Espelhos (1)

Comparar escritores, buscar o que os aproxima, indicar o que os distingue, é muitas vezes um exercício proveitoso. Quando dois desses escritores, no nosso caso, Machado de Assis e Guimarães Rosa, se ocupam do mesmo tema, o espelho, essa metáfora da experiência da interioridade, o exercício pode ser ainda mais interessante.

Exploro rapidamente o conto de Machado de Assis, deixando Guimarães Rosa para a coluna seguinte e  desejando que as observações a seguir levem à leitura dos contos, ambos com o mesmo título, O Espelho. Em Machado, o personagem, esboçando uma nova teoria, a divide a alma em duas, uma externa e outra interna. A externa, diz ele, apega-se a qualquer coisa, do botão de uma camisa a uma profissão, de um livro a um par de botas. Mutável como é, a alma externa, frequentemente, passa sem dificuldade de um apreço a outro. E, não raro, ela agiganta-se, ocupando todo o espaço, soterrando a outra metade, a alma interna. É esse o miolo do conto, a dupla dimensão da alma.

Jacobina fala do que conhece por experiência própria. Tendo sido promovido a alferes, como o correspondente fardamento, apegou-se de tal forma à farda e à admiração pública  por ela suscitada  que a outra metade da alma, sufocada, se recolheu. Vitoriosa, a alma externa se vê em dificuldades quando  circunstâncias inesperadas  afastam toda vida social, isolando Jacobina num sitio remoto, deixando-o inteiramente à mercê de si mesmo. Sem o socorro do olhar alheio e sem o benefício da admiração, é preso de uma angústia crescente. Na solidão absoluta, o desconsolo se estende. E se amplia ainda mais quando o espelho, para sua surpresa, ao invés da esperada imagem, lhe entrega um borrão sem qualquer nitidez. Desaparecida a alma externa, nada lhe restava?   O conto vai mais adiante, mas podemos ficar por aqui.

É esse o tema que o conto nos apresenta e, num certo sentido, tem uma dimensão de iniciação. Nossa jornada em direção a nós mesmos, sempre difícil, sempre sujeita a desvios, sempre dolorosa, é, não raro, interrompida  por uma tarefa mais imediata, essa que nos entrega uma identidade mais à mão, a farda de alferes que basta a Jacobina ou o recurso de que lançamos mão e com o qual procuramos  nos coincidir. O conto lembra o convívio, conflitivo, e por vezes trágico, que marca a condição humana.

Leia o conto e examine o que diz  Machado de Assis, cuja ironia ou ceticismo nunca são desacompanhados do afeto pela nossa humanidade.   

Ricardo Fenati

Equipe do Centro Loyola

27.01.2021

Imagem: pexels.com/pexels-anni-roenkae