Lendo ao léu, esbarramos, por vezes, com textos cuja intensidade nunca se oferece a um primeiro olhar. Cito um desses, é de Jacques Maritain, que chama de pecado do angelismo “a recusa da criatura a submeter-se ou ser governada por quaisquer das exigências da ordem natural”. Angelismo, o que isso pode significar? Nada que deva nos surpreender, refere-se a uma inteligência que não sofre qualquer determinação material. Ora, segundo o autor, somos suscetíveis desse pecado ou, para usar outra expressão, desse erro com relação à condição humana. Nosso orgulho, traço antigo, ganha velocidade ao longo da modernidade, o que nos faz supor, apoiados no crescimento do nosso poderio, que somos artífices integrais seja da natureza e, mais recentemente, de nós mesmos. É como se a nossa consciência dispusesse de um domínio inconteste sobre a chamada ordem natural, como se ela pudesse estender infinitamente o seu domínio. Sem qualquer passivo ou pertencimento, a consciência, solitariamente, legislaria sobre o mundo. Essa inteligência, assim desencarnada, liberta de toda alteridade, não é um esforço de mimetizar o que Maritain assinala como angelismo?  Vamos mais adiante. A originalidade do horizonte cristão é a Encarnação, essa reunião indissolúvel de dois domínios. Distintos, interagem sem cessar. Imaginar que essa dinâmica possa ser dar lugar a metades isoláveis ou que deva que qualquer dos domínios deva perder sua identidade é se afastar do que diz o cristianismo.

Desse modo, podemos ver no texto de Maritain uma observação crítica com relação a esse hábito contemporâneo de nos imaginarmos senhores ali onde não o somos e desconhecer, em nome da onipotência da consciência, a nossa morada, a nossa mundaneidade e as lições que daí decorrem. Não é outro o sentido da expressão ordem natural:  trata-se do lugar de onde nós, criaturas que somos, partimos.

Ricardo Fenati

Equipe do site

Imagem: Beatriz Milhazes