Daqui a três anos, em 2021, estaremos comemorando os 200 anos de nascimento de Dostoiévski, cuja obra não cessa de apaixonar velhos e novos leitores. Ítalo Calvino dizia que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Não é exagero considerar que alguns dos livros de Dostoiévski – indisputadamente Crime e Castigo e Os irmãos Karamázov – são, nesse sentido, clássicos. E há outros, por exemplo, Notas do Subsolo, cuja repercussão no existencialismo francês e na cultura contemporânea é mais do que evidente.
É quase um consenso entre os seus intérpretes falar de duas etapas na sua vida de escritor, divididas pela experiência da prisão e do tempo de serviço militar. O ano de 1860, data da publicação da Recordação da Casa dos Mortos, marca o início da segunda fase, na qual encontraremos os grandes romances. Como teremos quatro colunas seguidas sobre as obras do mestre russo, vamos começar pela narrativa dos anos de prisão, a Recordação da Casa dos Mortos. Recebida como um manifesto humanista, põe às claras a absurda crueldade das prisões russas, os castigos desumanos, as condições deterioradas dos presídios, os abusos no exercício do poder por parte das autoridades, enfim, um quadro cuja revelação mostrou a insustentabilidade das condições carcerárias de então. Entretanto, nós nos enganaríamos se víssemos na obra apenas um relato, ainda que importante, dessas condições.
Trata-se de um registro, é verdade, mas não só. É a partir de um ponto de vista antropológico, que não cessará de ganhar corpo nas obras seguintes, que a vida prisional é vista. Dostoiévski esteve preso e já foi dito que a temporada na prisão é uma espécie de iniciação espiritual para ele. Desprotegida dos véus com os quais o cotidiano esconde os nossos abismos, a prisão lhe aproximou da carne viva da existência humana e, isto não é um exagero, revelou Dostoiévski a Dostoiévski.
Temas que mais tarde serão aprofundados fazem aqui (quase) a sua primeira aparição: a compassividade para os humildes e humilhados, a percepção dos problemas metafísicos que rondam a existência humana, a agudeza do olhar psicológico, a oscilação entre dois destinos possíveis – a santidade e o crime –, a distinção entre a honra e a desonra. É na prisão, vivendo com os demais prisioneiros, que Dostoiévski aprende, para sempre, que a luta pelo significado e a experiência da liberdade são inseparáveis do que devemos considerar como uma vida humana.
A obra confirma o que Dostoiévski, então com 18 anos, escreve numa carta ao seu irmão Mikhail: “O homem é um enigma. Esse enigma tem de ser decifrado e se você levar a vida inteira para fazê-lo não diga que desperdiçou seu tempo. Eu me ocupo desse enigma porque quero ser um homem.”
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola