”Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado” (Jo 20,27)
Estamos vivendo uma cultura profundamente desconectada do sensitivo. Os sentidos estão ficando atrofiados e nos lançamos desesperadamente em busca de compensações virtuais. Nossos medos estão impossibilitando os sentidos ocuparem o lugar que lhes corresponde em nossos comportamentos e atitudes.
Extirpamos nosso olfato pelo temor a um mau odor. Desprezamos com indiferença os odores de nosso entorno, das pessoas, dos objetos... se não vem com a garantia de um perfume etiquetado. Buscamos espaços descontaminados, assépticos..., pois o odor da pobreza, da exclusão, da fome... nos inquieta e nos causa medo. No entanto, nossa mente está cheia de recordações olfativas...
Em estreita relação com o olfato, nossa respiração, fonte vital de energia, se faz cada vez mais doentia. Praticar uma respiração profunda e tranquila está se transformando em um luxo.
O “viver com sabor” transformou-se numa loteria onde poucos tem possibilidade de acessá-la. Ficamos cada vez mais impossibilitados de “gostar” a fruta pelo sabor, para passar à alimentação ingerida mais pelos olhos. São os invólucros de nossos alimentos que nos alimentam. O sabor não conta para os experts em manipulação genética. O saborear as coisas pertence ao passado. A arqueologia não tardará em incluir o elemento gustativo em suas anotações de campo.
Nossos ouvidos, assaltados pelos ruídos virtuais, se desconcertam ao descobrir o silêncio. Perdemos a sintonia dos sons naturais. É exagerado pedir que distingamos o cantar de um pássaro. A contemplação auditiva não registrada em aparelhos tecnológicos nos parece uma perda de tempo.
A visão que, sem dúvida, é o sentido por excelência e o mais estimulado, é, ao mesmo tempo, o mais manipulado e violentado pelo excesso de imagens virtuais. Nosso campo de visão é cada vez mais reduzido, unicamente ampliado pelas telas digitais. Vemo-nos assaltados pela cidade de cimento e asfalto, nossos lugares de trabalho se reduzem a “bolhas cúbicas” e nossos olhos se vêem obrigados a ocultar-se, com o pretexto de proteção, sob óculos de sol.
No tempo de férias, no afã de fugir da cidade para espaços de beleza natural ou artística, nossa máxima preocupação é registrar tudo em câmaras fotográficas. Em nossas agências de viagens não consta um programa para deter-nos numa atitude contemplativa.
Fazemos constantemente “zappin” num afã desesperado de alcançar experiências pontuais, registradas mas não sentidas e, menos ainda, vividas e compartilhadas.
O tato supõe proximidade, imediatez... Tocar ou nos sentir tocados é, em determinadas circunstâncias, a linguagem mais inteligível do amor. No entanto, nosso mundo está cheio de alambrados, muros, valas e fronteiras; usamos de artimanhas para “ver de longe”. Com isso nos defendemos dos que são de outra raça, cor, religião, sexo, classe social... e nos fechamos no preconceito e na rigidez dos relacionamentos.
Precisamos de um autêntico transplante de pele.
É preciso “ressuscitar os sentidos” para que encontrem seu lugar insubstituível na experiência de fé. E só podemos descobrir o “lugar e o sentido” dos sentidos através do confronto com a “sensibilidade de Jesus”. Educar nossa sensibilidade “ao estilo de Jesus” implica empapar-nos de sua forma de ser e de sentir, de vibrar com tudo aquilo que lhe fazia vibrar, de rejeitar tudo aquilo que Ele rejeitava, e assim reagir frente à realidade e às pessoas do mesmo modo que Ele reagia.
As contemplações dos relatos das Aparições se apresentam como “uma aprendizagem, um aprofundamento e um discernimento deste sentir de Jesus” (Melloni). Na realidade, trata-se de querer ter sempre – na expressão de S. Paulo – os “mesmos sentimentos de Cristo Jesus”, a quem o cristão deseja seguir mais de perto.
Através dos nossos sentidos, o mundo de Jesus entra imaginativamente em nossa intimidade, e por meio deles respondemos também à realidade de um modo novo. Buscando e desejando a identificação com Jesus, nossos sentidos aprendem d’Ele a ter ternura, visão, escuta, sabor...
Segundo o relato do evangelho de hoje, para fazer o encontro com o Ressuscitado não podemos colocar entre parênteses o uso de nossos sentidos; pelo contrário, trata-se de introduzir “pneuma”, sopro em cada um deles, para que se tornem órgãos contemplativos e facilitadores da experiência de Deus.
Quando falamos de “sentidos espirituais” estamos fazendo referência aos sentidos espiritualizados, habitados, animados pelo Espírito de Deus. Os sentidos não são destruídos, mas transfigurados; eles se tornam “sentidos divinos”, pois tornam o ser humano cada vez mais “capaz de Deus”.
“Ressuscitar os sentidos” significa harmonizá-los com a presença do Espírito, torná-los silenciosos, despojados diante d’Aquele que é.
Quando falamos em “cristificar a sensibilidade” , apontamos diretamente a um “plus de humanidade” que “sai de dentro” e permite que os cinco sentidos não se limitem somente a ver, ouvir, gostar e tocar – que podem ser respostas só mecânicas - , senão que aprendem, além disso, a “olhar, escutar, saborear, acariciar e beijar”.
Nascemos com olhos, mas não com o olhar; temos, sim, ouvidos, mas não sabemos escutar; podemos cheirar e gostar as coisas, mas nem sempre somos capazes de desfrutar e saborear a vida. Tocamos e abraçamos os outros, mas quantas vezes nossos “toques” não chegam a ser “carícia”.
Uma opção de seguimento evangélico que não conte com a “ressurreição dos sentidos” está destinada ao fracasso, pois, sem uma identificação com a sensibilidade de Jesus nossos sentidos passeiam vazios e sem bússola pelo mundo, como que afundados na noite.
Inversamente, uma sensibilidade evangelizada é uma graça que permite um seguimento constante. Como conseqüência, a conversão evangélica tem que chegar a alcançar a sensibilidade para ser efetiva.
“...mostrou-lhes as mãos e o lado”: suas mãos chagadas e seu lado aberto – credenciais de sua entrega e expressão de seu amor radical. Chagas para serem contempladas, sentidas, tocadas..., lembrando que não amaremos de verdade enquanto não mostrarmos nossas chagas no serviço aos outros.
Concluindo, podemos dizer que a experiência de Tomé, que é também a nossa, tem um valor importante para nós, seguidores do Ressuscitado.
“O pedido de Tomé de querer colocar os dedos nas chagas das mãos e dos pés de Jesus e suas mãos na chaga do seu lado, é uma afirmação muito importante para a nossa fé: o Jesus ressuscitado ainda traz as marcas e as chagas da sua paixão. A ressurreição de Jesus não o fez retroagir ao passado, como se sua morte nunca tivesse acontecido. Pelo contrário, venceu a morte e ainda traz as marcas da crucificação. A ressurreição de Jesus muda o nosso olhar sobre o ser humano. As chagas de Jesus dizem que o ressusci-tado carrega em si todas as chagas de todos os humilhados do mundo. Elas dizem também que nenhu-ma chaga, por mais injusta e humilhante que seja, pode nos impedir de nos tornarmos pessoas de cabeça erguida no coração do mundo. De agora em diante, nenhuma das nossas chagas pode nos impedir de ser livres: Jesus ressuscitado é, em primeiro lugar, aquele que carrega as chagas da nossa condição humana. De maneira clara, não esperemos nos livrar dos nossos males para vivermos de cabeça erguida. Jesus ressuscitou e é hoje que, mesmo com as nossas chagas, podemos nascer para a liberdade". (Jean Debruynne)
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: Após sua ressurreição, Jesus só permite que se toquem suas feridas. A questão é esta: onde estão hoje as feridas de Jesus? Ou dito de outra maneira: onde Jesus põe hoje seu coração? Jesus põe seu coração em suas feridas que permanecem abertas neste mundo: os pobres, os doentes, os excluídos, os violentados... É ali onde devemos pôr a mão se queremos encontrar o coração de Jesus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI