“Tu, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto...” (Mt 6,17)
Mais uma vez a Quaresma vem ao nosso encontro e nos convida a recomeçar um caminho novo; talvez seja necessário refazer nossa rota de vida pois nos desviamos por caminhos que levaram a um auto-centramento, à superficialidade, à frieza nas relações com os outros, ao consumismo, ao afastamento da presença de Deus.
A vivência quaresmal nos convida a descer até à raiz da vida, à fonte germinal, porque só a partir dali é que podemos construir o fundamento de uma nova vida centrada no seguimento de Jesus.
Diante do novo que a Quaresma nos propõe viver, na realidade o que importa não é tanto o caminho pessoal que devemos percorrer (podemos cair num intimismo e numa vivência piedosa sem atitude compassiva diante dos outros). O decisivo são os encontros surpreendentes que acontecem ao longo da travessia do deserto existencial, sobretudo na relação com os pobres, excluídos, aqueles que estão à margem da vida...
A Campanha da Fraternidade deste ano quer despertar em nós uma sensibilidade solidária com aqueles que são vítimas de uma estrutura social e política que concentra os bens nas mãos de poucos, de maneira especial os alimentos. “Fraternidade e fome” denuncia a vergonhosa chaga social dos famintos em um país que é grande produtor de alimentos. A fome clama aos céus e ressoa em nosso coração; ela é expressão de uma profunda incoerência dos cristãos que se dizem seguidores d’Aquele que veio multiplicar os alimen-tos. Estamos muito distantes das primitivas comunidades cristãs que “tinham tudo em comum, partiam o pão pelas casas com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46).
“Convertei-vos e crede no Evangelho”: este apelo ressoará em todas as igrejas e comunidades cristãs nesta Quarta-Feira de Cinzas; certamente terá uma ressonância especial em nosso interior, pois irá direto ao mais profundo em nós, ao coração, onde é gerada a confiança que afasta os medos, a aliança que gera relações verdadeiras, a meta que dá sentido à nossa vida. É ali, nas profundezas de nosso ser onde nasce o amor maior, capaz de expandir nossa vida; é ali onde aprendemos a amar ao Tu que nos habita; ali onde aprende-mos que em cada um está presente um desejo de infinito que só o Tu divino pode preencher. É também ali, justamente ali, onde nascem o jejum, a esmola e a oração, ou seja, as atitudes vitais que nos afastam do superficial e nos fazem descobrir o essencial: vida que se faz partilha, amor que se doa, sensibilidade que se compromete.
A vivência quaresmal nos faz descer em direção à nossa própria humanidade; ao mesmo tempo, somos também impulsionados a descer em direção à humanidade dos outros; ela visa colocar “ordem” nos nossos afetos, esvazia nosso ego e desperta nossa solidariedade para com tantos irmãos nossos que carecem do mais essencial, em parte, pelo mau uso que fazemos dos recursos da natureza, em parte devido à nossa acumulação e monopolização desmedida deles.
Assim, o Tempo Quaresmal nos sensibiliza a viver o verdadeiro sentido das conhecidas “práticas quares-mais”: jejum, esmola e oração. Tais práticas nos movem a sair do nosso “ego inflado” e entrar em sintonia com os outros, com a natureza e com o Criador; tal experiência ativa em nós a generosidade, o despoja-mento, o verdadeiro sentido da pobreza evangélica e, sobretudo, o sentir-nos irmão com o irmão. Quem sabe partilhar nunca se empobrece, pelo contrário, se enriquece infinitamente.
Para que isto aconteça, a liturgia da Quarta-feira de Cinzas nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, conosco, com os outros e com o mundo.
À luz da Campanha da Fraternidade deste ano, o jejum adquire um novo sentido; em primeiro lugar, porque nos associa ao jejum de Jesus; e, em segundo lugar, porque nos inspira a viver uma relação justa e harmoniosa com os alimentos, não nos deixando possuir por eles e nem querendo possuí-los (afeição desordenada). A justa relação com as coisas e os alimentos consiste em reconhecer com gratidão o valor destes dons que Deus criou para suprir as necessidades básicas de todos.
Com o jejum aprendemos a conhecer e a ordenar nossos diferentes apetites mediante a moderação do apetite fundamental e vital: a fome. Aprendemos, desta maneira, a regular nossas relações com os outros, com a realidade exterior e com Deus, relações muitas vezes motivadas pela voracidade. Ao mesmo tempo, o jejum nos desperta a “fome essencial”: fome de sentido, fome do Reino, fome em favor da vida.
No sentido bíblico, o jejum vai além de um ato voluntário: significa uma “atitude de vida”; ele nos humaniza, nos faz descer do pedestal e nos torna mais sensíveis e solidários; fazer jejum tem sentido quando brota da sensibilidade que evita o desperdício, o consumo desenfreado, o esbanjamento.
Na linguagem inaciana, jejuar é “sair do próprio amor, querer e interesse”, ou seja, viver na simplicidade de quem renuncia a um “eu inflado” em favor de um “mundo diferente”, onde predomina a partilha.
Jejuamos para crescer; jejuamos para recordar que as “coisas” não são um fim, mas um meio; jejuamos como forma de olhar ao redor e recordar que a realidade é muito mais ampla que nossa própria situação.
Jejuar não é “deixar de comer”. É aceitar de maneira consciente que nossos desejos, nossas necessidades, nossos interesses, nossas preocupações não são o centro do mundo.
Por isso, jejuar pode ser um convite a ordenar a mente, a pacificar o coração, a serenar os olhos, a guardar a língua...; purificar a tendência ao imediatismo, ao falso moralismo, puritanismo e perfeccionismo.
Por lembrar-nos de nossa precariedade, o jejum pode nos tornar sensíveis ao próprio mistério da vida que somos; é colocar em questão a razão de ser da vida. Para quê vivemos?
A esmola (“elemosyne”) sempre esteve ligada à compaixão e piedade. Quem partilha “o ser e o ter” revela-se compassivo e misericordioso. Trata-se, fundamentalmente, da inclinação para com os desfavorecidos.
A misericórdia (qualidade da esmola) é a atitude própria de quem tem um coração sensível à miséria do outro. Mantém profundamente unidos o sentimento de compaixão e ternura com a solidariedade efetiva. Está atenta à necessidade de cada pessoa, que em uns casos será econômica, em outras psicológica, em muitos afetiva...
Uma das qualidades mais atraentes da esmola é precisamente sua capacidade para criar laços de comunhão. Se cada um põe seus bens a serviço dos outros e se deixa socorrer em suas necessidades, criará verdadeira comunidade. A esmola – misericórdia em ação – é uma realidade central para o cristão. Trata-se de uma virtude tão querida e apreciada pelo Senhor que a pôs em prática fazendo-se, Ele mesmo, “esmoleiro”.
Por fim, a Quaresma nos revela o verdadeiro sentido da oração: ela é uma mão estendida para o divino; não é dobrar a vontade de Deus a nosso favor; pelo contrário, é colocar-nos em sintonia com Ele, para entendermos o que é melhor para nosso verdadeiro bem. É deixar Deus ser Deus, ou seja, deixar que Ele revele sua paternidade/maternidade para com cada um de nós, na sua providência e cuidado.
A melhor a oração não é aquela que nos enche de palavras; não deveríamos preencher a oração de palavra “nossa”, mas de escuta da Palavra de Outro. Na oração, como em toda relação humana, precisamos alimentar uma atitude de escuta que busca “entrar em sintonia”, ser consciente, estabelecer e consolidar relação, caminhar para a verdade, construir pontes...
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: - Mobilize todo o seu ser para viver com mais intensidade este “percurso quaresmal”;
- Alimente ânimo e generosidade para deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito que conduzia Jesus;
- Ao longo da Quaresma, você é movido(a) a “cristificar” suas relações básicas: com Deus, com os outros, com as coisas e consigo mesmo; verifique sua vivência frente a estas relações: qual delas está mais fragilizada? como alimentá-las? como torná-las mais oblativas, abertas...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.02.23
Imagem: pexels.com/Marshall Jones