“Este é o meu Filho amado, no qual eu pus o meu agrado” (Mt 3,17)
Começamos o “Tempo Comum” do novo ano litúrgico (Ano A: evangelista Mateus); ao longo deste ano vamos realizar um percurso contemplativo, deixando-nos impactar pelos mais importantes acontecimentos da vida pública de Jesus. É natural que comecemos com o primeiro relato deste percurso, o batismo.
Sem dúvida, foi a experiência decisiva na vida de Jesus. Ali, Ele tem clareza de ser o Messias, enviado pelo Pai, a serviço do Reino. Jesus mergulha no rio Jordão e, ao sair das águas, experimenta uma “teofania” (manifestação) que revela seu mistério mais profundo e que antecipa sua Páscoa. Jesus é proclamado oficialmente o “Filho amado do Pai” e sobre Ele desce o Espírito.
Jesus se sente verdadeiramente o Filho amado do “Abbá”, e o batismo deixa claro que o motor de toda sua trajetória humana é obra do Espírito. Nesse sentido, o Batismo revela-se como um momento chave no percurso de Jesus, marcando-o para toda sua vida; marcou sua experiência de Deus; marcou a experiência de si mesmo e marcou o caminho que tinha adiante.
Em Jesus, essa tomada de consciência de quem é Deus n’Ele, foi um processo que não terminou nunca. O relato do batismo está nos falando de um passo a mais, embora decisivo, nessa tomada de consciência. O que a cena do Batismo nos relata é uma autêntica conversão de Jesus, o que não quer dizer que vivia uma situação de pecado, mas um profundo despertar de sua missão, em seu caminhar para a plenitude.
Pela primeira vez, em sua condição humana, Jesus sente a confissão do Pai sobre Ele; confessa-o como Filho. E lhe marca com os sinais do amor: “Este é meu Filho o amado, no qual eu pus o meu agrado”. É a experiência messiânica fundante que marcará para sempre: júbilo, confiança, disponibilidade, fé profunda, fidelidade total, docilidade incondicional ao Pai e a seu desígnio de salvação.
Em seu batismo, Jesus ficou como que “tatuado” pelo amor do Pai. E por isso viveu numa total liberdade de espírito. Não importava se o rejeitavam, pois Ele se sentia profundamente unido ao Pai. Não importava se o criticavam, pois Ele se sentia marcado pelo amor do Pai. Não importava se os seus lhe abandonavam, pois Ele se sentia “tatuado” pelo amor do Pai.
Jesus quer viver sempre sendo Filho amado, que ama a seu Pai e, portanto, que ama o que seu Pai ama. Quer deixar-se apaixonar por aquilo que seduzia o coração do Pai: a vida da criação, a vida digna dos seus filhos e filhas, a quem também deixa transparecer um amor de predileção.
Essa experiência de ser “o Filho amado” será sua força vital durante toda a vida de Jesus. E essa também deveria ser a experiência do(a) seguidor(a) d’Ele: ser alguém “marcado como o(a) amado(a) de Deus”. Quando descobre este sinal e esta “tatuagem” de ser também ele(ela) “o(a) amado(a), o(a) predileto(a) de Deus”, então descobrirá o que é ser cristão(â), compreenderá sua fé, entenderá as exigências do Evangelho, acolherá o grande mandamento do Amor: “Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado”.
Para amar como Ele amou, antes é preciso fazer a experiência de sentir-se amado(a) pelo Pai.
Deixando-se conduzir pelo Espírito, Jesus se encaminha para a plenitude humana, marcando-nos o caminho de nossa plenitude. Mas, é preciso ser muito consciente de que só nascendo de novo, nascendo da água e do Espírito, poderemos ativar todas as nossas possibilidades humanas. Não seguimos de Jesus a partir de fora, como se tratasse de um líder, mas entrando, como Ele, na dinâmica da vivência interior, onde o Espírito atua com liberdade. Daí em diante, tudo o que dissermos e fazermos será a manifestação continuada do Reinado de Deus, que experimentamos em nós mesmos.
Deus chega sempre a partir de dentro, não de fora. Nossa mensagem “cristã” de doutrinas, normas e ritos, está muito distante daquilo que Jesus viveu e pregou. O centro de sua mensagem consiste em convidar todos os homens e mulheres a ter a mesma experiência de Deus que Ele teve. Depois dessa experiência, Jesus vê com toda claridade que essa é a meta de todo ser humano e pode dizer como disse a Nicodemos: “é preciso nascer de novo”. Porque Ele já havia nascido da água e do Espírito.
Deus quer suscitar vibrações novas em nossas vidas e sua Presença instigante desperta em nós o grande desejo de entrar em sintonia com Seu coração. Abrir os olhos e os ouvidos à Presença e à ação de Deus nos faz ficar atônitos, fascinados e sensíveis à voz divina que cada dia ressoa em nosso interior.
Talvez Ele precise colocar outro ritmo em nossa existência, que nos permita estar atentos e à escuta das surpresas que a vida des-vela. A nós corresponde nos mobilizar e estar atentos aos movimentos do Seu Espírito e dos acontecimentos.
A experiência do batismo de Jesus também é importante para todos nós, seus(suas) seguidores(as), para compreender o verdadeiro sentido de nossas vidas. As raízes de nossas histórias podem estar marcadas pelo amor ou pelo desamor. Quando estas raízes estão marcadas pelo amor, crescemos em harmonia conosco mesmo, em harmonia com os outros e em harmonia com o mundo. Quando nossas raízes estão regadas pelo amor crescemos com segurança em nós mesmos, com confiança nos outros e nossas vidas passam a adquirir o sentido da unidade interior.
Somente aqueles(as) que mergulham nas águas do perdão, da compaixão, do amor solidário..., saem marcados pelo Espírito e confirmados na filiação. O mundo seria diferente se as pessoas, rompendo o medo e a insegurança, se atrevessem a sair dos seus moldes, dos seus hábitos arcaicos, das suas maneiras atrofiadas de pensar, sentir, amar...
Recordando os inícios do cristianismo, com João Batista submergindo as pessoas no rio Jordão, não podemos deixar de dar um destaque especial que também Jesus se submergiu. Jesus se submerge e experimenta, escuta, sente, adquire lucidez... Essa passagem de Jesus é determinante para nos abrirmos a uma experiência nova na vivência do seu seguimento. Ele nos aproxima ao abraço refrescante de Deus, recebido nas águas. O que para os outros foi purificação, perdão..., para Jesus é de um dinamismo incomparável. Essa experiência O transforma, O faz ir além de si mesmo, rompendo visões estreitas de Deus, quebrando conceitos antigos de religião...
Submergir-nos é sinônimo de deixar Deus, a Vida, trabalhar em nós. A água, com sua força misteriosa, com sua capacidade de gestar vida, é também um símbolo que nos move a abandonar o que é arcaico para deixar-nos submergir no que é de Deus, nunca antigo, nunca ultrapassado. A água que corre, que flui, sempre é nova. Deus Fonte inesgotável: Ruah, ar, alento, espírito, dinamismo, puro fluir.
Encharcados de água, entramos no fluir daquele maravilhoso início, quando a Ruah fluía e enchia nossa vida de alento e inspiração. Precisamos nos atrever a submergir de novo, adentrando-nos por caminhos desconhecidos, para descobrir nosso mapa interior e nossa verdadeira identidade: “Filhos e filhas, amados(as) do Pai”.
Texto bíblico: Mt 3,13-17
Na oração: Na musicalidade da vida sinta a regência, suave e delicada, do Grande Compositor, arrancando notas divinas da dispersão caótica do seu cotidiano. Sinta a cadência da música divina que vibra, conduz e vivifica. Receba, com gratidão, o mais leve toque das mãos providentes e ternas do Grande Maestro.
Aguce seus ouvidos e escute até com os olhos a sinfonia que brota do mais profundo de seu ser.
- Faça memória de sua experiência batismal; renove, junto ao Jordão interior, seu compromisso batismal.
Pe. Adroaldo Palaoro sj