“Tu, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto,
para que os homens não vejam que tu está jejuando, mas somente teu Pai” (Mt 6,17-18).
Começamos a Quaresma com o rito da “imposição das cinzas”. Há um risco de vivermos a travessia quaresmal contentando-nos com atos externos de penitência, renúncia, mortificações... sem referência à pessoa de Jesus Cristo e sem abertura aos outros. O silêncio do deserto nos ajuda a encontrar nosso centro, a partir de onde podemos acertar em nossas opões vitais, sem cair nas armadilhas do ego.
A Quaresma é um tempo privilegiado de discernimento e mudança; ela desvela as grandes carências existenciais que nos afligem e nos desumanizam; ao mesmo tempo, ela nos faz ter acesso aos melhores recursos e dons, encontrados em nosso interior e que ainda não tiveram chances de se expressarem.
Há uma “carência radical” que nos afeta a todos e que, cada vez mais, assume um rosto assustador. Trata-se das profundas rupturas fraternas que se expressam numa cultura do ódio, da violência, da intolerância, do preconceito... Precisamos, neste tempo litúrgico especial, reforçar os nossos laços fraternos, reconstruir os vínculos quebrados e alimentar a comunhão entre os diferentes. A Quaresma pode ser um tempo de graça que ajuda a eliminar a “cultura da indiferença” de nossas vidas.
Para tornar a nossa vida mais fraterna, aberta e acolhedora, a Campanha da Fraternidade da Igreja no Brasil nos situa diante desta dura realidade que nos escandaliza.
Com o provocativo tema - “Fraternidade e amizade social” – e o lema – “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8) - somos chamados a despertar nossa sensibilidade solidária frente a esta grave situação de divisão que nos envergonha. Não podemos continuar passivos e indiferentes frente a esta realidade tão desumana. Onde há divisões e conflitos é sinal de que o Evangelho não está sendo vivido de modo coerente pelos cristãos.
O caminho da Quaresma passa pelo coração. Como seguidores(as) de Jesus, somos chamados(as) a retornar a Deus “de todo o coração”, a não nos contentar com uma vida medíocre, mas a crescer na amizade com o Senhor. E quando alimentamos a amizade com o Senhor também amadurecemos nossa amizade com os outros e, unidos fraternalmente, celebraremos a Páscoa, a plenitude da vida cristã.
Assim, em sintonia com o movimento humanizador de Jesus, a Quaresma se apresenta como um momento privilegiado para despertar os nossos recursos internos e ativar nosso espírito fraterno. Para isso, é preciso redescobrir o caminho do coração para viver um permanente processo de reconciliação e conversão.
O “Tempo Quaresmal” é uma excelente mediação para viver com mais sentido e inspiração. Ele nos abre a possibilidade de acessar nossa interioridade e destravar os impulsos relacionais que nos habitam: relação com Deus (oração), relação com os outros (esmola) e relação com as coisas (jejum).
Viver a cultura do encontro fraterno é ativar nossa própria capacidade de contemplação, de compaixão, de assombro, de escuta das mensagens e dos valores presentes no mundo à nossa volta. Ela nos mobiliza a viver uma relação sadia com todos; nosso centro se expande em direção aos outros e à criação, fazendo-nos viver uma conexão livre com toda a realidade, através da íntima solidariedade e do compromisso ativo.
O gesto de receber as cinzas sobre nossas cabeças tem o sentido de uma mobilização para começarmos a caminhar em direção ao “centro de nosso ser”, conscientes de que este caminho nos humaniza e nos diviniza ao mesmo tempo. A partir daí podemos sair ao encontro dos outros com outra profundidade, com um amor mais puro, com mais gratuidade e, com a força do Espírito, mais livres das redes egóicas.
Esta Quaresma pode ser um marco no nosso caminho, um caminho de Paixão que já estamos vivendo nestes momentos de profundas crises e rupturas sociais; quer ser também um caminho de Ressurreição e que não poderá ser uma experiência solitária; ou nos renascemos todos para uma nova humanidade ou este mundo será uma experiência falida.
Os grandes momentos de nossa vida (decisões, ano litúrgico...) pedem uma “parada”, um tempo de preparação. Há sempre o perigo da improvisação e do imediatismo; vivemos a cultura da pressa, buscando resultados rápidos. Sabemos que a vida tem seu ritmo, como a natureza tem suas estações. É hora de parar, quebrar o ritmo estressante, frear nossos pensamentos, sentimentos, afetos desordenados, sentidos..., esvaziar o nosso ego para nos deixar conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus.
Existem aqueles que nunca freiam, que vivem sempre com pressa, indo de um lado a outro, de uma experiência a outra, de um momento a outro. A velocidade é a marca de nossos tempos. Mergulhados na rapidez, perdemos a memória, pois esquecemos rapidamente as vivências que nos marcaram.
Por isso, de tempos em tempos, é preciso parar, deter-nos, plantar os pés na terra firme, olhar ao redor e, também olhar para dentro. Perguntar o porquê da inércia ou da imediatez, perguntar pelas pessoas que fazem parte de nosso horizonte diário, pelas metas que guiam a nossa própria vida.
Para viver com mais intensidade o espírito quaresmal, a liturgia nos propõe três atitudes que nos descentram e nos fazem entrar no ritmo da radical gratuidade: a oração, o jejum e a esmola (caridade fraterna).
Uma vez no deserto com Jesus, devemos ativar a atitude de escuta daquela voz interior que se desperta diante da força da Palavra. A isso chamamos oração. Oramos quando dirigimos nosso olhar a Deus, ao mundo e a nós mesmos. Oramos com a Bíblia, com as notícias, com os desejos, com os medos... Oramos de mil formas diferentes...
E, se escutarmos profundamente com os sentidos ativos, brotarão gestos de atenção e sensibilidade diante de homens e mulheres que mais precisam de paz, pão e palavra. Chamamos isso de “esmola” (ou “caridade fraterna”), que significa porta aberta para viver a partilha e o encontro com todos, movidos pelo nosso olhar contemplativo e pelas nossas entranhas compassivas.
Depois da esmola e da oração, culminando a trilogia da “justiça” do evangelho de Mateus, vem o gesto da renúncia positiva, não por sadismo ou vitimismo, mas por elevação da interioridade pessoal e pela solidariedade humana. Este é o sentido do jejum da quaresma cristã: ao lembrar-nos de nossa precariedade, o jejum pode nos tornar sensíveis ao próprio mistério da vida que somos; é colocar em questão a razão de ser da vida. Para quê e para quem vivemos? Só para acumular e encher nossos “celeiros”...?
Se uma pessoa autosuficiente não aprende a renunciar, a jejuar, a contemplar Deus em tudo e amar os outros (para que eles se liberem, rompendo as cadeias, os muros da separação e o impulso egóico que mata) essa pessoa se destrói a si mesma, se torna enferma e perde o equilíbrio de sua vida mesma.
Sem um jejum como atitude de solidariedade, matamos os pobres e nos matamos a nós mesmos. Trata-se de um jejum não só dietético e medicinal, mas humano, espiritual e corporal no sentido mais profundo. Falamos de um jejum pessoal, que quebra nosso farisaísmo e nos conduz a uma autêntica solidariedade e maturação existencial.
Jesus, ao recuperar o sentido verdadeiro destas três práticas quaresmais, nos “revela” aquilo que os hipócritas escondem: o que a esmola, a oração e o jejum têm em comum é que precisam ser vividas no “escondimento”. O essencial da vida, que é o amor, sempre é discreto. O que não é essencial faz barulho, como a vaidade, o prestígio social, o querer despertar uma boa impressão nos outros...; tudo isso é pura hipocrisia.
Quaresma pede humildade e sinceridade de coração.
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Para fazer uma “travessia quaresmal” é preciso uma inspirada preparação e uma mobilização de todo nosso ser.
- Como você se propõe a viver as “três práticas quaresmais: oração, jejum e esmola?
- O tema da CF deste ano (fraternidade e amizade social) tem ressonância em seu interior? Que gestos concretos você poderia assumir para romper com essa cultura do ódio e da indiferença que provoca tantas divisões?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.02.24