“Numa cidade havia um juiz que não temia a Deus...” (Lc 18,2)

 

 

Na tradição bíblica, as viúvas são, juntamente com os órfãos e os estrangeiros, o símbolo das pessoas mais indefesas, as mais pobres entre os pobres. A viúva, de modo especial, é o símbolo por excelência da pessoa que vive só e desamparada; ela não tem marido nem filhos que a defendam e não conta com nenhum apoio social. É nesta situação de total abandono que sua vida se converte em um grito: “Faze-me justiça!”.

 

A conduta e o ensinamento de Jesus foram radicalmente “contraculturais” com relação à mulher. Ele foi um autêntico reformador e inclusive revolucionário. Com sua presença e sua linguagem Jesus visibiliza o mundo vital das mulheres; ao tirá-las do seu anonimato e trazendo-as à luz, Jesus realça e louva os traços característicos da mulher. Na parábola, a viúva é apresentada como modelo de atitude diante de Deus pela sua persistência, pela sua coragem frente a um juiz surdo à voz de Deus e indiferente ao sofrimento dos oprimidos. Ela não desiste, continua lutando por si mesma e por seu direito à vida, indo ao juiz dia após dia.

 

Lucas apresenta a parábola como uma exortação a orar sem nunca desistir. O Mestre conta a parábola de forma tão envolvente que as pessoas, sobretudo aquelas que perderam toda esperança por ajuda e cura, são novamente encorajadas. Ao despertar nos ouvintes a alegria sobre o poderoso juiz, cuja resistência é vencida pela viúva, convida as pessoas a lidarem de forma diferente com uma situação aparentemente desesperadora. Deus não é surdo aos seus gritos.

 

Nesse sentido a oração do seguidor de Jesus é “eficaz” porque nos faz viver com fé e confiança no Pai e em atitude solidária com os irmãos. A oração é “eficaz” porque aumenta nossa fé e nos faz mais humanos; abre os ouvidos do coração para escutar a Deus com mais sinceridade, vai purificando nossos critérios e nossa conduta daquilo que nos impede ser irmãos. Ela sustenta nosso viver cotidiano, reanima nossa esperança, fortalece nossa fragilidade, alivia nosso cansaço. Aquele que aprende a dialogar com Deus e a invocá-Lo “sem nunca desistir”, vai descobrindo onde está a verdadeira eficácia da oração e para quê “serve” rezar. Simplesmente para viver.

 

Podemos interpretar também a parábola do juiz e da viúva  como uma imagem do nosso interior: lugar da nossa intuição que nos diz que possuímos um brilho divino, que somos seres originais, filhos e filhos de Deus. Nosso interior representa os sonhos que carregamos durante nossa vida, que nos diz que nossa vida é preciosa e que nele se expressa algum aspecto de Deus. Mas, nosso interior carrega também um tribunal com um juiz frio e insensível, que, numa postura arrogante, nos julga de forma excessivamente dura, e, às vezes nos condena e rejeita constantemente; ele emite juízos taxativos, cortantes, condenatórios, alimentando em nós sentimentos de culpa e impotência.

 

Ele tem o catálogo de leis nas mãos e é implacável mesmo diante dos mínimos deslizes, distribuindo prêmios (poucos) e castigos (abundância). Em cada um de nós o instinto de julgar está enraizado profundamente; podemos até dizer que todos nascemos portadores de uma cátedra de juiz. Muitos cultivam ardorosamente esta vocação de juiz e encontram abundantes ocasiões para praticar juízos, sobre si mesmos e sobre os outros, submetendo-se a um horário esgotador. Daí a proliferação de “tribunais ambulantes e permanentes”.

 

No Evangelho, nos encontramos com algumas expressões categóricas que nos convidam a abandonar este ofício bastante perigoso. Muitos, com seu amadurecimento, ficam persuadidos de que existem coisas mais importantes a fazer do que dedicar-se a serem juízes. Embora se trata de uma grave enfermidade, esta “síndrome de juiz” é curável. Existem muitas terapias que podem arrancar a cadeira do juiz e desalojá-lo de seu ofício.

 

Na parábola da viúva e do juiz injusto Jesus nos mostra como podemos conviver com o juiz interior. Como a viúva, nós nos vemos ameaçados por um inimigo – pode ser um inimigo interior ou exterior ou um padrão de comportamento que não nos permite viver com serenidade e paz. Nesse contexto, o juiz representaria nosso juiz interior, que nos despreza continuamente e nos julga desprezíveis por termos ideais tão altos ou exigências tão ambiciosas para nós mesmos.

Nessa interpretação, a oração também passa a ser o lugar onde nosso interior encontra justiça, onde o juiz interior é desapoderado. Na oração nos tornamos cientes da nossa dignidade como seres humanos, que fomos criados por Deus e que Ele julga capaz de realizarmos nossos desejos. Por meio dela, entramos em contato com a imagem única e singular que o Pai tem de nós, toda auto-depreciação e auto-condenação se dissolvem durante esse momento.

 

Se orarmos com essa parábola em mente, a nossa oração adquire uma força diferente. Nesse sentido, a oração é o espaço onde a dimensão feminina é despertada através do seu clamor, da sua insistência e perseverança.

 

O ser humano carrega em si amor e agressão, razão e emoção, gentileza e dureza, juiz e viúva, animus e anima – parte masculina e parte feminina da alma. Muitas vezes vivemos apenas um polo e recalcamos o outro. Enquanto este permanecer nas sombras terá um efeito destrutivo. A arte da humanização consiste na reconciliação da viúva com o juiz interior. Muitos ficam chocados quando, apesar de todo esforço para serem pessoas amáveis e gentis, descobrem em si lados insensíveis, antipáticos, julgadores, ofensivos...

Jesus nos apresenta a oração como caminho para esvaziar o ofício do nosso juiz interior. No espaço da oração experimentamos nosso direito à vida; ali encontramos paz, ajuda e cura. Ao mesmo tempo, a oração nos leva ao espaço interior do silêncio, onde o juiz  é desarmado de sua arrogância.

 

Com o juiz silenciado, acabam-se os ressentimentos, as violências interiores, os sacrifícios, os juízos, os sentimentos de culpa...  Morre o “juiz” das proibições, das ameaças, dos castigos e da perpétua vigilância sobre nossos atos e intenções. Com isso, nossa vida torna-se mais leve, os medos se vão e a harmonia toma assento em nosso coração.

 

A parábola nos causa uma transformação, questiona nossa vivência, abrindo espaço para experiências novas. Jesus descreve essa viúva sem perspectivas, como mulher que não desistiu de si mesma. Orar, portanto, significa: não desistir de si mesmo.

 

Ao mesmo tempo, Jesus revela a imagem de um Deus desprovido de dogmatismos, um Deus desprovido também de controle e arbitrariedade. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar... Basta-lhe a misericórdia, a compaixão... A misericórdia de Deus constitui a resposta à indigência e ao clamor do ser humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento e a condenação. O passado de erros e fracassos é substituído pelo presente de aceitação e perdão.

 

Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano. Enquanto o Reino de Deus estiver no nosso meio, o juiz interior não tem nenhuma chance, estamos sãos e salvos, livres dos seus juízos, de suas expectativas e exigências, de suas acusações e sentenças. Nesse espaço ninguém pode nos ferir, nenhum inimigo tem acesso, seja ele interior ou exterior.

 

Texto bíblico:  Lc 18,1-8

 

Na oração: “tomar consciência” dos momentos em que o “juiz interior” emite seus “pareceres de morte”, seja na relação consigo mesmo ou com os outros.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI

15.10.2013