“Eu sou o pão vivo descido do céu” (Jo 6,51)

 

O cristianismo foi muitas vezes compreendido como uma religião do espírito contra a carne, uma religião do desprezo do corpo e inimiga de tudo o que se refere à dimensão corporal. Se isso é verdade, vai totalmente contra à primeira inspiração de Jesus e da Igreja, que proclamaram e continuam proclamando uma religião do “corpo”, ou seja, do Deus Encarnado na história (na carne) dos homens e mulheres.

 

É isso que nos revela a festa de “Corpus Christi”, a última das grandes festas do ano litúrgico. É a festa que recolhe todas as festas cristãs e as condensa na “carne” do Corpo de Jesus, com sua riqueza de sentidos e significados.

 

Esta é a festa do Corpo Histórico e Humano de Jesus, corpo prazeroso e sofredor, amado por muitos e muitas, rejeitado, crucificado, morto e ressuscitado. Esta é também a festa do grande Corpo de Cristo que é a Humanidade inteira. Corpo real de Cristo são especialmente todos os que sofrem com Ele no mundo, os enfermos e famintos, os rejeitados e encarcerados, os pobres e excluídos... Eles são a humanidade ferida no corpo do Filho de Deus.

 

Corpo de Cristo é o mundo inteiro, criado por Deus para que nele se encarne e habite seu Filho.

Assim Jesus, na Ceia, ao tomar o pão e o vinho em suas mãos, abraça os bilhões de anos de evolução e chama-os de seu corpo e de seu sangue. Cada cristão que celebra entra em comunhão com todas as energias da Criação. Suga essa força gigantesca condensada na pequenez da história e nas gotas do vinho.

 

Corpo de Cristo que continua sendo o Pão, fruto da terra e do trabalho dos homens e mulheres, todo pão que alimenta e é compartilhado, em fraternidade, a serviço dos que tem fome.

 

Jesus, na sua vida oculta e pública, não anuncia uma verdade abstrata, separada da vida, uma lei puramente social, um princípio religioso... Ao contrário, Jesus é corpo, isto é, vida expansiva, sentida, compartilhada.

 

Os Evangelhos nos situam Jesus no nível da corporalidade próxima: é Ele que sabe olhar, tocar, sustentar, acariciar... A Luz que nutre sua Encarnação nos permite ver com maior profundidade nossa humanidade, no espelho da corporalidade d’Ele. Essa é a luz que explora nossos rincões mais íntimos para deixar aflorar nossa verdadeira identidade, carregada de corpo. Deixando-nos contemplar, descobriremos Sua presença e Sua provocação em cada uma de nossas células. Corpo “cristificado”.

 

Jesus se revela, assim, como autoridade de amor, porque ofereceu seu “corpo”, isto é, sua vida, para que outros pudessem viver. Na multiplicação dos pães, nas refeições com pecadores e sobretudo na Última Ceia, Ele oferece aquilo que não pode ser comprado nem vendido: o pão do próprio corpo carregado de humanidade, o vinho de sua vida portador das energias alegres e criativas.

 

Comungar o pão e o vinho não é só aderir a Jesus, à sua pessoa e à sua mensagem; não é só experimentar sua intimidade, deixando-se transformar por Ele. Implica estar dispostos a comungar com todos, porque Jesus nunca vem só: “traz” com ele toda a realidade. “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (papa Francisco).

 

“Tocar a carne de Cristo” implica tocar e acolher a própria “carne” ou seja, o corpo como lugar onde Deus faz sua morada. Cresce cada vez mais a consciência de que não “temos um corpo” que nos aprisiona, mas que somos a corporeidade, esse sistema complexo de matéria e energia, fonte de sensações, de expansão, de prazer...

 

O corpo é a primeira condição de possibilidade de nosso “ser no mundo”, único modo disponível para relacionar-nos com a natureza, com os outros e com o que nos transcende. Único modo de ser, em definitiva, e de sermos humanos.

 

Somos corpo que vibra e pulsa, que necessita do abraço e do olhar de outros corpos, do calor de outras peles. E ali encontramos Deus, pois Ele quis fazer-se corpo e sangue, para acariciar com nossos braços, para olhar com  os nossos olhos, para respirar com os nossos pulmões, para amar com nossos corações,  para fazer ardentes nossas entranhas compassivas... Aqui, nas transformações do corpo, Ele se faz presente. Assim vamos buscando compreender o que é a Encarnação.

 

Quando viemos ao mundo, a primeira coisa que experimentamos é que alguém estendeu suas mãos para receber este “corpo único e precioso” que nos acompanhará toda nossa vida. Alguém nos tocou ao começar a existência e também seremos tocados pela última vez algum dia.

 

Recebemos um corpo para permanecer nele enquanto dure nossa viagem e para estabelecer com ele “contatos humanizadores”, transmitir com nossa pele, e com todos os nossos sentidos, o afeto, o calor e a presença que precisamos para expandir esta ânsia de amor que nos habita.

 

Madeleine Delbrêl afirma: “Teríamos que estar diante de nosso corpo como o lavrador diante de seu terreno: saber o quanto vale nosso corpo, amá-lo...” E só podemos experimentar algo assim quando não nos sentimos proprietários dele, nem procuramos retê-lo ou apropriar-nos dele, mas quando, com as mãos estendidas, o acolhemos como o maior presente, o dom mais valioso que podemos receber.

 

Quando nosso corpo se sabe e se sente amado, podemos colocá-lo ao serviço da vida de outras pessoas e torná-lo capaz de comungar com outros corpos.

“O corpo não é somente aquilo que o ser humano tem diante de si, senão que é sobretudo aquilo que é o mesmo na multiplicidade de suas relações históricas...” (L. Duch). Dele depende como vamos nos situando e só quando o habitamos realmente podemos percorrer uma “viagem curativa”. Somos o único ser da criação que possui a “capacidade de habitar”, o dom de estabelecer em espaços e tempos vínculos de comunhão e de comunicação. Graças a este corpo que somos, a este “continente” que nos contém, podemos vincular-nos e estabelecer conexões. Nossas maneiras de relacionar-nos estão configuradas por ele porque não há experiência de amor, e por isso não há experiência de Deus e dos outros, que não ocorra em nosso corpo.

 

Texto bíblico:  Jo 6,51-58

 

Na oração:

Sinta todo o seu corpo como um templo.  E neste templo acolha o Sopro. Procure saboreá-lo internamente. E deixe atuar em você a força da inspiração e da expiração para que todo o seu corpo seja iluminado e plenificado. Deixe vir a Luz e que ela penetre nas partes mais dolorosas do seu ser. Sinta que você é um corpo de argila e também um corpo de diamante. Simplesmente respire na presença d’Aquele que É.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI