“Vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco” (Mc. 6,31)

 

É comum medir as pessoas pela sua capacidade de trabalhar, produzir. Por que não definir as pessoas pela sua capacidade de descansar? Só quem aprendeu a arte de descansar sabe trabalhar e relacionar-se com verdadeiro humanismo. “Diz-me como descansas e eu te direi como trabalhas e tratas os outros”.

 

O descanso humaniza o trabalho e o clima das relações que cultivamos com os outros. Descansar é, portanto, uma questão de justiça social, um imperativo de caridade fraterna. Muitas vezes os outros são obrigados a pagar a fatura do nosso cansaço, do ativismo em que nos envolvemos. Tornamo-nos “cansativos”.

 

Só quem vive reconciliado, em 1º lugar consigo mesmo, é que pode descansar como Deus manda.

 

O descanso não é uma fórmula mágica de relaxação dos músculos e nervos, uma receita automática de ritmo biológico. É sobretudo um modo construtivo de encarar a vida, um clima de paz interior que se cultiva, um coração disposto a amar em todas as estações, sem condições nem fronteiras. Não se trata de ociosidade egoísta, mas do cultivo da paz e da alegria, ao serviço dos outros.

 

Na sociedade contemporânea, o trabalho invadiu também o domínio do lazer e do tempo livre; estes devem ser, acima de tudo, “produtivos”. Para muitos, para tirar o máximo proveito do “tempo livre”, é preciso planejá-lo e organizá-lo. Férias e fins-de-semana são admitidos não como um fim, mas simplesmente porque aumentam a produtividade. O excesso de “stress” é inimigo do bom desempenho.

 

A própria palavra “entretenimento” indica o desejo de não parar. É a busca de algo que nos distraia para que não possamos estar totalmente presentes. A diversão nos mantém na superfície de nós mesmos, evitando o confronto com as grandes questões da vida (medo de confrontar-nos com as questões vitais de nossa existência; medo de deixar aflorar situações não resolvidas ; medo do contato com o que é essencial na vida...).

 

A pergunta que as pessoas fazem no descanso “o que vamos fazer hoje?”, já vem marcada pela ansiedade. E sonhamos com longevidade quando não sabemos o que fazer numa tarde de domingo. É altamente significativo que a Sagrada Escritura, logo no início do Gênesis, nos apresente Deus a descansar dos trabalhos da Criação (Gn. 2,2-3).

Repousar é uma invenção que tem a marca do próprio Deus Criador, uma ocupação digna de Deus, sumamente útil. O preceito do repouso sabático do povo de Israel é um ponto fundamental da aliança entre Deus e o povo eleito (Ex. 31,13). A Carta aos Hebreus sublinha que Deus vive no “descanso eterno”. A infinita solicitude de Deus por toda a humanidade é exercida com suma paz e serenidade, em clima de dinâmico descanso.

 

O descanso é fundamental para a afirmação de Deus como o Senhor de todos e de toda a criação. O sábado faz cessar os trabalhos cotidianos e conceder uma folga. É um dia de protesto contra as servidões do trabalho e o culto ao dinheiro. É necessário dar ao descanso a força de transformação e de profecia da meta última que nos espera, ou seja, o “repousar de nossos trabalhos”  em companhia das obras realizadas com o Senhor.

 

Por que não encarar os tempos de descanso neste mundo como uma antecipação e um ensaio do descanso eterno, do repouso amoroso em Deus, que continuamente age para o nosso maior bem? Viver na presença de Deus é caminho certo para viver descansado.

“Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em Ti” (S. Agostinho)

 

Todo esforço precisa seu descanso, toda atividade pede uma parada. Não há tensão que não exija um relaxamento, nem atividade continuada que não peça uma recreação. Os cansaços acabam nos revelando que em nossa vida ativa estamos amputando certas dimensões do humano. Assim, o descanso, em seu sentido nobre, impede que nos convertamos em meros trabalhadores estressados; ela nos arranca de nossa existência maquinal.

 

É sintomático o fato de recorrermos frequentemente ao uso da linguagem da máquina para expressar o que buscamos com o descanso: “desconectar”, “tirar da tomada”, “recarregar a bateria”, “recuperar a energia”, “abastecer o motor”... Sutilmente, expressamos deste modo como nos percebemos em nossa realidade cotidiana e até que ponto estamos suportando níveis intoleráveis de saturação, de ativismo...

 

Devemos buscar, em cada circunstância, fazer do descanso uma ocasião de subversão de valores, de questionamento de nossa prática cotidiana, de enraizamento de nossa missão... enfim, de vivê-lo à maneira de Jesus Cristo.

 

Segundo o evangelho de hoje, as jornadas de Jesus nos evangelhos parecem ser muito esgotadoras: muitos enfermos lhe são apresentados para que os toque e os cure, são muitas as pessoas que se aproximam para escutá-lo, é cobrado em todos os lugares por onde passa, os conflitos com os fariseus... Jesus sentia os cansaços e as pressões, mas ao mesmo tempo sabia fazer “paradas” para recuperar as forças, para retomar o contato com o sentido de sua vida e de sua missão, para ser Ele mesmo.

 

Ele possuía uma lucidez que proporcionava uma visão profunda das coisas, no clima de uma paz sempre buscada. Para Jesus, o descanso, entre outras coisas, era um momento de restauração e reabilitação pessoal que lhe permitia mergulhar de novo no cotidiano com maior criatividade.

 

“Vinde sozinhos para um lugar deserto...” O descanso não é uma “des-conexão” , senão uma “conexão” com aquilo que é o impulso fundamental de nossa vida cotidiana. O descanso possibilita afastar-nos do rotineiro e nos faz caminhar ao deserto interior, onde podemos dirigir um olhar contemplativo sobre a vida cotidiana. Nele nos desprendemos do presente e de sua urgência tirana.

 

Por mais descansos que tenhamos, há cansaços  que só se aliviam através do encontro consigo mesmo, e há descansos que só se conseguem quando nos reconciliamos com o que somos e vivemos. No deserto nos personalizamos, resgatamos nossa identidade; nele temos a chance de ver a realidade sem instrumentalizá-la, gratuitamente. E só no gratuito é que descansamos.

 

O descanso nos conserva humanos; ele ajuda a recuperar um ritmo de vida mais humanizante (recupera a pessoa e sua capacidade de estabelecer relações gratuitas com outras pessoas, com a natureza e seus ritmos...). Não basta simplesmente poder folgar; ter acesso ao verdadeiro descanso é recuperar o sentido da gratuidade das nossas atividades e que melhoram a vida e a convivência.

 

O descanso inspira, nos faz criativos, porque toca as profundezas de nós mesmos e das atividades rotineiras. “Viver descansadamente” é encontrar um descanso, uma paz interior, uma quietude, uma consolação, uma satisfação na vida e nas atividades, e que tem sua raiz na comunhão com Deus que trabalha e descansa. A vida do “contemplativo na ação” é uma vida ativa vivida “descansadamente”, ou seja, na presença de Deus, com o coração centrado n’Ele, fazendo somente Sua Vontade...

 

Texto bíblico:   Mc. 6,30-34

 

Na oração:

“Descansar é uma arte. Viver descansadamente, uma arte ainda mais delicada” (J.A. Guerreiro)

- seu descanso: tempo de humanização ou mais um stress na sua agenda?

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Centro de Espiritualidade Inaciana

15.07.2012