Em 2025 celebramos seis décadas da publicação de um dos maiores clássicos da ficção científica, o romance Duna do norte-americano Frank Herbert (1920-1986), obra inaugural da saga Duna. A primeira edição foi publicada em agosto de 1965 pela editora Chilton Books. Em 2021, estreou o filme Duna – Parte 1, dirigido por Denis Villeneuve, e, em 2024, chegou aos cinemas Duna – Parte 2, também sob sua direção. Juntas, essas produções buscam retratar o Livro I da série. Não se tratou, contudo, da primeira adaptação cinematográfica. Em 1984, o cineasta David Lynch, lançou sua versão do romance, ousada e complexa ao tentar condensar quase 600 páginas em apenas 137 minutos. Apesar das adaptações, o livro permanece leitura essencial e cresce em importância social. Para compreender essa relevância, convém situar o livro no contexto da ficção científica de seu tempo.
A época de Frank Herbert coincide com a chamada “Era de ouro da ficção científica”. Alguns autores fundamentais desse momento são: Isaac Asimov, Fundação (1951); Arthur C. Clarke, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968); Ursula Le Guin, A Mão Esquerda da Escuridão (1969); Robert Heinlein, Tropas Estelares (1959); e Ray Bradbury, Fahrenheit 451 (1953). Esses títulos moldaram a ficção científica para várias gerações. Entre eles, Fundação, de Asimov, um dos livros da minha vida, sempre me pareceu um contraponto a Duna, pela maneira como os seus heróis eram profundamente diferentes nessas duas obras. Essa época foi marcada tanto pelas space operas de larga escala, como Fundação, quanto por críticas sociais profundas, como A Mão Esquerda da Escuridão e Fahrenheit 451. Embora eu admire todos esses livros, Duna me impressiona pelo caráter realmente inovador.
A narrativa de Duna apresenta um universo singular e minuciosamente construído: um sistema de feudalismo galáctico, em que casas nobres controlam planetas e regiões inteiras como se fossem feudos interplanetários. Esse modelo de poder ecoa tanto a Idade Média europeia quanto os impérios coloniais modernos, criando uma sensação de familiaridade dentro de um cenário futurista. Duas casas são centrais: a vilanesca Harkonnen, símbolo de exploração e crueldade política, e a virtuosa Atreides, que busca governar com ética, mas ainda assim está presa às estruturas de poder do Império. Forçada por intrigas políticas e econômicas orquestradas pelo imperador e pela Casa Harkonnen, a Casa Atreides é transferida para governar Arrakis, o mundo desértico conhecido como Duna. É nesse palco árido, estratégico e disputado que se desenrola a maior parte da história, misturando jogos de poder, alianças e traições.
Esse planeta árido não era, porém, um deserto vazio. Há gerações, ele é habitado pelos Fremen, povo resiliente, nômade e profundamente religioso, que desenvolveu uma cultura adaptada às condições extremas do deserto. Os Fremen guardam paralelos com povos beduínos e berberes que sobrevivem em regiões hostis. Eles foram sistematicamente explorados e manipulados pelas grandes casas imperiais. Arrakis é também lar dos gigantescos “vermes da areia”, criaturas análogas a minhocas colossais, capazes de produzir a especiaria “melánge”, substância que concede longevidade, habilidades premonitórias e é essencial para a navegação interestelar. O controle desse recurso equivale, no universo de Duna, ao domínio de um recurso natural muito valioso, transformando Arrakis no epicentro de disputas econômicas, ecológicas e espirituais.
Entre os personagens, destaco dois polos centrais: o “herói” Paul Atreides, herdeiro da Casa Atreides, preparado desde cedo para ser guerreiro, estrategista e líder político, e sua mãe, Lady Jéssica, membro da ordem das Bene Gesserit, cuja disciplina milenar combina treinamento físico, mental e manipulação genética para influenciar a história do Império. Esse núcleo familiar articula os grandes temas do romance: destino e liberdade, poder e espiritualidade, tradição e ruptura. Entre tantos personagens marcantes, meu favorito atualmente é Stilgar, líder Fremen que encarna a complexidade de um guerreiro profundamente ligado à sua cultura e fé, ao mesmo tempo em que precisa negociar alianças com forças externas. Com esse trio — Paul, Jéssica e Stilgar — Herbert constrói um drama épico que transcende o gênero e se aproxima das grandes tragédias políticas e, especialmente, religiosas da humanidade.
Por que essa história continua atual? Para começar, Duna dialoga fortemente com preocupações ecológicas. Foi publicado poucos anos depois de Rachel Carson lançar seu Primavera Silenciosa (1962), obra seminal do ambientalismo moderno. Além disso, o retrato de um povo do deserto responsável por um recurso vital remete, inevitavelmente, aos debates sobre petróleo e geopolítica no mundo árabe. Outro ponto central é o uso da religião como instrumento de controle político, moldando a obediência a um salvador prometido. Apesar desses paralelos, Herbert não os explicita diretamente. Eles funcionam como pano de fundo, enriquecendo a narrativa e permitindo inúmeras interpretações. Cada releitura revela novas camadas, e a que mais me chama a atenção é a trajetória do protagonista, Paul Atreides.
Minha experiência de leitura mudou com o tempo. Em minha primeira leitura, eu via Paul como um jovem heroico restituindo a honra de sua casa, ao lado da mãe poderosa e sábia, de sua esposa Fremen Chani e do fiel Stilgar. Porém, com o passar dos anos, percebo que Paul não é o salvador idealizado, mas alguém que manipula a fé de um povo oprimido, conduzindo-o a uma guerra santa, a Jihad, cujo objetivo final serve a seus próprios interesses e aos da Casa Atreides. O herói torna-se, para mim, um líder estratégico, mas calculista, que instaura uma paz construída sobre sacrifícios humanos de pessoas que nem compreendem sua condição. Ele permanece sendo um herói, porém um herói que comete atrocidades e se alia ao terrível para alcançar o bem. O mais perturbador é que Paul sabe exatamente o que faz e entende que sua ascensão desencadeará uma guerra santa em seu nome.
É aqui que reside meu fascínio pelo livro: a tensão entre fé e manipulação, destino e liberdade, heroísmo e queda. Paul Atreides é o messias de Duna, como sugere um dos títulos subsequentes da saga, mas um messias de mãos manchadas de sangue.
Bruno Pettersen
professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE
In: Palavra e presença (FAJE)
18.09.2025