“E uma voz, que saiu da nuvem, disse: ‘Este é o meu Filho amado; escutai o que Ele diz’” (Mc 9,7)
O centro do relato da “transfiguração de Jesus” é ocupado pela Voz que vem de uma estranha nuvem, símbolo que a Bíblia usa para nos falar da presença sempre misteriosa de Deus que se manifesta e, ao mesmo tempo, se oculta. A Voz diz estas palavras: “Este é o meu Filho amado; escutai-o”.
Com este relato, Marcos quer indicar que o seguimento implica muito mais que uma simples confissão de fé no Jesus como Messias; os discípulos, no Monte Tabor, também passam por uma transformação: eles devem ser curados da cegueira e surdez espiritual que os impede de ver as exigências do amor e de escutar os apelos que os levam, como Jesus, a uma entrega radical de suas vidas.
Subindo ao Tabor interior, também nós seremos transfigurados: através desta experiência nossos olhos e ouvidos do coração se abrirão, capacitando-nos para contemplar a realidade tal como Deus a contempla.
Esta experiência igualmente nos capacita para alcançar também uma percepção diferente das outras pesso-as; não julgaremos mais as pessoas pelas suas aparências externas, mas as veremos com mais profundidade, no coração, como se estivéssemos aprendendo a “ver” com os olhos de Deus; da mesma forma, estaremos mais sensibilizados para escutar os outros com mais atenção, deixando ressoar em nosso interior as vozes que nos chegam das margens. Continuaremos descobrindo que olhar para o mundo e escutar seus clamo-res será um desafio e uma tarefa contínua que vai mais além de uma experiência isolada de encontro divi-no-humano sobre o alto da montanha.
A Transfiguração nos fala da verdade que carregamos dentro de nós, mas também de novos olhos e ouvidos abertos para entrar em sintonia com esta realidade interior. Sem escuta profunda a vida se desumaniza e o ser humano se automatiza egoísticamente.
A escuta é o caminho da originalidade, é a condição para não se viver na inércia. A verdadeira sabedoria nasce não do que está acumulado na memória, mas de uma transparente escuta no momento presente, essa simples acolhida que torna sábios os pobres, sensíveis ao sopro de Deus, este Deus sempre livre, sempre presente, desconcertante.
Já diziam os antigos: “Fides ex auditu”; a fé vem pelo ouvido; o próprio Deus deixa-se perceber pelo ouvido; faz-se “audível” para o ser humano. Dentre os seres vivos criados por Deus, o ser humano é o único capaz de escutar e de falar, porque é o único criado à imagem e semelhança d’Ele, d’Aquele que é a Palavra cheia de verdade e a escuta cheia de ternura. “Deus é a Palavra suprema e o Silêncio infinito”.
Na Sagrada Escritura, o exercício do ouvido, a escuta, é prerrogativa tanto de Deus como do ser humano. Escutar o “mistério” entranhável e sempre livre de Deus é o caminho para encontrar nossa originalidade, nosso nome, para nos encontrarmos n’Ele, como no melhor eco de nossa oculta beleza.
É Deus mesmo que abre cada manhã os ouvidos dos discípulos e os torna atentos à escuta. Em toda Palavra de Deus existe sempre um dinamismo que nos des-vela e re-vela nossa verdade original. Voltar a escutar é voltar a ser criança. Tudo é palavra e silêncio. Tudo no universo vibra, emite, transmite, fala, vive. E ao mesmo tempo tudo é escuta e percepção.
A escuta estabelece a verdadeira relação entre os seguidores e Jesus. No evangelho de hoje, o apelo à escuta nos interpela com força; é um apelo que brota da nossa própria vida, como abertura à profundidade de uma existência com sentido e horizonte; trata-se de um chamado a escutar uma palavra nova e original e que nos abre a uma dimensão transcendente, sempre apaixonante, de uma relação pessoal com o Criador e com os outros.
Desde nosso nascimento, começamos a viver uma relação com o meio ambiente que implica uma escuta e uma resposta. E assim nossa personalidade humana e espiritual vai se definindo. No contexto atual, a atitude de escuta é um desafio; inimiga número um da escuta é a pressa e a ansiedade que ela costuma trazer consigo. O ritmo da vida não nos permite “lê-la” com claridade, com a entonação que ela exige e merece. Cremos ter uma riqueza interior que queremos proclamar, e preferimos que nos escutem, mas ao falar não articulamos bem nossa mensagem, desconhecendo que nossa riqueza interior se desperta primordialmente na escuta.
É preciso destravar nossa capacidade de escuta interior, para acolher e discernir as diferentes vozes que ali se fazem presentes. Sem interioridade e sem escuta do próprio coração, nós nos desumanizamos.
Educados na escuta interior, estaremos sensibilizados para a escuta da realidade. Permitir que cada realidade fale para nós sua própria linguagem. Isso é ter ouvidos para a escuta.
Aqui não se trata de ser puramente receptivos a algumas idéias, escutar determinadas palavras, senão de escutar com o ouvido do coração, de procurar captar a vida que pulsa no coração do outro. E isto exige uma profundidade que talvez esteja faltando, quando estamos nos movendo na superficialidade da vida.
Além disso, saber escutar o outro é uma simples, mas profunda acolhida humana. Saber escutar é acolher o outro. Há muita carência dessa capacidade em nossa sociedade globalizada, individualizada e sobretudo informatizada ou tecnologizada. Estamos rodeados de aparelhos e não de pessoas; tudo são ruídos e vozerio crônico. Todo o mundo quer falar, expressar-se. Mas falta o interlocutor que escuta sabiamente.
O Evangelho nos quer colocar no caminho de uma verdadeira humanização; daí a insistência em ter uma atitude aberta e acolhedora de escuta.
Texto bíblico: Mc 9,2-10
Na oração: Como restaurar em nós essa capacidade de escutar? A escuta se restaura no Silêncio, na capacidade de acolher Aquele que fala no silêncio. Desse prolongado silêncio, acaba-se ouvindo a Palavra da qual brota todas as palavras humanas.
- Tomo consciência daquilo que obstrui os meus ouvidos e os torna “incapazes de prestar atenção”.
- Tomo consciência da superficialidade diante da voz da consciência e da incapacidade de escutar o outro, não deixando ressoar a sua voz no meu coração.
- Tomo consciência de todas as mensagens negativas que transformaram, seduziram e enganaram meus ouvidos, tornando-os surdos às mensagens celestes, à Palavra da verdade e da vida.
- Tomo consciência da hipersensibilidade auditiva que me faz reagir bruscamente frente à incompreensão ou me faz sucumbir frente aos slogans da moda.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI