“Se o grão de trigo que cai na terra não morre, permanecerá só; mas, se morre, produz muito fruto”.

 

Declaração impactante e central na mensagem de Jesus. Qual é a pérola de grande valor que se esconde por detrás desta afirmação? O sentido profundo está na descoberta de que só existimos na medida em que nos doamos aos outros, que a razão de nossa existência a encontraremos na entrega e no serviço. Só através de contínuas perdas e mortes é que poderemos ter acesso à verdadeira Vida.

 

O transcurso de nossa vida é uma inevitável sucessão de perdas e mortes;  aceitá-las é dar-nos conta de nossa limitação fundamental como criaturas, como seres vivos, e descobrir a possibilidade de ser mais naquilo que temos de especificamente humano.

 

As perdas e mortes  trazem mudanças para a vida em suas raízes: o que antes era o centro de nossa vida (uma pessoa, uma posição, um trabalho, um estilo de vida...) já não existe; nossa vida já não voltará a ser a mesma, pois o que antes nos dava identidade, sentido e direção, conforto e apoio, desaparece.

 

A função das perdas e das mortes é libertar-nos para avançar para o futuro, não nos deixando determinar pelo  passado. Então elas, uma vez aceitas e acolhidas, se convertem em um dom precioso. Já não somos os mesmos de antes, mas podemos nos converter em uma pessoa completamente nova. Estamos na disposição de aprender precisamente quando não temos nada, quando parece que não nos sobra mais nada. E é que possuímos no mais profundo de nós mesmos algo que ninguém pode nos tirar e que é impossível perder: dons em abundância nunca descobertos nem tocados antes, um desejo que está esperando que lhe abramos a porta, uma inspiração pronta a se tornar realidade...

 

Esta ideia de “morrer para produzir fruto” é original de João. Sabemos que o grão de trigo morre no acidental e revela o essencial: na semente há vida, mas está latente, esperando a oportunidade de expandir-se. Comunicar Vida foi a missão de Jesus;  por isso, sua mensagem  não implica um desprezo à vida, mas pelo contrário, só quando nos atrevemos a viver intensamente, dando pleno sentido à vida, alcançaremos a plenitude à qual somos chamados.

 

A vida não se perde quando se converte em alimento da verdadeira Vida. A vida humana chega à sua plenitude quando transcende o puramente natural. O biológico não fica anulado pelo espiritual, mas potenciado e “plenificado”.

 

O grande segredo revelado no Evangelho, é que o ser humano, partindo da vida biológica aspira outra realidade que chamamos Vida. Esta é a verdadeira meta do ser humano. O sentido dessa Vida com maiúscula está em destravar todas as ricas possibilidades de plenitude que pulsam por expressar-se e que se encontram no mais profundo de nossa interioridade.

 

Se investimos todas as nossas energias na vida minúscula (apegos, medos, resistências...) nunca descobriremos a Vida maior. Aquele que se empenha a todo custo em salvar sua vida menor, terminará perdendo-a. Mas dará pleno sentido a esta vida se descobre e ativa outro nível mais profundo e encontrar a verdadeira Vida. Estamos aqui para pôr Vida onde só há vida.

 

Se queremos dar fruto, ou seja, dar sentido à nossa existência, teremos que nos desgastar, consumindo-nos. A vela só adquire sentido quando está acesa; mas se está acesa, ela se consome. A rosa, ao espalhar sua fragrância, entrega algo de si mesma; e assim está manifestando seu verdadeiro ser.

 

A vida é movimento e, portanto, energia expansiva. Podemos consumi-la em benefício do ego (falso eu) e então vem o fracasso. Podemos consumi-la em benefício dos outros e da causa do Reino, e então, consumá-la, dando-lhe plenitude. Ter apego à própria vida é destruir-se, é desprezar a própria vida. Entregar a vida por amor não é frustrá-la, mas levá-la a seu completo êxito.

 

Aquí há uma inversão na lógica natural das coisas; ganha-se quando se perde, vive-se quando se morre, multiplica-se quando se divide.

“Morrer” e “perder” é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada, trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna.

 

Uma vida pensada sem “mortes” e sem “perdas” acaba-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.

 

“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter). Pois vida é um contínuo despedir-se e partir; ela nos desaloja de nossos “lugares estreitos” e nos faz caminhar em direção a novos horizontes.

 

Alguém já afirmou que a morte é a realidade mais universal, pois todos morrem, mas nem todos sabem viver. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia-a-dia, carregá-la de sentido. A maior perda da vida é aquilo que “resseca” dentro de nós enquanto vivemos: sonhos, criatividade, intuição. A vida é fecunda, é um turbilhão energético, é explosão de criatividade, é potencialidade.

 

Mais ainda: tudo aquilo que fomos desenvolvendo no centro de nós mesmos (valores, a esperança, a busca, a absoluta confiança em Deus, os sonhos...) está agora em nós como o ouro escondido em uma mina, para ser extraído, contemplado e admirado e para brilhar como nova vida. Temos em nós o material da vida ainda bruto para ser lapidado.

 

Com frequência, só a perda permite valorizar toda essa riqueza acumulada. Privados da segurança do passado, livres dos “afetos desordenados”, estaremos livres para encontrar em nossa interioridade a força espiritual que nos permite viver de um modo expansivo. A perda é, ironicamente, a ocasião da novidade, a porta aberta para outras dimensões da interioridade que ainda permanecem em estado letárgico em nós, mas nelas está pulsando a vida.

 

Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte e na perda anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição. A Vida é fruto do amor, mas o egoísmo é a casca que impede germinar essa vida, mesmo que esteja dentro de cada um de nós. Amar é romper a casca e doar-nos, desfazendo-nos, consumindo-nos.

 

A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira Vida se liberte. É preciso passar pela morte do que é terreno, caduco, transitório (paixões, apegos desordenados...) para deixar emergir a vida interior, a vida divina, a vida de Deus em nós.

 

Quaresma é um convite a começar outra vida, a concentrar nossas energias e nos deslocar em outra direção. A vida não é um caminho só: são muitos caminhos, muitos deles inexplorados; e quando chega a perda (romper a casca), Deus como criador vem a nós abrindo-nos caminhos que podem nos conduzir para a nova criação que Ele tem começado em cada um de nós. Por isso, temos que continuamente nos perguntar: o que ainda existe em nós sem terminar e  que está começando a ser?

 

Todo caminho escolhido não nos deixa formatados e fechados; ele é ocasião para ampliar nossa vida e permitir que “Aquele que começou em vós a boa obra, a levará termo até o dia de Cristo Jesus” (Fil. 1,6)

 

Texto bíblico:  Jo 12,20-33

 

Na oração: Quando vou começar a viver como ressuscitado? Há na vida muitas coisas – pequenas ou imensas  – que vão morrendo e nascendo de novo, diferentes, melhores, reconciliadas...

Há sepulcros esperando esvaziar-se, em mim e nos outros.

Quais são minhas pequenas mortes, meus espaços sepultados, minhas feridas incuradas?...

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI