“Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas” (Lc 10,34)

Toda parábola apresenta-se como uma narrativa breve, de uma beleza especial, fácil de ser guardada na memória dos ouvintes, que podem continuar ruminando seu significado. Normalmente, quem a narra, não faz aplicações concretas, nem apresenta uma “lição de moral”; pelo contrário, deixa aberto o caminho para a criatividade daqueles que a escutam, para que tirem suas conclusões pessoais.

A parábola do “bom samaritano” é inspiradora para a construção de uma nova cultura comunitária, inclusiva e solidária. Nesta narrativa, além do legista curioso, há uma série de personagens e suas atitudes: um homem, os bandidos, um sacerdote e um levita, um samaritano, um dono de hospedaria, tudo determinado por um caminho de “descida” que esconde armadilhas para pessoas que seguem sozinhas pela vida.

A parábola de Jesus des-cobre, re-vela e des-vela uma doença que, no fundo, são os nossos estilos de vida, onde já não há mais lugar para o humano, não há lugar para o encontro, não há lugar para o transcendente, não há lugar para uma vida interior rica... Mesmo no campo religioso, tudo é cronometrado, tudo é apressado. Carecemos de uma vida mais intensa de relações, de proximidade, de abertura ao diferente.

Muitas vezes estamos fisicamente próximos uns dos outros e, ao mesmo tempo, completamente ausentes, frios, insensíveis; outras vezes encontramo-nos e só esbarramos uns nos outros; somos ilhas e não uma comunidade compassiva. O desafio é restabelecer os vínculos humanos de proximidade e de acolhida, do outro, sobretudo aquele que é diferente e que está estendido à beira da estrada da vida.

Na sua essência, o ser humano é um “ser de relações”, está comprometido com os outros; por sua própria natureza, ele se torna pessoa humana somente em interação com os outros; ele possui impulsos naturais que o levam em direção ao convívio, à cooperação, à comunhão...; ele é reserva de humanidade, de compaixão, de bondade... que se expressa numa vida comprometida com a dignidade humana.

Vive-se continuamente em contato com o “outro”. E o outro é pessoa; o outro revela certa magia, ao mesmo tempo sedutor e enigmático; o outro é plural, apresenta múltiplos rostos; é diferente, inédito...

O relato da parábola deste domingo apresenta um doutor da lei, ou seja, um personagem considerado “justo” no imaginário da época, que faz a Jesus a única pergunta verdadeiramente importante: “Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?”  Lucas utiliza um termo preciso, “herdar”: trata-se de um bem que não é merecido, mas, como a herança, só pode ser recebido.

Jesus, como bom pedagogo, não responde diretamente à pergunta, mas convida o próprio interlocutor a encontrar a resposta. E, de fato, o doutor da lei é perfeitamente capaz de fazê-lo, unindo dois textos da Torá: a vida é herdada quando se ama a Deus e o próximo.

Diante da nova pergunta – “E quem é o meu próximo?” – Jesus responde apresentando uma cena da vida bem conhecida. A estrada entre Jerusalém e Jericó era um lugar muito perigoso para quem se aventurava sozinho, e não raramente, caia em ciladas e emboscadas, colocando-se em risco a própria vida.

O primeiro personagem da parábola não possui características particulares; ele é um “homem”; nenhum esclarecimento sobre linhagem, filiação religiosa ou moralidade. A única característica sobre a qual Jesus insiste é que este homem foi vítima de violência e que morrerá se não encontrar ajuda. Em seguida, Jesus apresenta dois personagens que, por acaso, se deparam com o infeliz. E aqui o texto deixa claro a identidade deles: são pessoas respeitáveis, religiosas, um sacerdote e um levita; ambos têm a mesma reação: passam adiante. A filiação religiosa e a capacidade de viver a fraternidade não coincidem. Por fim, entra em cena um personagem que não tem nada de atraente, ele é um samaritano, pertencente a um povo desprezado pelos judeus porque se corromperam unindo-se a outros povos e às suas tradições, negando a fé dos seus pais.

A parábola do samaritano pode ser iluminada por aquela exortação/súplica de Jesus: “eu quero a misericórdia e não sacrifícios” (Mt 12,7) e que aponta para dois modos de conceber e viver a religião (a relação com Deus e com o outro); uma, vivida com o coração voltado para os miseráveis (cor-miser) e a outra centrada no culto e nas leis. E recordemos que Jesus conta a parábola quando lhe é perguntado sobre o essencial para herdar a vida eterna. A urgência de atender alguém que jaz prostrado à beira do caminho não pode ser esvaziada por nenhuma desculpa possível, por mais “religiosa” que seja: o sacerdote e o levita não ficam justificados, porque não têm justificativas válidas aos olhos de Jesus. Ambos chegaram pontualmente ao Templo, mas estavam vazios, porque Aquele a quem buscavam jazia, agonizando, à beira do caminho.

A religião cristã não se define por seus dogmas, doutrinas, ritos, leis..., mas por se “fazer próxima” de quem está à margem. Implica entrar no fluxo da “proximidade” de Deus, que rompe as distâncias e vem ao encontro de todo ser humano. Deus tem mais facilidade de se fazer próximo através das feridas, fracassos...

Se Jesus disse que quem passou ao largo foram um sacerdote e um levita, os profissionais da religião, o que na realidade está dizendo é que a religião, muitas vezes, desvia a atenção e o interesse das pessoas, fixando-se em normas, ritos, sacrifícios que não alimentam uma sensibilidade solidária para com aqueles que são vítimas e estão à beira das estradas; com isso, a prioridade da religião é justificada sobre qualquer outra coisa, mesmo que seja a vida ameaçada, a injustiça sofrida, a dor humana extrema. Por isso, tantas vezes, o centro de atenção dos “encarregados” da religião está no culto sagrado, na adoração a Deus, que, na lógica deles, são práticas que devem estar acima daquilo que é meramente humano.  No entanto, para Jesus, a necessidade humana vem antes da observância religiosa; esta, só tem sentido quando é expressão de uma presença compassiva e quando mobiliza as pessoas a se aproximarem e se comprometerem com as vítimas, ou seja, os excluídos, os feridos e desamparados.

Toda parábola tem também uma ressonância em nosso interior e os seus personagens são nossos espelhos; neles, nos vemos. Na parábola do “bom samaritano”, somos todos os personagens ao mesmo tempo. Eles nos habitam. Somos todos caminhantes e no caminho nos encontramos com pessoas feridas, isoladas, abandonadas por pessoas, pelo sistema, pela religião... Com qual deles nos identificamos? Qual deles queremos ser de verdade, para além da nossa função e da nossa autoimagem?

No fundo só seremos samaritanos se nos tornamos próximos, irmãos, compassivos. Só seremos o que somos de verdade se acompanhamos o ferido. Pois, todos somos caminhantes e companheiros de caminho. Cada um vai por seu próprio caminho, é verdade e assim deve ser; mas todos os nossos caminhos, por mais diferentes que sejam, se cruzam um dia, a cada passo, em cada palmo de terra comum. A vida de todos é a mesma vida. O Espírito que nos habita e nos faz viver é o mesmo que atua em tudo e em todos.

Só respiraremos se nos deixarmos inspirar, alentar, levar pelo espírito universal da luz e da compaixão, o espírito do consolo e da esperança. E só então poderemos romper nossos próprios isolamentos, sanar nossas próprias solidões e feridas, exercitar nossa solitude sanadora, nosso ser solidário.

Em chave de interioridade, o encontro com o “samaritano” desperta o nosso ser samaritano; é preciso deixar que ele transite pelas dimensões feridas de nossa existência. Há muitas situações prostradas em nosso “eu interior”: feridas, fracassos, traumas, crises, sentimentos feridos... que não foram acolhidos e nem integrados. Nosso ser samaritano, portador do óleo de vida, vai ungindo e aliviando nossos feridos, acolhendo-os na hospedagem de nossa existência.

Quem ativa seu ser samaritano e transita pelos caminhos da exclusão interior, também sentirá despertar uma sensibilidade solidária para com aqueles que estão prostrados à margem da vida.

Texto bíblico:  Lc 10,25-37

Na oração: - Como reajo frente à surpresa e aos imprevistos da vida? Em quê situações passo ao largo, e por quê?

- Em que sou parecido ao sacerdote e ao levita?

- Que traços do bom samaritano os outros poderão descobrir em meu comportamento? Em quê projetos solidários estou colaborando atualmente?

- Tenho muitas tarefas a realizar, demasiados compromissos que não deixam espaço à gratuidade nem à surpresa inesperada e incontrolável?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

10.07.2025

imagem: Van Gogh