“Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la” (Jo 6,60)

O ser humano precisou de milhares de anos para desenvolver um sistema de comunicação tão complexo como a escrita e a palavra que manejamos hoje em dia, muito provavelmente, como parte de sua busca de transcendência, de seu interesse por deixar pegadas, por sobreviver em sua memória. Essa memória falada e escrita, pessoal e coletiva, é riqueza para continuar avançando. Somos o que somos pelo que falamos e pelo que escrevemos.

As palavras, por sua natureza, são ambíguas; podem brotar das profundezas mais sadias de nosso ser (palavras de vida) ou das regiões mais petrificadas e fétidas de nosso interior (palavras de morte); com elas nos humanizamos ou nos desumanizamos; através da palavra criamos ou destruímos, nomeamos ou eliminamos. Com a palavra podemos estabelecer um diálogo construtivo ou envenenar toda possibilidade de encontro e acolhida. As palavras elevam e afundam, constroem e destroem. Com elas se movem os sentimentos, os corações, as vontades. Podem ser usadas para formar ou deformar, para informar, manipular ou coagir. As palavras reforçam e fazem o outro sentir forte ou aumentam a fragilidade e o sentimento de vulnerabilidade. As palavras aproximam as pessoas construindo pontes ou afastam construindo muros e abismos. As palavras podem ser um canto que embeleza e estimula o coração ou podem provocar consequências devastadoras nas relações.

Com as palavras acompanhamos o outro em processos de pacificação e reconstrução de si mesmo, ou alimentamos o rancor e o ressentimento. Com pouco arsenal, as palavras são uma arma com imenso poder de destruição como as “fake News”, o ódio, a intolerância e o preconceito.

Hoje as palavras estão se enfraquecendo cada vez mais, feridas de morte. Palavras como participação, ética, democracia, povo, liberdade, amor, justiça... são usadas e abusadas tanto, conferindo a elas significados tão diversos, dispares e interessados que terminam convertendo-se em meros fetiches, palavras infladas e ocas, sem nada dentro. Quê quantidade de palavras costumamos dizer para, em muitas ocasiões, não dizer nada!

Vivemos cercados por uma aluvião de palavreado crônico que tem seus efeitos colaterais, ou seja, não só a palavra do outro acaba perdendo seu valor, como também a nossa própria palavra, que passa a ser uma a mais em meio a este oceano de vozes e palavras; torna-se “palavra líquida”, pois escapa pelos dedos sem deixar marcas. Palavras que sobram, palavras que faltam, palavras que dizem, palavras que escondem

Há palavras que é melhor não dizer, porque não são necessárias, porque julgam sem tentar compreender, porque são falsas; palavras de maledicência ou de crítica injusta, de fofoca e de condenação; palavras desnecessárias, ou conversa-fiada para preencher silêncios que assustam; palavras de zombaria que ignoram a dor do mais frágil; palavras que apunhalam pelas costas.

Para que a palavra dê fruto, não podemos nos contentar só com o fato de purificar a motivação quando a usamos, pronunciá-la no momento adequado, torna-se oportuna para aliviar, lubrificar, confrontar...; mas, também é preciso também apurar os ouvidos para escutá-la, acolhê-la com respeito, abrir espaço para que desperte ressonâncias em nosso interior. A palavra deve ser acolhida com disposição para deixá-la que se faça fecunda. E escutar, princípio de toda palavra, pede tempo, paciência, ausência de protagonismo e levar a sério o outro. Como dizia Amado Nervo, “o sinal mais evidente de que se encontrou a verdade é a paz interior”, ou, como dizia Jesus, “a verdade vos libertará”. A verdade liberta das próprias falsidades e arrogância, dos medos e ataduras.

O Evangelho de hoje pode ser uma estupenda ocasião para esquecer velhas palavras desgastadas pelo uso, pronunciadas para afirmar nosso ego ou para conseguir aprovações alheias... e substitui-las por palavras essenciais, nascidas do espírito, que saem do coração e se dirigem ao coração dos outros, fazendo ressoar neles um eco da expressão proferida por Pedro: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna”.

Ele sente que as palavras de Jesus não são palavras vazias nem enganosas. Junto a Jesus descobriram a vida de outra maneira. Sua mensagem lhes abriu à vida eterna. Com que poderiam substituir o Evangelho de Jesus? Onde poderiam encontrar uma Notícia melhor de Deus?

Pela primeira vez Jesus experimenta que suas palavras não têm a força desejada. No entanto, não as retira senão que reafirma mais ainda: “As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não creem” (Jo 6,63). Suas palavras parecem duras, mas transmitem vida, fazem viver, pois contém Espírito de Deus.

Jesus não perde a paz; o fracasso não lhe inquieta. Dirigindo-se aos Doze, faz uma pergunta decisiva: “Vós também quereis ir embora?”. Não os quer reter pela força; deixa-lhes a liberdade de decidir. Seus discípulos não devem ser servos, mas amigos. Se quiserem, podem voltar às suas casas.

Também hoje, as palavras de Jesus continuam nos provocando, nos chamando, desvelando nossas incoerências e contradições internas. Elas podem nos assustar quando nos sentimos incapazes de segui-lo com mais intensidade; elas nos inquietam quando pedem renúncia de nosso próprio ego. São palavras que falam de seguimento e radicalidade, de paixão e entrega, de morte e de Vida. Palavras inspiradoras e, ao mesmo tempo, provocativas, pois nos arrancam de uma vida estreita e petrificada. Palavras que despertam o melhor que há em nosso interior, humanizando-nos e humanizando nossas relações. Palavras que fazem brotar uma “palavra nova e original” de nosso ser profundo, revelando nossa verdadeira identidade. Por isso, as palavras nobres de Jesus não podem ser domesticadas e manipuladas segundo nossos interesses.

É preciso valentia para deixar que cada palavra d’Ele cale fundo, para vivermos com mais seriedade, para deixar que nos desnude um pouco mais, para revestir-nos do modo de proceder d’Ele.

É no encontro com as palavras de Jesus que temos a chance de recuperar a força e o sentido de nossas palavras, de torná-las oblativas, abertas e portadoras de vida. “Palavras cristificadas”, pois revelam a força da cura, do cuidado, da benção, do perdão...

É preciso unir Palavra e silêncio, para que cheguem ao mais profundo de nosso núcleo essencial, sempre insondável, buscando a Fonte que mana em abundância e sai à superfície, cantarolando e fecunda.

Assim, nossa palavra, viva em Jesus, sussurrada pelo mesmo Espírito d’Ele, torna-se como um rio caudaloso que salta qualquer obstáculo, leva vida às margens e nos impulsionam em direção ao Grande Oceano. Uma palavra que se revela como um bálsamo relaxante, remédio doce que acalma, embeleza e faz recordar sadiamente, que insufla ânimo e vida no nosso próprio corpo. Palavra que se manifesta como um grito de envio que nos lança em direção às pessoas, para partilhar, amar, curar...; uma revelação que ilumina nossas incertezas ou que nos enche de alegria. Só assim, o Evangelho se torna sempre boa notícia que fala dos outros, de nós, de Deus, de tudo...

Texto bíblico:  Jo 6,60-69

Na oração: Cave palavras nas minas do seu silêncio, palavras carregadas de sentido e de ânimo.

Silêncio para poder dialogar com seu eu profundo, para ver o que há por detrás de suas palavras, de seus sentimentos, de suas intenções... Silêncio para tentar ir ao coração de sua verdade. Pois somente o silêncio poderá germinar as palavras portadoras de vida.

- Em que me inquieta, me sacode e me provoca a Palavra de Jesus?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

23.08.2024