“Jesus viu as multidões, subiu à montanha e sentou-se… e começou a ensiná-los” (Mt 5,1-2) 

No próximo domingo (32º do Tempo Comum) celebraremos a festa de Todos os Santos e Santas, ou seja, todos aqueles(as) que, sem exceção, estão na Memória, na Entranha, no Consolo de Deus, na eterna Compaixão que regenera, na Grande Comunhão que é o coração do próprio Deus. Ela nos recorda ainda que esta é a vocação fundamental à qual somos todos chamados, enquanto seguidores de Jesus Cristo. A santidade de Deus é a vocação universal de todos, cada um à sua maneira.

Todos os santos e santas estão no coração do mundo pois são plenamente em Deus. Todos são santos(as), porque já vivem a Vida Eterna e dão alento ao coração do nosso tempo e do nosso mundo.

Nossa vocação é a santidade da Vida para além de todo sistema moral, para além de toda crença, para além de toda religião, porque fora da Igreja há salvação ou santidade. Mais ainda. A santidade é nossa verdade mais íntima e universal.

Somos santos(as). Não somos santos(as) porque somos irrepreensíveis, senão simplesmente porque somos, e vivemos, nos movemos e somos sempre em Deus e Deus em nós, também quando nos sentimos medíocres e inclusive fracassados(as). Ainda não temos encontrado nossa plenitude, não temos realizado nosso ser verdadeiro, mas para esse horizonte caminhamos na santa comunhão de tudo quanto é. Somos um tesouro em vasos de argila em formação, e Deus é o paciente oleiro na sombra mais profunda de nosso barro. 

O Evangelho que nos foi confiado é um programa para alcançar a felicidade, a vida ditosa, prazerosa, bem-aventurada. Na boca de Jesus brilha sempre a palavra-chave: “Felizes”.

A felicidade, proclamada por Ele no evangelho deste domingo, é já uma realidade presente na Sua pessoa e na Sua missão. Todas e cada uma das bem-aventuranças são autobiográficas. Elas são, portanto, a expressão do que constitui o centro mesmo da pessoa de Jesus e da sua vida, dos seus sentimentos, atitudes; numa palavra, do seu mistério.

Poderíamos dizer que as bem-aventuranças são o auto-retrato de Jesus. Elas são o compêndio do seu ministério. Não é lei que se impõe por si mesma; é confissão: “o Reino chegou”.

A primeira “canonização”, pois, teve lugar quando Jesus, num determinado dia, subiu à montanha e com grande solenidade declarou felizes os pobres, os aflitos por causa do Reino, os mansos que não recorrem à violência, os que tem fome e sede de justiça, os misericordiosos, os que não tem segundas-intenções no coração, os que trabalham em favor da paz, os perseguidos por causa da justiça. Todos eles(as) são declarados felizes porque são os que mais se parecem com Deus, ou seja, deixam transparecer em suas vidas a santidade d’Ele. E a felicidade está justamente na vivência do chamado universal à santidade. 

As Bem-aventuranças não, portanto, são uma doutrina, mas um estilo de vida, um modo de proceder. Jesus não prega diretamente uma moral. Proclama a “irrupção” da graça, do amor, da misericórdia, da santidade de Deus na história da humanidade.

Porque tem a certeza de que chegou a “hora” de Deus intervir na história, Jesus fica feliz e proclama fe-lizes” os até agora indefesos, oprimidos e marginalizados, mas que mantiveram viva a confiança em Deus.

Jesus fala da felicidade não no singular, mas no plural. Em outras palavras, o que Ele afirma é que a felicidade de cada um está em íntima relação com a felicidade dos outros, com quem cada um convive.

As bem-aventuranças compartilham uma mesma visão “macro-ecumêmica”: valem para todos os seres humanos. O Deus que nelas aparece não é “confessional”, não é “patrimônio” de uma religião específica; não exige nenhum ritual de nenhuma religião, senão o “rito” da simples religião humana: a pobreza, a opção pelos pobres, a transparência de coração, a fome e sede de justiça, a luta pela paz, a perseguição como consequência do empenho em favor da Causa do Reino... Essa “religião humana básica fundamental” é a que Jesus proclama como “código de santidade universal”, para todos os santos e santas, os de casa e os de fora, os do mundo “católico” e os de outras expressões religiosas... 

Nesse sentido, a liturgia da festa de Todos os Santos e Santas vem nos indicar este caminho, ao apresen-tar o texto das Bem-aventuranças como um programa para viver a felicidade; e o motivo primeiro é porque todas elas são, na verdade, o caminho da santidade universal (acima e além de toda religião, pois elas são simples e profundamente humanas). As Bem-aventuranças são como o mapa de navegação para nossa vida; são o horizonte de sentido e o ambiente favorável para nossa santificação, entendida como empenho para viver com mais plenitude, segundo o querer de Deus.

Santos e santas são todos aqueles e aquelas que vivem com sentido e inspiração a vida de cada dia, deixando transparecer a “faísca de santidade” que o Deus Santo colocou no coração de cada um.

 A santidade é, pois, um dom recebido de Deus, que alimenta na pessoa o desejo e a disposição de “sair de si mesma” para viver a experiência do amor na relação com o mesmo Deus, no encontro com os outros e no cuidado e proteção da Criação.

“Viver a partir da santidade de Deus” representa a melhor definição da santidade cristã: reconhecer-nos como quem recebe tudo de Deus, deixar-nos amar e guiar por Ele, assemelhar-nos a Ele para tornar carne viva em nós os sentimentos de compaixão e misericórdia que Ele tem com as pessoas.

O Evangelho nos propõe um modelo de santidade muito mais dinâmico e próximo da vida cotidiana, com seus altos e baixos, alegrias e dores. Ele revela uma nova forma de santidade: a santidade da vida comum, da resposta à Providência divina em meio às rotinas do tempo, uma caridade tecida nos pequenos gestos cotidianos. O(a) santo(a) faz as coisas que todo mundo faz, mas faz de maneira diferente. Há um “mais” qualitativo. Há algo na conduta, no brilho do olhar, na bondade do gesto, na pureza do agir, na liberdade, na gratuidade que o faz ser diferente. Isso é ser santo(a).

É na vida cotidiana, com seus desafios, onde se tece a santidade e não em outro lugar. Pois a santidade não é uma questão de “separados” e de “segregados”, mas de viver a inserção na realidade até o mais profundo, inspirados na maneira original de Jesus “estar no mundo”. A grande maioria vive a santidade no anonimato ou, quando muito, na memória dos seus mais próximos ou daqueles a quem lhes causaram admiração pro-funda ou de quem aprenderam que viver de verdade podia ser feito de outra maneira; são tantos e tantas por quem sentimos admiração, respeito e desejo de imitá-los para dar um sentido diferente às nossas existências.

Homens e mulheres que se deixaram e se deixam moldar pelo amor, porque descobriram e descobrem que essa era e é a maior das riquezas, a única que lhes podia e lhes pode fazer felizes de verdade; deram-se conta, ao mesmo tempo, que, comunicando esse amor podiam fazer felizes também a outras pessoas. Um “amor” oblativo, sem credos nem ideologias; um amor que vai além da raça, cultura, condição social. Um amor que procede da intimidade mais profunda de seus corações, lugar exclusivamente reservado para o mais absoluto e infinito dos amores: o Deus de Jesus.

Nenhum desses santos e santas terão seus devotos, nem estão sobre os altares dos templos e ninguém escreverá livros sobre eles e elas; no entanto, são aqueles(as) que viveram e vivem o cotidiano criativo nos altares da vida, do compromisso e do serviço. Para eles e elas o melhor dos altares foi e é sua consciência. E o único e grande devoto é o próprio Deus que acreditou neles(as) desde o princípio e continuará fazendo por toda a eternidade: “Sede santos porque eu Sou Santo”.

Texto bíblicoMt 5,1-11 

Na oração: A chave da felicidade está em permitir que se revele o sentido da luminosidade que se encontra no fundo de nosso ser. O que nos tira a energia e nos torna impotentes é afastar-nos desse princí-pio vital que é o Divino em cada ser. A santidade é luz expansiva do divino que se faz visível no “modo contemplativo” de viver.

- Sua presença junto às pessoas é transparência da santidade de Deus?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

03.11.2022