“Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4)
O primeiro domingo da Quaresma nos des-loca até o “deserto das tentações”; ali Jesus se deparou com as grandes “fomes que desumanizam”: “pão do ego”, “poder auto-centrado”, “vaidade estéril”.
Jesus foi conduzido ao deserto imediatamente depois do seu batismo, com a palavra do Pai ressoando em seu coração: “Tu és meu filho amado...”; mas agora, no deserto, vai escutar outras palavras que “tentam” convencê-lo para que não ponha o centro de sua vida nesse amor, mas no poder, na vida fácil, na fama, nas posses... O relato das tentações resume simbolicamente outros momentos da vida de Jesus nos quais esteve submetido à alternativa entre “a maneira de pensar de Deus” ou “a maneira humana”.
As tentações foram uma ocasião privilegiada para Jesus ativar as “grandes fomes que humanizam”: fome de vida doada, fome do Reino, fome de comunhão, de pão partilhado, de compromisso solidário...
Conduzido pela força do Espírito, Ele viveu uma integração a partir de seu coração e não se deixou levar pelas aparências enganosas.
Sua vocação à messianidade ficou clara no batismo; agora, tratava-se de buscar os meios para viver sua missão. No seu discernimento, Jesus sentiu que o poder, a riqueza, o prestígio não são “meios” para realizar a Vontade do Pai; pelo contrário, inspirado pelo Espírito, elegeu o caminho do esvaziamento de si, da pobreza e do compromisso solidário com os mais pobres e excluídos. Sua missão como Messias devia começar nas periferias, junto aos abandonados pelo poder religioso e civil da época.
À luz do discernimento de Jesus, também nós, durante esta Quaresma, seremos conduzidos pelo Espírito ao deserto interior para o despertar das “fomes” que nos tornam mais sensíveis, abertos à realidade, comprometidos na partilha do “pão”, que é dom e deve chegar a todos.
A Campanha da Fraternidade (CF) deste ano nos alerta para o drama da fome, escândalo e incoerência na vivência do seguimento de Jesus.
Sabemos que a fome e a sede são mecanismos fundamentais dos seres vivos. Todo ser vivente necessita nutrição e hidratação, mas, nos seres humanos, estas necessidades biológicas têm caráter social. Em muitas culturas humanas, compartilhar o alimento e a bebida revela-se como gesto de socialização e de integração.
Na experiência cristã, esta necessidade vital é transladada ao campo da fé: o alimento é dom do Criador para todos. O problema crônico da atualidade não é unicamente a satisfação das necessidades básicas, mas também o despertar de uma consciência que exija a justa distribuição dos recursos naturais, para que a humanidade cultive o melhor de si mesma e viva a solidariedade e a justiça como um projeto social alternativo frente às políticas egoístas e concentradoras de bens.
A CF nos revela que a fome tem várias raízes (escassez de recursos, alterações climáticas, subdesenvol-vimento de alguns povos...); no entanto, em sentido mais profundo, ela provém de duas causas principais: a) o egoísmo de grupos e indivíduos, que se apropriam dos recursos de todos e não partilham seus produtos; b) a injustiça de um sistema político e econômico que não se preocupa com o bem comum. Ter alimento faz parte dos direitos fundamentais de toda pessoa, um direito que deve ser garantido pelo Estado.
A pedagogia quaresmal, portanto, nos sacode e nos desnuda, porque desmascara nossas falsas seguranças, centradas na riqueza, no poder, na vaidade. Inspirados pelo “discernimento” de Jesus no deserto, somos também movidos a buscar nossas raízes mais profundas. Quando esse percurso é vivido de maneira intensa, o Espírito nos conduzirá ao fundo estável e sereno, nos conduzirá à “casa”, à nossa verdadeira identidade, à “Terra prometida” onde há fartura de pão.
Por isso, é preciso ampliar nosso interior para despertar outras fomes.
O lema da CF – “dai-lhes vós mesmos de comer” – nos revela que nosso interior é uma reserva de “alimentos humanizadores”: compaixão, desejos nobres, dons originais, criatividade, espírito de busca... São alimentos que plenificam e dão sabor à nossa vida. É preciso extraí-los e multiplicá-los para que a fome de sentido e de esperança das pessoas seja saciada. Ninguém tem o direito de armazenar nos seus celeiros o “trigo” doado por Aquele que é fonte de todo “alimento salutar”.
Afinal, alimento guardado é alimento que apodrece. Vida partilhada é vida abundante.
Com frequência, nossa existência humana parece uma corrida em busca daquilo que nos sacia de um modo definitivo. Nesta corrida, aparecem muitos elementos que nos são familiares: necessidades, ansiedade, insegurança, vazio, insatisfação... Todos eles, à primeira vista, nos fazem tomar consciência que somos seres carentes. Seria, pois, essa carência aquela que nos movimenta na busca de algo para preencher nosso vazio?
De fato, o ser humano é um ser insaciável, insatisfeito... vive eternamente buscando, muitas vezes sem saber o quê. Em contato com o seu interior, sente a necessidade de preenchê-lo a qualquer preço; na maioria das vezes, preenche-o com “coisas”: busca de poder, posses, prestígio, pão que se perde... e sente-se frustrado, porque nada lhe satisfaz.
Não são as “coisas exteriores” que nos tentam. O que nos tenta é a maneira injusta, perversa com o qual utilizamos as coisas, o espírito com o qual vivemos a nossa vida. Só o Pão da Palavra pode preencher nosso interior; só um alimento nos plenifica: “fazer a Vontade do Pai”.
Aqui, também é preciso nos perguntar: - qual é a nossa tentação? O que é que nos seduz?
Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções. A cena das “tentações de Jesus” des-vela (distingue, põe às claras...) os dois dinamismos, duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso interior (um de alargamento ou expansão de nós mesmos em direção aos outros e de Deus; e outro de fechamento, auto-centramento, resistência e medo).
A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos alimentamos; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.
“Dai-lhes vós mesmos de comer”: este apelo nos inquieta, ativa nossa sensibilidade e nos faz ampliar a visão em direção à grande multidão de famintos, presentes em nossa realidade: famintos de alimento, de proximi-dade, de justiça, de comunhão, de afeto...
Jesus ensina que a dinâmica do Reino é a arte de compartilhar. Talvez todo o dinheiro do mundo não seja suficiente para comprar o alimento necessário para todos os que passam fome... O problema não se soluciona comprando, o problema se soluciona compartilhando.
O pão nas mãos de Jesus era pão para ser partido, repartido e compartilhado.
O pão armazenado, como o maná no deserto, se corrompe, apodrece.
Também hoje Ele precisa de nossas mãos para multiplicar os grãos; precisa de nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.
O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo.
O pão sem coração gera divisões e conflitos. Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração!
Deus precisa de nosso coração para que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão, para que possamos comungar.
No pão compartilhado, encontramos a luz da vida. “Se partes teu pão com o faminto, brilhará tua luz como a aurora” (Is 58,7).
Texto bíblico: Mt 4,1-11
Na oração: Já paramos para pensar na abundância de recursos e nutrientes em nosso coração e que poderíamos compartilhar com os outros? Nem sempre se trata de encher estômagos vazios. Não só o estômago tem necessidades. Há outras muitas necessidades vitais no coração humano. Nosso coração é habitado pelo impulso do “mais”; ali não há carência. Em nossos celeiros interiores há abundância de alimen-tos que nos humanizam.
- Quais são as “fomes” que mobilizam sua criatividade e seus melhores recursos? São “fomes” egocentradas ou oblativas, fomes auto-centradas ou abertas à solidariedade e partilha?
- Visite seu “celeiro interior”; ative suas “reservas” de bondade, recursos, beatitudes originais...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.02.23