À primeira vista, a discórdia está hoje mais espalhada do que nunca. Vivemos em sociedades mais e mais complexas, o que traz como conseqüência inevitável a diversidade de comportamentos, a multiplicidade de pontos de vista e a afirmação generalizada dos direitos. Tudo isto, sem dúvida, é mais que louvável, já que garante a expressão de vozes às quais um silêncio penoso sempre foi imposto. Entretanto, se observarmos mais de perto, o espetáculo das diferenças, com freqüência, não vai muito longe, contenta-se apenas em garantir a satisfação das demandas próprias de cada grupo.
Curiosamente, esta proliferação das diferenças não dá lugar a quaisquer disputas de mais longo alcance e nem a posições que não se reduzam ao nosso interesse mais imediato. Permanecendo circunscritos ao nosso espaço privado ou do grupo a que pertencemos, perdemos a oportunidade de nos aproximarmos das questões que dizem respeito à humanidade como um todo, cujas respostas desenham as sociedades e indicam as balizas no interior das quais as civilizações se desenvolvem.
Trazidas à luz e cultivadas, estas grandes questões geram a discórdia proveitosa, na medida em que nos lançam no espaço público, em meio a combates nos quais está em jogo o que há de mais precioso na existência humana. Aqui a efetiva discórdia mostra todo o seu valor: discordamos não mais em nome do que nos singulariza enquanto indivíduo ou grupo, mas em nome do que, imaginamos, todos partilham. Os tempos atuais são difíceis: discordamos exaltadamente sobre a proibição das sacolas plásticas nos supermercados, mas guardamos um silêncio embrutecedor sobre o que torna feliz a existência humana. Optando pela discórdia que nos afasta, evitamos a discórdia que nos aproximaria.
Para pensar na quinzena:
“Ilhas perdem os homens” (Carlos Drummond de Andrade).
Ricardo Fenati
15.03.2012