“...encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc. 2,12)

 

O palácio e a manjedoura, o imperador e a criança, Augusto e Cristo, Herodes e os pastores... esses são os pontos mais distantes entre si, os pólos extremos de toda a história humana. Esse abismo nos ajuda a compreender o modo de agir de Deus. Ele não irrompe na história pelo lado mais alto e forte; prefere revelar sua presença pelo lado mais baixo e fraco. Para encontrar Deus temos de empreender o caminho de “descida”, dirigir o olhar e o coração para o mundo da exclusão.

 

Não é a grandeza e o poder, segundo os critérios humanos, que são decisivos para Deus.Lá em “cima” não há lugar para a Maria pobre, nem para o José sem recursos, nem para a criança sem títulos. O Filho de Deus apareceu nos grotões da humanidade, justamente lá onde ferve a luta pela sobrevivência, onde se acotovelam os esquecidos e os náufragos da vida... Deus se faz “clandestino” entre os clandestinos desta terra de exclusão.

 

 

Com a ação ousada e surpreendente de Deus, a periferia se põe em efervescência, os pobres e excluídos se agitam, uma alegria contagia a todos. Uma novidade foi introduzida por Deus na história da humanidade: chegou a vez do protagonismo dos últimos, dos pequenos, da “massa sobrante”...; quem estava “fora” ocupa o centro das atenções; o olhar de todos se dirige para a periferia da história, onde Deus se faz “margem”. Na Encarnação e Nascimento de Jesus esvaziou-se o céu. Deus abandonou o trono altíssimo, exilou-se nas entranhas profundas da humanidade e assumiu tudo o que é radicalmente humano.

 

Esta é a maneira que Deus escolheu para aproximar-se de nós, para percorrer os estreitos e poeirentos caminhos de nossa existência. Sua “entrada” no mundo não foi com estardalhaço e triunfo estrepitoso; deu-se à margem da história oficial, fora da cidade, numa noite silenciosa de Belém, no coração da terra, numa gruta de animais. Quase ninguém o percebeu. Outras “preocupações” dominavam o coração dos homens, a porta foi fechada... não restando a Ele outro caminho senão o da “clandestinidade”.

 

Vivemos imersos num contexto sociocultural onde o sentido e a força do mistério do Natal permanece obscurecido. Em primeiro lugar, a proximidade do fim de ano carrega o peso do cansaço, do ativismo, das correrias e ansiedades... que acabam impedindo uma preparação mais intensa para acolher a Novidade natalina. Em segundo lugar, somos continuamente impactados por um modo de festejar o Natal que nos distancia da Gruta de Belém. Trivialidades, consumismo, superficialidade, vazio, vulgaridade... são traços que acompanham nossa cultura e que dificultam enormemente a vivência profunda do Natal.

 

Tais situações nos desumanizam e nos afastam do essencial. O “deficit” de humanismo nos inquieta e nos escandaliza. Corremos o risco de viver nossa própria humanidade em “banda estreita”, ou seja, sem sonhos, sem projetos, sem uma causa de envergadura sobre a qual investir as melhores energias.

 

Seduzido pelos estímulos ambientais, envolvido por apelos vindos de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes... o ser humano se esvazia, “torna-se líquido”, perde a interioridade, afasta-se do horizonte de sentido e... se desumaniza. Longe de uma humanidade dinâmica, operante, ousada... o que a pessoa deixa transparecer é uma humanidade neutra, apática, estagnada.

 

Como recuperar, na festa do Natal, a densidade humana perdida?

 

Nossa fé nos possibilita afirmar que em Jesus “Deus se humanizou” e que só podemos encontrar Deus na “humanidade de supera nossa inumanidade”. Encontramos Deus humanizando-nos, fazendo-nos mais humanos: potenciando nossa bondade, dignidade, compaixão...; dinamizando nossas possibilidades criadoras, espirituais...; ampliando nossas reservas de riquezas interiores...

 

No Nascimento de Jesus, Deus vem nos revelar que o mais nobre que há em nós é a nossa própria humanidade. Este é o mistério escondido na Gruta e que poucos ficam encantados e assombrados diante dele; esta é a enorme riqueza que mereceria ser redescoberta e que permanece oculta aos olhos daqueles que são incapazes de uma atitude contemplativa.

 

A celebração do Natal deveria nos ajudar a criar em nossos ambientes “oásis de humanidade”. Entende-se “humanidade” como capacidade de ser oblativo, de ser-para-os-outros, de romper a tirania do egoísmo e fazer do amor a pauta do agir. Do coração das pessoas humanizadas brotam gestos de misericórdia, de compaixão de solidariedade.

 

A espiritualidade natalina desperta o “ser humano” que todos temos dentro  e nos possibilita a aventura apaixonante de viver a vida humanamente e vivê-la com paixão. Ela nos desafia a assumir o potencial humano criativo que está latente em nosso interior.

 

Quando recuperamos a “banda larga” de nossa humanidade, nos afirmamos como seres originais e criativos, capazes de “re-tecer vínculos” com Deus, com os outros, com a natureza... Somente a experiência do Natal interiorizada nos impulsiona construir “comunidades de solidariedade”, ou seja, tecidos sociais com um sentido mais humanizante que o círculo fechado de produção-consumo.

 

No Nascimento de Jesus aconteceu algo desconcertante. João expressa isso em termos muito claros: “a Palavra de Deus se fez carne”. Deus não ficou em silêncio para sempre; Ele quis se comunicar a nós, não através de revelações ou aparições, mas encarnando-se na humanidade de Jesus. Não se “revestiu” de carne, não tomou a “aparência” de um ser humano. Deus se fez realmente carne fraca, frágil e vulnerável como a nossa. Em Jesus, Deus se humanizou.

 

A partir da Encarnação e Nascimento de Jesus já não cremos num Deus isolado e inacessível, fechado em seu Mistério impenetrável, mas podemos nos encontrar com Ele em um ser humano como nós. Para nos relacionar com ele não precisamos sair de nosso mundo, não precisamos buscá-lo fora de nossa vida, pois O encontramos feito carne em Jesus. Isto nos faz viver a relação com Ele com uma profundidade única e inconfundível. Jesus é para nós o rosto humano de Deus.

 

Segundo Jacob Boehme, místico medieval, Deus é uma Criança que brinca. É nessa atmosfera “infantil” que Deus se aproximou de nós. Não veio como um rei poderoso, nem como um sumo-sacerdote ou um grande filósofo. Ele mergulhou na nossa fragilidade humana fazendo-se criança pobre, que nasce na periferia, no meio de animais, envolvido em faixas, deitado numa manjedoura... para que ninguém se sentisse distante d’Ele, para que todos pudessem experimentar o sentimento de ternura que uma criança desperta e sobre quem nos dobramos, maravilhados.

 

Texto bíblico:  Lc. 2,1-14

 

Na oração: Humanizando-se, Jesus desatou todas as possibilidades humanas presentes em cada pessoa.

Contemplar o rosto do Menino clandestino é perigoso: subverte nossas opções, nosso modo de viver, nossos valores... e nos compromete com o sonho de Deus na noite de Natal: “Paz na terra aos homens que Ele ama” (Lc. 2,14)

 

Que a celebração do Natal faça emergir o que há de mais “humano” em cada um de nós.

Um “humano Natal” a todos.

 

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI

19.12.2012