“Tudo está consumado!”
+ A oração de hoje é profundamente silenciosa: trata-se de acompanhar Jesus no seu caminho em direção ao Gólgota e sua morte na Cruz.
+ Silenciar o corpo, a mente, o coração... através dos “preâmbulos”: oração preparatória, composição vendo o lugar, petição da graça...
+ Antes de “fazer o caminho” com Jesus até à Cruz, leia as indicações abaixo, como motivação para a experiência:
Jesus, o Justo e Santo, foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência e da morte... Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos. Tornou-se um perigo a ser eliminado.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é conseqüência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
Existem cruzes que são vazias, sem sentido, insensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida.
São cruzes impostas sobre nossos ombros ou sobre os ombros dos outros. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas se fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo.
Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus que leva a Cruz da fidelidade nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.
Na vida e missão de Jesus encontramos duas paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.
A segunda paixão é a da cruz, imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem faz parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.
No grego, “cruz” é “staurós” e significa: prontidão, preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé...
Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou o “staurós”, ou seja, a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.
Assim entendemos a afirmação de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.
Infelizmente, a história da espiritualidade cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-staurós” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da renúncia... como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi “desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é salvação porque é vida que destrava vida e abre para elas um novo sentido.
Com isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada...
Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus integra a “cruz patíbulo” e revela sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta Cruz assumida é também visibilização da salvação.
Mas o sofrimento não pode ser buscado nele mesmo; não tem sentido e não abre futuro esperançador.
Na Paixão e morte de Jesus, o Silêncio de Deus não é um silêncio vazio. É um silêncio eloqüente, que nos fala: revela, desvela sem dizer, mostrando uma vida que não necessita palavras, a vida de Jesus que é puro amor até o fim e que, por sua vez, desvela o puro Amor de Deus.
No silêncio do seu coração, coloque-se, em atitude contemplativa, diante da escultura do Crucificado; notemos que um de seus braços está crucificado e o outro está estendido, com a mão aberta para acolher quem d’Ele se aproxima. Quanta vida e comunicação silenciosa nesse gesto! Trata-se de um grito de amor, silencioso e cheio de comunicação.
Aquela mão estendida nos chama a depositar a nossa mão na sua e estar aí, em silêncio, um longo tempo.
Que nos transmite esta imagem? Não precisamos palavras, nem ritos, pois é um gesto que nos conecta, como um cordão umbilical, ao Crucificado que nos revela o caminho da doação radical: como viver nosso dia-a-dia? Como usar nossos recursos? Como conectar-nos com o coração de Deus, com o coração do planeta Terra e de toda a humanidade?
Podemos também sentir que essa mão estendida nos chama e nos envia; primeiro, nos chama a segurá-la e sustentá-la. E como se Ele dissesse: “aproxime-se e permaneça comigo, pois preciso abrir-lhe meu coração; sinta minha pulsação e deixe seu coração pulsar no ritmo do meu; una-se ao meu coração, carregado de amor, e prolongue-o através do seu coração”.
E tudo acontece no silêncio; um silêncio que nos enche de vida, de paixão partilhada, de compaixão, de solidariedade... No fundo desse silêncio nos encontramos com a mão aberta de um moribundo que nos ama e que é revelação do rosto do Deus vivo e feito carne entre nós.
A mão quente do Crucificado é a mão de todos os irmãos e irmãs violentados, vítimas da cultura do ódio e da morte; a mão do Crucificado que pulsa é a mão latejante de nossa Terra, violada e abusada pela ânsia do lucro de uma minoria aterradora.
O silêncio pode ser também a escuta do coração aberto da realidade, enquanto apertamos a mão que nos comunica o pulsar e o amor do crucificado.
Esse silêncio nos dignifica porque nos vacina contra os outros silêncios covardes e auto-centrados.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.04.22