Dois são os rumos de onde o ateísmo costuma partir. De um deles, brota a questão da incompatibilidade da existência simultânea do mal e de Deus. Disso tratamos no texto anterior. De outro, haveria a mesma incompatibilidade entre as exigências da razão e a existência de Deus. Talvez o primeiro dos rumos, já aparecido na Grécia, seja mais antigo. Com relação ao outro ponto de partida, a razão grega desemboca, de uma forma ou de outra, no terreno teológico. O pensamento medieval procurou aproximar os dados da razão, herança grega, daquilo que o páthos da fé anunciava. Fé e razão, Jerusalém e Atenas Mais do que isso, aí é o próprio exercício da razão que aponta para os seus limites, abrindo o horizonte da fé. Esse foi o ousado programa medieval, uma era teocêntrica.
A partir da modernidade, com as transformações no campo das ciências da natureza, e com as mudanças no cenário econômico e social terá lugar um desenho que ainda é o nosso. É comum dizer, e com razão, que passamos do universo teocêntrico para um novo universo, antropocêntrico dessa vez. Do ponto de vista que nos interessa, o sucesso das novas ciências foi entendido como consequência de uma razão mais modesta, mais cuidadosa, que funciona dentro de certos limites e mais capaz de apresentar resultados. Ora, as discussões incessantes no campo da religião contrastavam com a concordância generalizada no campo das ciências e com seu caráter progressivo. Não seria então o caso de se tomar a ciência como o modo justo do uso da razão e relegar os demais conhecimentos a domínios mais subjetivos ou privados? Para além disso, do ponto de vista político e social, a religião, pouco a pouco, cedia lugar a saberes mais laicos e, ao mesmo tempo, desocupava áreas até então mantidas sob a sua tutela. Nascem as ciências sociais, as ciências humanas e o olhar se torna mais e mais horizontalizado. Passamos, ao longo da modernidade, do extramundano para o intramundano.
E, cada vez, as relações entre religião e ciência passam a ser marcadas pela contraposição. Aquilo que havia ocorrido com Galileu se repete agora com Darwin. Não apenas se reconhece a distinção entre razão e fé, mas, para além disso, a fé, experiência fundante da religião é vista sempre negativamente, algo a que faltam provas.
Relegada ao domínio privado, daí o lema religião não se discute, ela progressivamente sai da cena púbica e é considerada como sendo destituída de qualquer potencial cognitivo.
Mais recentemente, esse cenário vem sendo objeto de alguma revisão. De um lado, é defendida a possibilidade de uma convivência entre os dois campos, dado o seu viés ou a sua natureza. Talvez preencham demandas de significado distintas: a ciência voltada para a decifração do mundo sujeito à experiência, no sentido amplo da palavra, enquanto a religião se ocupa do sentido do universo e de nossa presença nele, questão evidentemente pós-empírica. Outro fator é o progressivo reconhecimento do material interpretativo nas ciências, do imprescindível recurso a teorias, estas sim capazes de iluminar a experiência e não reproduzir o que é dado na experiência mais imediata. Enfim, num e noutro caso, de formas distintas, a dimensão interpretativa, um tanto hipotética está presente. Talvez ganhemos alguma clareza sobre a relação ciência e religião. Mais recentemente, essa concepção da ciência como conhecimento provado vem sendo revista e admite-se, no seu interior, um material especulativo, teórico, sob algum exame da experiência. Cresce o sentimento de que são campos distintos, talvez complementares ou, pelo menos, passíveis de convivência. Por outro lado, visto ser a religião uma tentativa de leitura do universo e de nossa presença nele e mesmo da condição humana, talvez possam ser abertas novas frentes de debate. É o que parece estar ocorrendo no domínio da cosmologia, esse olhar sobre o universo como um todo, e, por outro lado, no campo da antropologia filosófica, visto haver na religião uma leitura da experiência humana com caráter empírico.
Ricardo Fenati
23.09.2024