“Tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino” (Lc 2,17)
“Vede que realizo algo novo; já está brotando, e vós não percebeis?” (Is 43,19)
Foi essa a experiência vivida pelos pastores quando se deslocaram até à Gruta de Belém: viram a “eterna Novidade de Deus” revelada no rosto de um recém-nascido; é do interior de uma gruta que surge um novo tempo, um novo modo de viver, uma nova maneira de olhar as pessoas e a realidade, um novo compromisso... enfim, uma nova humanidade.
Podemos imaginar o momento do primeiro olhar dos pastores no encontro com o Menino Jesus... Surpresa, espanto, comoção, gratidão, alegria…!
Naqueles olhos que se entrelaçam e se contemplam mutuamente, descobre-se o novo olhar de Deus sobre o ser humano, e o novo olhar do ser humano sobre Deus e sobre os irmãos. Deveríamos, ao longo deste novo ano que se inicia, situar-nos diante de Deus desse modo, com mais freqüência, deixando os olhos, os d’Ele e os nossos, se falarem silenciosamente.
O cristão é aquele que conserva límpido os seus olhos interiores, prontos para perceber a maravilha que está sendo gestada em sua vida e ao seu redor. Movido por um olhar novo, ele acolhe a surpresa de Deus, passa a ser surpresa para os outros, com seu gesto de amor imprevisto, com sua palavra que reanima, com sua visita que consola, com sua atenção para com todos os que levam uma vida obscura e monótona.
Nesse “estado interior”, tudo é sempre novo. “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). Não se trata da ação de um Deus que intervém a partir de fora, mas do reconhecimento de que, sempre e em todo momento, tudo é novo, pois “Deus é Presença” em tudo e em todos. Mas só pode saborear isso quem sai do nível da superficialidade, na qual está hipnotizado ou enfeitiçado pelas exigências do próprio ego, e se situa naquela dimensão profunda que é essa mesma Presença.
A capacidade de assombro dos pastores pode ser uma boa disposição para iniciar o Ano Novo. O contrário do assombro é a rotina; o “eu já sei” ou “sempre foi assim” nos faz imunes ao milagre cotidiano da vida e seus sinais. Precisamos continuar aprendendo a olhar com profundidade a realidade em seus gestos peque-nos e dirigir nossa atenção para aquilo que, muitas vezes, nossa lógica racional, invisibiliza ou despreza. Talvez, só assim entraremos em sintonia com o mistério do Amor que tudo habita e faz tudo novo.
A maior “novidade” que ninguém podia esperar é colocada nas mãos dos pobres e simples, aqueles que nunca tiveram uma oportunidade de serem escutados e valorizados. Mas, surpreendentemente, serão eles os mensageiros autorizados da transmissão da Novidade de Deus.
Aqueles pastores, surpreendidos em meio ao trabalho, são convidados a sair, a deixar sua cotidianidade para abrir-se à novidade de um Deus que irrompe em suas vidas para transformá-las. Ao chegar no lugar onde estão Maria, José e o recém-nascido, imediatamente eles os reconhecem e sua alegria se converte em proclamação entusiasta daquilo que viram e ouviram. Seu anúncio é tão convincente que todos aqueles que os ouvem ficam impactados por seu testemunho.
Aquela noite, à margem dos grandes centros e dos interesses humanos de poder e vaidade, revelou-se como uma noite cheia de “encontros e conexões”, onde deu-se início a uma nova rede de comunicação acessível a todo aquele que, de boa vontade, deseja entrar nela. É um sistema protegido pelo Espírito do Senhor, de alta fidelidade, que nunca cai, mas que é preciso entrar nele livre de vírus: do ódio, da intolerância, do preconceito, da busca de poder, vaidade...
A imagem dos pastores pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, redescobrir com urgência o encontro humanizador como valor ético e como hábito permanente de vida. Somos chamados a viver o encontro como um estilo de vida, fundado no encontro de Deus com a humanidade.
O encontro, que nos faz sair de nós mesmos, nasce da compaixão e nos leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa para superar toda divisão e conflito
A experiência da Gruta, lugar onde se visibiliza o “novo” de Deus, nos mobiliza a levar adiante a missão, a ir aos lugares do mundo onde há mais necessidade e ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto.
Esta é a dura contradição que estamos vivendo neste início de ano: se, estar separados fisicamente de nossos seres queridos e vizinhos é o mais eficaz para combater a pandemia, precisamos, então, buscar outras expressões de proximidade para que essa distância não se converta em ecossistema e modo de vida. A distância sanitária não pode servir de cortina de fumaça para reforçar outras distâncias que se abrem diante de nós, no campo social-político-religioso-cultural...
Não podemos deixar que o mistério natalino se dilua em meio às distâncias artificiais que desumanizam. Hoje, mais do que nunca, devemos celebrar e recordar que juntos, orientados pela Luz que procede de uma Gruta, poderemos enfrentar, com criatividade, toda e qualquer crise que nos venha. Talvez, esta pandemia nos oferece uma ótima oportunidade para crer e viver isso, de verdade: de transformar declarações ocas em atos sólidos, de resumir tudo o que é a humanidade numa só palavra: proximidade.
Proximidade com aqueles que sofrem, com aqueles que buscam um mundo melhor, com aqueles que estão à frente no combate à pandemia, com aqueles que foram excluídos... Em meio a um mundo onde a distância e a suspeita crescem e se enraízam, a solidariedade é a alternativa de proximidade e colaboração que todos precisamos. O mundo precisa de místicos(as) que descubram onde está Deus criando algo novo, para proclamar esta boa notícia.
À luz da Gruta de Belém podemos afirmar: fisicamente distanciados é quando nos sentimos mais próximos.
Para realizar esta nobre missão, não podemos permanecer sentados. Seguir Aquele que nasceu nas periferias da humanidade exige de nós uma dinâmica continuada, um colocar-nos a caminho em direção às margens. Não podemos nos situar diante da Gruta da Vida a partir de uma cômoda instalação pessoal. A disponibilidade, o despojamento e a mobilidade são exigências básicas.
Como seguidores(as) de Jesus, nosso desafio não é fugir da realidade, mas aproximarmos dela com todos os nossos sentidos bem abertos para olhar e contemplar, escutar e acolher, percebendo no mais profundo dela a presença ativa do Deus que nos ama com criatividade infinita.
Neste dia, fazemos memória dos humildes pastores que se deslocam para uma gruta e vivem um encontro surpreendente; eles se fazem próximos d’Aquele que tomou iniciativa para se aproximar de toda a humanidade. Tal mistério deve nos inspira a provocar encontros e diálogos que ajudem a integrar, a reunir, a religar, a articular o tecido comunitário. Há tantas vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas... esperando por sinergia. Na verdade, o Nascimento de Jesus provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para se expandir em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do “Reino de Deus”.
Texto bíblico: Lc 2,16-21
Na oração: entrar na Gruta requer uma atitude de reverência para deixar-se impactar pelo Deus “que se faz sempre Novo” e que nos move a sonhar e construir o “novo” na nossa história.
- qual é o “novo” que você está vislumbrando no seu horizonte pessoal, social, familiar, eclesial...?
A partir deste humilde espaço por onde flui minhas reflexões dominicais,
deixo ressoar a expressão: “feliz Tempo Novo de Deus!”.
Se conseguirmos que 2021 seja “novo” com a eterna novidade do amor e da bondade,
então também teremos um ano feliz.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.12.2020
Imagem: Gerrit Van Honthorst - The adoration of the shepherds