Estamos a vivenciar um ano sui generis que, possivelmente, muitos de nós nunca pensámos viver para ver esta situação. Como dizia o Cardeal António Marto, «aquilo que nenhuma guerra mundial ou civil conseguiu em todo o mundo católico, consegue-o um vírus invisível e silencioso». Sem dúvida que são tempos que nos desafiam à resistência, à criatividade, à solidariedade, à responsabilidade cívica e a uma (re)descoberta das nossas relações com a família, conosco mesmos e com o próprio Deus.

Uma escritora do século XX que viveu num momento obscuro da história da humanidade, Etty Hillesum, convida-nos, no seu Diário, a «reinventar a esperança» e a «olhar os lírios do campo». São tempos de levantarmos os nossos olhos e olhar para aquilo que é mais vasto, para aquilo que está fora de nós. No meio da dor e do sofrimento que nos invade somos convidados a velarmos uns pelos outros, a exercermos a nobre virtude da solidariedade.

Uma das grandes lições de Etty Hillesum é a arte da escuta, uma espécie de entrar dentro da própria alma, abrindo espaço para a revitalização, que nasce da contemplação, da conexão com o eterno, do abraço ao desabalado espetáculo da vida, que podemos identificar na luz do dia, nas flores, na nossa própria humanidade, na espantosa realidade das coisas.

No dia 5 de setembro de 1941, Etty escreve no seu Diário:

«Preciso mesmo de me tornar mais simples. Deixar-me tornar um pouco mais viva, não querer ver imediatamente resultados na minha vida. O remédio sei-o agora; preciso é encolher-me num canto, no chão e, assim encolhida, escutar o que se passa dentro de mim. A pensar nunca resolvo o assunto. Pensar é uma enorme e bela ocupação quando se estuda, mas não é a pensar que uma pessoa consegue “sair” dos estados de alma difíceis. Nesse caso outra coisa tem de acontecer. É preciso saber tornar-se passivo, pôr-se à escuta e encontrar de novo o contacto com uma parcela da eternidade.»

Esta passagem é assombrosa, porque Hillesum, no meio das suas paixões e desejos, do narcisismo e do egoísmo, aprende a arte de escutar o pulsar do seu coração, a aceitação da sua própria história nas suas sortes e infortúnios, o passar da cabeça ao coração, o viver com inteireza e encontrar para si própria a clemência. Começa a assimilar cada pulsar como um bombeamento do sangue para todo o seu corpo. E sobretudo, vai-se empenhando em revitalizar as várias dimensões da vida, à procura de sentido e de harmonia interior. De uma forma lúcida, Etty Hillesum procura uma liberdade que seja cada vez mais responsável, aprende a arte do autodomínio, do reequacionar dos seus condicionamentos pessoais e culturais.

Na abertura do seu caótico coração a Julius Spier e, paulatinamente a Deus, Hillesum sente-se compreendida e aceite por outro ser humano, com toda a sua vulnerabilidade. À medida que vai reconhecendo os seus picos de erotismo, sensualidade e narcisismo, vai ordenando o seu interior num contínuo processo de aceitação, integração e superação. O escutar o interior da intimidade permite a Etty reconhecer que algo está a acontecer dentro de si própria, um processo de cura em ordem à sua profunda grandeza humana, um amadurecimento que permite a unificação do seu ser.

No contacto com o Diário e as Cartas, descobrimos como que Etty transforma a Palavra, a Bíblia, o Evangelho numa carta de rumo, num mapa de viagem, não apenas um livro normativo, um livro referencial em termos religiosos, mas sobretudo o mapa da sua viagem, da interpretação da sua vida e da sua história – é aquilo que lhe indica as metas para onde ela caminha. Porque o Evangelho é mesmo isso: é a história de cada um de nós, sentindo-nos tocados, amados e, por isso, curados pelo próprio Jesus, nas nossas vulnerabilidades mais extremas. Efetivamente é esse o grande milagre: sentir-se amado na condição em nos encontramos! É essa a dignidade que Jesus devolve a cada um dos cegos, coxos, paralíticos, pecadores públicos do seu e do nosso tempo. Como dizia uma escritora francesa, Madeleine Delbrêl, “quien no toma en sus manos el librito del Evangelio, com la resolución de un hombre com una sola esperanza, no puede ni decifralo ni recibir su mensaje”.

Etty Hillesum é para todos nós uma terapeuta da esperança, que soube escutar o mais profundo de si mesma: «Escutar, escutar por toda a parte, escutar até ao mais profundo dos seres e das coisas. Amar e largar aqueles que amo, aceitar assim morrer, mas para renascer – tudo isso é tão doloroso, mas também tão pleno de vida!» (08/03/1942). O grandioso caminho de autoaceitação que Etty Hillesum percorre permite enfrentar os seus próprios medos, anseios e até mesmo a morte para ver o que estava a acontecer nas experiências e nas lutas dos outros. Em vez de se centrar nos seus próprios combates, Hillesum empenha-se na construção de um tipo de mundo novo e diferente. O seu maior desejo era ser «o coração pensante das barracas», porque cada um de nós é, no dizer de um teólogo contemporâneo, curador ferido.

Mas para essa cura se realizar é preciso calar as vozes, os ruídos, os embaraços interiores, que muitas vezes são uma cápsula de desesperança à nossa vida e nos blindam num silêncio que não é vida. Precisamos de deixar cair essas paredes interiores e colocarmo-nos à escuta daquilo que Deus nos tem para dizer. Este gesto é um gesto que nos identifica, que nos diz quem nós somos; é um gesto no qual continuamente nos reencontramos.

O entrar-se em si mesma permitiu que Etty Hillesum encontrasse o seu tesouro mais precioso: Deus! E é com Deus que Etty mantém um «diálogo ininterrupto». Com Etty, aprendamos a não colocar demasiado cedo os pontos finais na nossa vida, a não contar somente connosco e com a nossa força. Tantas vezes somos confrontados com a tentação de colocar o ponto final, desiludidos, demasiado prematuramente, porque não contamos com a força de Deus, com o impacto de Deus, com aquilo que Ele pode fazer em nós. E, por isso, em vez de pontos finais, nós devíamos pôr vírgulas. Vírgulas que são esses tempos de espera, esses tempos de suspensão. Na nossa vida, em vez de a preenchermos com grandes decisões para todos os tempos, devíamos criar tempos de espera, tempos de pausa, à espera de Deus. Não esqueçamos que é dessa forma que Etty Hillesum terminará o seu Diário: «É preciso saber aceitar as próprias pausas».

Então seremos capazes de tocar a vida na sua nudez, de acreditar que a ferida pode ser o lugar de uma fecundidade, que a ferida não é necessariamente estéril e que o rasgão daquele lado pode ser a fenda da esperança, a fenda de onde sopra o espírito novo, e isto é acreditar na ressurreição de cada um de nós. Mas acreditar na ressurreição não como uma magia, não como uma fantasia. Acreditar na ressurreição como um modo de viver, como um modo de tocar a vida, de a abraçar, de a encarar e a ler, sabendo que na vida temos de contar, precisamos de contar e podemos contar com essa força de Deus, que faz tudo nascer e renascer a cada momento, de amar e ser amado.

Há um mundo interior que precisamos de visitar, que precisamos de conhecer, que precisamos de iluminar, e só nesta atitude é que Deus pode começar a entrar dentro de nós. Quando Etty Hillesum se coloca nesta atitude, começa a rezar coisas assim: «Meu Deus, agradeço-te por me teres criado como eu sou».

E então o milagre acontece!

Alexsander Baccarini Pinto
Universidade Católica Portuguesa, Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião (CITER)
Imagem: Etty Hillesum 
Publicado em 29.10.2020 no SNPC