrancar o olho, a fim de conservar-se “inteiro” para o Reino (não destruir os outros).
É preciso, portanto, redescobrir a espiritualidade do corpo e de todos os seus membros e órgãos, para sermos presenças compassivas, construtivas e amorosas.
A resposta de Jesus é clara: “Corta tua mão, corta teu pé, arranca teu olho..., renuncia-te a ser o centro para que o outro possa viver e crescer!”.
O corpo é mediação de comunhão, de encontro..., e todos os seus membros devem ser “cristificados”, ou seja, devem inspirar-se na corporalidade de Jesus.
O ser humano é aqui pés, mãos e olhos, em visão ternária que se revela muito significativa. É evidente que o texto poderia ter acrescentado outros exemplos de membros vitais: língua, ouvidos... Mas, os três aqui citados condensam a totalidade humana no plano do fazer, decidir, desejar e são exemplo de um modo de proceder “cristificado” para toda a comunidade cristã.
Em primeiro lugar, “conhecemos Jesus pelos pés”; como peregrino, Ele sempre rompeu distâncias e fronteiras, fazendo-se próximo de todos para curar, animar, elevar, colocar o outro de pé.
Jesus revela que cada passo deve ser uma oração e cada caminhar é um rosário de contas que marcam os caminhos da vida com a fé do caminhante.
Na última Ceia, quando Jesus se coloca aos pés dos seus discípulos, não se trata apenas de um gesto de humildade, mas sobretudo, de um gesto de cura e de amor. Porque não se pode amar alguém e olhá-lo de cima. E também não se trata de olhá-lo de baixo para cima, sendo-lhe submisso.
É preciso colocar-se a seus pés para ajudá-lo a reerguer-se.
Igualmente decisivas sãos as mãos; elas adquirem uma infinidade de formas (mãos estendidas, enérgicas, punho fechado, mãos abertas...). Quando estendemos os braços e tocamos o outro espontaneamente descobrimos a compaixão e a riqueza que existe em todos nós.
Jesus não ama à distância; Jesus demonstra seu amor abraçando, abençoando, tocando...
Tocar ou nos sentir tocados é, em determinadas circunstâncias, a linguagem mais inteligível do amor.
A religiosidade popular está repleta de atitudes que testemunham o fato de que, para quem tem o coração à flor da pele, “orar e tocar” são uma só e mesma coisa.
Orar tocando é como reeditar as palavras de S. João:
“Aquele que nossas mãos tocaram, disso damos testemunho” (1Jo. 1,1).
Por fim, o olhar é o recurso não verbal mais expressivo e sincero que possuímos: com um simples olhar podemos transmitir desde o ódio até uma declaração de amor ou de amizade.
Os olhos são o “reflexo da alma”; muitas coisas que estão acontecendo no nosso interior vão se expressar na maneira como olhamos.
“Cristificar” o olhar é entrar no fluxo do olhar compassivo de Jesus; com seu olhar intenso e penetrante Ele conseguia despertar a dimensão mais nobre e original em cada pessoa. Seus olhares falavam por sí sós, pois transmitiam sentimentos, desejos e afetos, sem necessidade de usar nenhuma palavra.
A revelação bíblica nos diz que Deus vem ao nosso encontro pelo mais cotidiano, mais banal e próximo dos portais: os cinco sentidos, os membros e os órgãos de nosso corpo. Eles são grandes entradas e saídas da nossa humanidade vivida. É preciso aprender a reconhecê-los como “lugares teológicos”, isto é, como território privilegiado não apenas da manifestação de Deus, mas como possibilidade de relação com Ele.
A vida é o imenso laboratório para a atenção, a sensibilidade e o espanto que nos permite reconhecer em cada instante os passos do próprio Deus em nossa direção, suas mãos providentes e cuidadosas que nos sustentam, seu olhar compassivo que nos acolhe. O corpo que somos é uma gramática de Deus: nele aprendemos a andar como Deus, a tocar como Deus, a olhar como Deus...
Texto bíblico: Mc 9,38-48
Na oração: este é um momento para examinar minhas mãos, meus pés e meus olhos: eles são mediação para o encontro ou para o escândalo na relação com os outros?
- Que tenho de arrancar-me, que devo “perder” para não escandalizar, ou seja, para que os outros possam viver?
- Que deve a Igreja arrancar de si mesma para não servir de escândalo aos pequenos?
- E nossa sociedade em geral, nossa política e economia neo-liberal... quê terá de arrancar e cortar para que os pobres possam viver com mais dignidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.09.2021