“Quem não se desapega de sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26)
Para poder entender o sentido do evangelho de hoje (23 Dom do Tempo Comum) é preciso recordar que Jesus está a caminho de Jerusalém. Ele adverte à multidão que o acompanhava sobre as exigências próprias de um autêntico seguimento; para Ele não basta o entusiasmo passageiro e o fervor momentâneo. No fundo, Jesus quer verificar as reais motivações e a sinceridade de atitude daqueles que estão fazendo caminho com Ele. É preciso ter somente um “foco” no caminho do seguimento; há sempre o risco de caminhar em diferentes direções, desviando-se da atenção primeira no caminho de Jesus.
Daí a radicalidade das exigências de Jesus: “desapegar-se da família”, “carregar a cruz”, “renunciar a tudo que tem”. As três se resumem numa só: disponibilidade total. Sem ela não pode haver seguimento.
O seguimento de Jesus é questão de sedução, de atração, de paixão...; exige um “investimento afetivo” total. O(a) discípulo(a) pela metade não pode fazer caminho com Jesus; não servem as entregas pela metade.
Tudo se decide nos afetos. Os afetos podem nos situar no horizonte maior (seguimento) ou podem nos fixar nas mediações (família, apego a si mesmo, às coisas...) atrofiando e esvaziando o impulso do seguimento, travando a liberdade. A afetividade ordenada nos faz livres para viver o seguimento de Jesus com mais leveza. Por isso, é preciso detectar as aderências e fixações afetivas (apegos) que limitam a liberdade e que podem minar o seguimento.
Seguir Jesus é deixar de viver para o “eu”, é descentrar-nos, não ser mais o centro de nosso próprio projeto. O seguimento brota, pois, de uma “sintonia profunda” com Ele, esvaziando nosso “eu inflado” para entrar em comunhão com seu modo de viver e com seu Projeto.
Jesus é presença sem mescla de “ego”: o centro de sua vida não está em si mesmo, mas na comunhão com a vontade do Pai e na solidariedade com os últimos e sofredores. Diante d’Ele, brota em nós uma “ressonân-cia interior”, absolutamente iluminadora e motivadora, que desperta, ativa e mobiliza a segui-lo, descen-trando-nos de nós mesmos. Esta nova experiência modifica a maneira de perceber toda a realidade: a família, os outros, os bens, o nosso próprio eu... A vida mesma é percebida de um modo novo.
Este é o caminho do Seguimento. Jesus quer seguidores(as) com liberdade, com decisão e responsabilidade.
Para isso é preciso “renunciar a tudo” para ser pessoas, em amor e partilha. “Renunciar a tudo” para que todos possam ter, para que todos possam compartilhar fraternalmente tudo.
O que significa “renunciar a tudo” e desapegar-se dos seres mais queridos? Significa sair da visão egocen-trada, nascida da crença errônea de que somos o ego. Talvez pudesse ser expresso desta forma: “Deixa de crer que és o eu separado (e fechado na torre) e descobrirás a riqueza de tua verdadeira identidade; não vejas nem sequer a tua família a partir do ego, porque sofrerás e farás sofrer; contempla-os a partir de tua verdadeira identidade, onde todos sois um, mas sem apego nem comparações”.
Não é a renúncia em si que nos salva, mas o desenvolvimento e a expansão da vida em direção à plenitude.
A renúncia é sempre lícita e aconselhável quando se faz por algo melhor. O apego às coisas ou às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o fluxo da vida e o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
Os ensinamentos de Jesus, no evangelho deste domingo, são um chamado ao realismo. Para além das imagens que Ele usa, poderíamos sintetizá-las assim: Até onde estou disposto a ir no seguimento? Estou motivado e decidido a manter o “sim” até o final? Estou pronto para viver a fidelidade à causa do Reino, mesmo correndo o risco de encontrar cruzes?
Sabemos que a cruz só tem sentido quando é consequência de uma opção autêntica em favor da vida ou de uma verdade assumida: por exemplo, se sofremos por levar adiante uma causa justa, por defender pessoas, por evitar um mal ou denunciar uma injustiça... Jesus não morre na cruz para buscar o sofrimento, mas por ser fiel até o final à sua mensagem: o amor incondicional de Deus e o compromisso com os excluídos.
Cruz, (“staurós” no grego) não significa simplesmente patíbulo, instrumento de tortura imposta pelos romanos àqueles que consideravam transgressores da ordem ou subversivos; significa prontidão, estar preparado, estar de pé, mobilizado, firme, fiel até o fim... Nesse sentido, a “cruz-staurós” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros; ela é vivida a partir de uma causa: o Reino. A cruz não é um “peso morto” a ser suportado; ela é consequência de uma opção radical em favor da vida; a cruz não significa passividade e resignação, pois ela brota de uma vida plena e transbordante; a cruz resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
Existem cruzes que são vazias, sem sentido, in-sensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida. São cruzes que brotam dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... e que não foram integradas Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de sentido; elas se fixam no passado, na mortificação, no ritualismo vazio... com a intenção de agradar a Deus. Fazer o caminho com Jesus, que carrega a cruz da fidelidade, ajuda a romper com as cruzes que afundam no desespero e no fracasso.
Assim entendemos a afirmação de Jesus no evangelho deste domingo: “quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27). Carregar a cruz significa esvazia-mento do próprio “ego” para viver em sintonia com a causa de Jesus e a fidelidade no compromisso com os outros.
É gratificante trazer à memória tantos homens e mulheres que são presença compassiva e, à maneira de Jesus, arriscam suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudam os outros a viver; pessoas que revelam a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregam suas vidas no escondimento, sem vozes que as exaltem; elas são como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
A cruz, desligada de uma vida comprometida, não tem sentido; nela mesma, não salva; ela é salvífica quando é assumida e vivida em favor dos demais. Nunca é sofrimento buscado, como se Deus necessitasse de nossa dor para nos redimir.
A Cruz liberta quando não acaba na cruz, mas na ressurreição. Enquanto a carregamos, ela se torna leve se temos diante de nós um horizonte de esperança. “Vinde a mim todos vós que estais fatigados e sobre-carregados, e eu vos darei descanso. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve” (Mt 11,28-30).
“Carregar a cruz” não é ser amigo da dor, mas sinal de lucidez. Significa assumir que toda a existência é um caminho progressivo de “morte do ego” (de identificação com ele), para possibilitar que “nasça” e viva o que realmente somos. Como disse-ra o próprio Jesus, se trata de “perder para ganhar”, morrer para viver.
Texto bíblico: Lc 14,25-33
Na oração: a sua maneira de viver o seguimento de Jesus faz diferença no seu ambiente cotidiano (família, trabalho, relações...)?
- Você já fez a experiência de encontrar oposição e perseguição por sua fidelidade aos valores do Evangelho?
- Em que circunstâncias da vida o “ego inflado” tem aparecido? Você se deixa determinar por ele ou pela vida verdadeira que se revela como esvaziamento?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
imagem: pexels.com