“Mestre, esta mulher foi flagrada cometendo adultério. Moisés, na Lei, nos mandou apedrejar tais mulheres.

E tu, que dizes?”  (Jo 8,4-5)

 

Segundo o Papa Francisco, “onde há misericórdia, aí está presente o Espírito de Deus; onde há rigidez, aí estão seus ministros”.  Jesus percebeu algo muito sério nesta inclinação que temos de julgar as outras pessoas. É escandalosa a capacidade do ser humano causar dano aos outros; e dentro desse dano infligido às pessoas, ocupa um lugar de destaque o juízo gratuito, a desqualificação e a condenação.

 

Não podemos negar: todos temos vocação de juízes; todos somos peritos em alimentar um tribunal interior. Onde a lei ocupa o centro, ali não há possibilidade de nova oportunidade de vida. As boas relações entre pessoas só são possíveis quando os que se relacionam entre si não se julgam uns aos outros. Quando alguém sabe ou suspeita que os outros lhe estão julgando, e lhe estão julgando mal, a relação humana se complica, possivelmente se envenena, e termina por fazer-se insuportável. É muito duro ir pela vida sabendo que há alguém que pensa mal do outro, que o julga e o condena.

 

Todos sabemos que, por detrás de tanto juízo e condenação – como no Evangelho que lemos hoje -, parece indicar uma insegurança radical, que se disfarça justamente de segurança absoluta, fundada na lei, onde a pessoa chega a pensar que possui a verdade e que os outros estão no erro.

 

A necessidade mesma de ter razão e de acreditar ser portador da verdade é indício de uma insegurança de base que se torna insuportável. Por isso, o fanatismo religioso revela insegurança camuflada, do mesmo modo que o afã de superioridade esconde um doloroso complexo de inferioridade, às vezes revestido de “nobres” justificações.

 

Quando alguém se eleva em juiz da vida dos outros e, além disso, se considera com conhecimentos e o suficiente critério para condená-los, o que realmente faz é usurpar o lugar que corresponde a Deus. Por isso é tão frequente que as pessoas que se consideram mais próximas a Deus e aos princípios da estrita observância moral são os juízes mais implacáveis. Sem dar-se conta, ocupam o lugar de Deus.

 

No evangelho de hoje(5º dom.quaresma), o pressuposto de Jesus é que ninguém pode ser identificado com seus atos exteriores, ou com suas aparências. Dentro de cada um, existe um mistério profundo e impenetrável, cujo conhecimento é reservado unicamente a Deus. É preciso respeitá-lo, sabendo que, por detrás de cada ato humano, existe uma história que nos escapa. Deixemos que Deus seja Deus e que Ele tenha a última palavra. Ele conhece cada pessoa, na sua intimidade. Por isso, não corre o risco de se enganar. É com misericórdia que ele pesa as ações humanas; por isso Ele salva sempre.

 

O relato de João, indicado para a liturgia deste domingo, põe em confronto duas maneiras diferentes de reagir perante a “mulher pecadora”: uma, de acolhida e proximidade; outra, de julgamento e distância. De um lado, os olhares julgadores dos escribas e fariseus se voltam para a mulher, ao mesmo tempo que a atenção repreensiva concentra-se sobre Jesus, buscando motivos para também julgá-lo. Por outro lado, entre o Mestre e a mulher se instaura uma surpreendente compreensão e acolhida: nada de julgamento e condenação. Mesmo sentindo-se julgada e condenada por aqueles que se apresentavam como os legítimos intérpretes da Lei de Moisés, a mulher encontrou e descobriu, nas palavras e na pessoa de Jesus, de modo novo e fascinante, o rosto misericordioso de Deus, a ponto de sentir seu abraço paterno. Ela sentiu-se seduzida por Jesus, o “justo”, o amigo dos publicanos e dos pecadores.

 

 A maneira misericordiosa de Jesus se fazer presente junto à pecadora, mobiliza esta mulher a fazer da sua vida de erros um trampolim para a sua humanização. Jesus não contabiliza os pecados, não classifica as pessoas em puras e impuras. Ele abraça a realidade em sua totalidade, integrando-a.  Ele acolhe e celebra a vida em sua totalidade. Não foi o passado de erros da mulher que determinou a atitude de Jesus para com ela, pois Ele não se deixa determinar pelo passado.

 

Jesus tem um coração expansivo, voltado para todas as direções, onde quer que se encontre a realidade limitada e frágil. O encontro com Ele não desperta sentimentos de culpa; as pessoas podem retirar-se em paz. Jesus faz da misericórdia o verdadeiro evento divino. Nele, a misericórdia torna-se o dom constitutivo não só do divino, mas também do humano.

 

Enquanto os escribas e fariseus não entendem a ternura e a acolhida de Jesus para com a mulher, esta, ao contrário, conhece o mistério inefável da Misericórdia e abandona-se a Ele. Libertada de seu passado e amada, a mulher sente-se devolvida à vida, levando consigo no coração um dom inesperado: o perdão, que a inunda de paz e alegria. A pecadora, atraída pelo amor terno e misericordioso de Jesus, finalmente experimenta a gratuidade e a doçura da misericórdia para consigo mesma. Ela muda a sua vida quando percebe ser amada por um amor envolvente, gratuito, antecipado. Assim, ela se torna uma nova parábola da ternura e da misericórdia de Deus.

 

A mulher estava preparada para a morte, mas Jesus a despede viva, abrindo uma nova possibilidade de futuro. É notável como Jesus encarna a atitude de rejeição ao pecado e amor ao pecador. Isto foi magistralmente expresso por S. Agostinho, quando ficaram sozinhos Jesus e a mulher: “Só ficaram dois, a miserável e a misericórdia”.

 

Onde impera a Lei, não há futuro, só julgamento; onde a Misericórdia encontra espaço ali a vida tem nova chance. Os acusadores acreditavam estar seguros, fundamentados na lei e na sua consciência. Mas Jesus, sem julgá-los, os conduz também a um nível mais profundo, apelando a que se olhassem a si mesmos, para que vissem que eles estavam condenando a mulher porque tinham medo, se sentiam inseguros e necessitavam descarregar sua agressividade.

 

Por isso, Jesus não se comportou como juiz, nem com relação à mulher, nem com relação aos cúmplices, nem com relação aos acusadores e aos curiosos, mas se situou em um plano mais alto: no nível da misericórdia de Deus, que envolve esta mulher e, por meio dela, a todos os que a acusavam. Uns e outros devem reconciliar-se e iniciar uma vida em gratuidade, criando condições distintas de convivência, uma história de gratuidade não impositiva.

 

Texto bíblico:  Jo 8,1-11

 

Na oração: Ser misericordioso é não aprisionar o outro nas consequências negativas de seus atos. A misericórdia é a própria condição para que nossa vida seja vivida de uma maneira nova. Fora do fluxo da misericórdia a vida se torna impossível de ser vivida.

 - “O que é que eu não perdôo no outro? O que é que eu não consigo perdoar em mim mesmo?

- O que é que em mim pode perdoar?

- Que força é esta que me atravessa e que, passando pela justiça, me conduz à misericórdia?

- Pedir maior consciência do Amor Misericordioso do Pai; que cada um possa deixar-se surpreender pelo Amor criativo do Pai... e participar em sua festa de reconciliação.

Ao mesmo tempo, pedir um coração desarmado, pronto a re-criar (perdoar é re-criar, é dar oportunidade para alguém viver de novo).

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Casa de Retiros Vila Kostka- Itaici-SP