“Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas,
e Maria Madalena” (Jo 19,25)
A vida humana é fecunda, é potencialidade, é explosão de criatividade... Assim como na semente há vida latente esperando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilida-des, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem. A maior perda da vida é aquilo que “resseca” dentro de nós enquanto vivemos: sonhos, criatividade, intuição. A vida é fecunda, é um turbilhão energético, é explosão de criatividade, é potencialidade.
“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).
Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora... Jesus foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência, da exclusão..., enfim, diante de tudo o que atenta contra a vida. Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Tornou-se um perigo a ser eliminado.
Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
Existem cruzes que são vazias, sem sentido, insensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida. São cruzes que nós impusemos sobre nossos ombros ou que os outros nos impuseram. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas se fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo. Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus que leva a Cruz da fidelidade nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.
A Cruz assumida por Jesus é “expansiva” porque é expressão de uma vida entregue; ao mesmo tempo, ela O projeta para a “margem” onde Ele revela uma presença despojada, vulnerável, que se identifica com a dor do mundo, com a marginalização dos excluídos e com a desgraça de todos os miseráveis da terra. Sua Cruz manifesta que Deus é Compaixão porque continua do lado do inocente sofredor; Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele”.
Acompanhando Jesus na paixão, também “vamos sendo talhados” pelas cenas que contemplamos, com o coração aberto à dor e à aflição. É o seguimento levado às últimas consequências. Participando da morte de Jesus, podemos também fazer de nossas cotidianas mortes um ato de decisão, de entrega, de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo, morto e ressuscitado, nos ajuda a tirar do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e proteção, e encontrar uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita em favor da vida dos outros.
É gratificante trazer à memória tantos homens e mulheres que são presença compassiva e, à maneira de Jesus, arriscam suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudam os outros a viver; pessoas que revelam a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregam suas vidas no escondimento, sem vozes que as exaltem; elas são como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
Nos evangelhos, a Paixão de Jesus não é uma simples sequência de fatos, mas um confronto entre pessoas. Os diversos personagens entram em contato direto com Jesus, reagindo cada um a seu modo, vivendo cada qual o mistério do próprio chamado e da própria tomada de posição frente a proposta de Jesus.
Contemplar toda a galeria de pessoas que se encontra com Jesus. Cada qual com uma resposta diferente, diante de Jesus sempre igual em sua atitude de disponibilidade e de entrega.
Os evangelistas dão um destaque especial à presença das mulheres no caminho da Cruz, solidárias com Aquele que era vítima da indiferença cruel.
Estão ali, precedendo-nos no caminho, e não dizem nada. É seu corpo, são seus gestos, suas mãos, seus olhos, seu silêncio... que falam por elas. A linguagem delas é a linguagem do encontro solidário. Se elas podem permanecer nessas circunstâncias, é porque amaram muito. Elas nos falam de resistência e de fidelidade, de uma presença comovedora. Estão juntas, expostas a outros olhares, como comunidade de discípulas em torno a seu Mestre, que lhes ensina, agora sem palavras, uma sabedoria muito maior.
Em meio à impotência, não se afastam da dor experimentada ao ver sofrer a quem mais se ama, senão que se expõem ao olhar d’Aquele cujo rosto foi desfigurado. Sobem com Ele ao lugar do abandono e da ingratidão, levantando uma ponte de proximidade e de solidariedade que cruza a totalidade da vida de Jesus. Nem um só instante afastaram seus olhares d’Ele. E o que para uns é escândalo e para outros é loucura, para estas mulheres é uma força de Deus impressionante. Elas acompanharam a vida de Jesus muito de perto, “à sombra”, e agora, a morte d’Ele lança uma forte luz sobre elas, tornando-as visíveis para que todos saibam quem são elas.
Elas tem a coragem de permanecer ali, acolhendo o acontecimento em toda sua crueldade e profundidade; elas estão de pé, enquanto outros desistiram ou se afastaram assustados.
Olhando de longe, estavam junto a Ele, deixando-se imantar por Ele, vivendo privilegiadamente um mistério que se oferece a todos. A partir deste momento elas vão aprendendo a conviver com a morte, com a d’Ele, com a sua e com a dos outros. Vão aprendendo, precisamente em meio à morte, a “celebrar a vida”, mesmo intuindo que uma lança também as atravessará.
Daqui para a frente elas se tornarão pedagogas de um encontro que gera humanidade; elas estenderão suas mãos sobre os necessitados, com o mesmo desejo com que Jesus as estendeu, para tocar voluntariamente as pessoas enfermas, selando uma aliança, um “pacto de ternura”, com todos os desprezados e excluídos.
Diante da Cruz “descemos” com Jesus até à cruz da humanidade.
A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, o “Justo e Santo”, identificado com os crucificados da história.
Como diz o teólogo Jon Sobrino, não podemos crer no Crucificado de um modo coerente se não estamos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela.
Entende-se, assim, o grande “grito” que brotou das profundezas da dor de Jesus na Cruz e que continua ecoando como clamor angustiado. Não são poucos os gritos dos mais pobres, excluídos, doentes...
O grande grito de Jesus é a certeza de tudo o que sustenta o seu coração; ao ecoar junto aos crucificados, provocará grandes novidades. Um grito que não fica no vazio mas aponta para a Vida.
Texto bíblico: Jo 12,20-30; Jo 18 e 19
Na oração: Somos grãos de trigo na grande seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com mais sentido e intensidade.
Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos; só assim nossa vida terá a dimensão da eternidade.
- “Se a semente do trigo sou eu, a quê devo morrer, para que a vida interior possa se expandir?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj