Para mim não existe vida fora da palavra escrita. Passei quatro dias ouvindo, pensando e por último falando sobre literatura em conversas na Casa de Cultura da Flip (Festa Literária Internacional), em Paraty. Promovida pelo Itaú Cultural, esta programação era gratuita. O debate me carregou para uma reflexão sobre as minhas marcas. E penso que as marcas se inscrevem em nós primeiro como algo indizível. E depois as transformamos em outra coisa que nos dá a possibilidade de viver. Em mim, elas viram texto. Percebo então que palavras são marcas por escrito. E lamento as vidas que não querem ser assinaladas pela vida.
Vivemos numa época que não quer ser marcada. A maioria de nós tenta escapar das rugas, estas cicatrizes do rosto, de todas as formas – algumas delas bem violentas. Os sinais da idade, da vida vivida, são interpretados como algo alienígena, estranho a nós. Estão ali, mas não deveriam estar. É quase uma traição. Urge então apagá-las.
É tamanho o nosso medo da velhice e da morte, que as marcas da vida vivida são decodificadas como feias, quase repugnantes. Tanto que estamos diante de uma novidade – as primeiras gerações de seres humanos envelhecendo e morrendo com os sinais não da idade, mas das cirurgias plásticas. Sim, porque estas também são cicatrizes. Não há jeito de morrer sem marcas porque não há como viver sem ser marcado pela vida. Mesmo os bebês, que por alguma razão morrem ao nascer, já trazem no corpo a marca fundadora – o corte do cordão umbilical que lhes arrancou de dentro da mãe. O umbigo é nossa primeira cicatriz, aquela que nos unifica.
Se a tecnologia conseguir inventar um ser humano sem marcas é porque desinventou o ser humano. Podemos talvez um dia apagar todas as marcas visíveis, tatuadas no corpo. Mas nunca haverá uma cirurgia capaz de eliminar as marcas da alma. E esta é também uma tentativa que temos empreendido com muito empenho. Por um excesso de psicologês, uma leitura transtornada do pensamento de Freud, passamos a achar que tudo é terrivelmente traumático. Qualquer contrariedade ou vivência não programada supostamente estigmatizaria nossos filhos e aniquilaria seu futuro. Qualquer derrapada no script de nossos dias nos assinala como catástrofe. Parece que viver se tornou uma experiência por demais traumática para quase todos – e, se assim é, a única solução seria não viver. Mas a questão não é o trauma – e sim o que cada um faz com ele.
Há algumas semanas participei de um debate com psicanalistas no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, sobre o excelente documentário de Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro, Sobreviventes, sobre o qual já escrevi uma coluna quando foi lançado. Em minha fala, sugeri que não existem sobreviventes. Só é possível ser vivente. A palavra sobre-vivente contém a ideia de viver apesar do vivido. E eu acredito que só é possível viver por causa do vivido.
Em mais de 20 anos contando histórias de pessoas – e também minha própria história –, percebo que as pessoas morrem e renascem muitas vezes numa vida só. Cada existência é uma sucessão de pequenas mortes e renascimentos desde este primeiro corte que nos separa de nossas mães e dá início à nossa existência como indivíduo. Fico só imaginando nesta época onde tudo vira trauma insuperável, o que aconteceria se as pessoas pudessem se lembrar dessa expulsão do paraíso uterino. Haveria uma legião de homens e mulheres incapazes de lidar com acontecimento tão terrível. Sem perceber que é só por ele, afinal, que começamos a viver. Até então, somos todos apenas uma continuidade, um apêndice, do corpo materno.
É verdade que, compreendendo o trauma como algo que nos marca, que nos mata simbolicamente para que possamos renascer de outro jeito, nossa vida é cheia deles. O que questiono aqui é a crença de que não deveria ser assim, a ilusão de que é possível – e o pior, que é desejável – ter uma vida sem marcas no corpo e na alma.
É claro que alguns acontecimentos são devastadores – e lutamos para que não voltem a se repetir com ninguém. Mas, mesmo nestes casos, me parece que a vida só é possível não apagando o que é inapagável, mas fazendo algo novo com esta marca. Transformando-a em algo que possa viver.
Recentemente, causou grande polêmica um vídeo no YouTube, onde Adolek Kohn, de 89 anos, “sobrevivente” do holocausto judeu, dança com sua filha e netos a música “I will survive” (“Eu sobreviverei”), de Gloria Gaynor, em campos de concentração como o de Auschwitz. Quem não tiver assistido, pode encontrá-lo facilmente na internet. Muita gente achou desrespeitoso com o sofrimento das vítimas do holocausto. A mim pareceu emocionante. Concordo com a filha, a artista australiana Jane Korman, quando diz: “Esta dança é um tributo à tenacidade do espírito humano e uma celebração da vida”.
Poder dançar no palco em que quase foi assassinado – e onde milhões de pessoas foram exterminadas – é fazer algo vivo em vez de fazer algo mórbido. Especialmente poder dançar com a continuidade de você – na companhia de todos aqueles que quase não existiram, uma descendência inteira quase aniquilada pela morte de um. Afinal, ele dança sobre suas antigas e brutais lembranças amparado por uma nova memória, representada pelos seus descendentes, por aqueles que vão recordá-lo e produzir outras histórias e sentidos para a trama das gerações. É mais do que uma magistral vingança – é uma dança.
Isso não significa que este (sobre)vivente tenha lidado melhor com seu trauma que todos os outros. Cada um encontra seu caminho – e a maioria dos caminhos não aparece no You Tube. Mas acho uma prepotência “ser contra” ou ridicularizar a tentativa de um outro de lidar com suas marcas, dar um novo sentido àquilo que o constitui. Transformar em algo mais que a dor o que era só dor. Pode não ser o seu caminho, mas isso não o impede de olhar para a saída encontrada pelo outro com o profundo respeito que ela merece.
Quando as pessoas me contam suas histórias, começam a contar pelos seus renascimentos. Pelo momento em que morreram de um jeito, por causa de um trauma, e renasceram de outro. É ali que identificam seu início – ou reinício. Uma nova vida só é possível quando contém a anterior e a sua quebra. O que atravanca nossa existência é ficar fixado no trauma – enxergar a marca como uma morte que não renasce, como um corte que não vira cicatriz. Por isso a palavra “sobrevivente” – e o sentido que ela tem no senso comum – me incomoda. É como se vida fosse o que havia antes, algo que não pudesse se quebrar, e o que temos agora fosse algo menor que a vida, uma mera sobre-vida. Me parece, ao contrário, que a matéria da vida é justamente esta sucessão de quebras – e viver é dar sentido a elas.
Esta ideia vendida e consumida exaustivamente, de que a vida não pode ser marcada nem no corpo nem na alma, tem causado enorme sofrimento às pessoas. Não o sofrimento que nos leva a criar uma vida, mas aquele que nos leva a anestesiar uma vida. Este equívoco tem transformado gente que poderia viver em meros sobreviventes. Porque se não podemos ser marcados, se cada marca for vivida como algo mórbido e não como parte do vivido, fixamo-nos na morte. Viramos uma ladainha que repete sempre o momento mortífero e não consegue seguir adiante.
Ser – é ser em pedaços. O que nos impede de viver não é o trauma, mas a ideia de que exista uma vida que possa prescindir deles. E o que nos humaniza é a capacidade de criar algo vivo com nossas marcas de morte. Palavra escrita, literatura, como tanto se discutiu na festa literária de Paraty. Dança, como o (sobre)vivente do holocausto. Jardins, bordados, doces, móveis, dribles de futebol.
Como poderia dizer a poeta Adélia Prado, “uso todos os meus cacos para fazer um vitral”. Cada vida humana é um vitral feito com as marcas de todas as nossas mortes. Sem os cacos, nada há.
Eliane Brum
Jornalista, escritora e documentarista.
Texto originalmente publicado na Revista Época 9.8.2010
O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."
Ser bobo, às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.
Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.
Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"
Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.
Clarice Lispector
No atual modus vivendi, é indispensável o questionar, que se faz necessário para a evolução do ser humano e para a fundamentação do seu pensamento, pois foi somente questionando que a humanidade conseguiu e ainda hoje consegue descobrir e, com isso, evoluir em todos os sentidos e dimensões.
Essa evolução que se dá por meio dos questionamentos pode ser de forma direcionada ou não. O questionar com fundamento leva ao crescimento intelectual e social, ao passo que o questionar por questionar não contribui para a solidez da opinião. Assim sendo, por que questionar? O que questionar? Como questionar? E, por fim, qual o caminho desse questionar?
Toda forma de conhecimento advém pela dúvida, que, diante do espanto da novidade, se expressa via questionamento. Na história da humanidade, nada pode ser evidenciado se antes não houver ocorrido uma dúvida. O filósofo René Descartes diz: “Se duvido, penso; se penso, logo existo”. O que quis dizer o filósofo com essa frase tão complexa? Constato que o filósofo direciona essa afirmação e busca explicar que a existência humana pura e simplesmente só pode se realizar por meio da dúvida e, diante dessa dúvida, o ser humano se percebe em constante crescimento.
A dúvida tem na vida do ser humano um papel fundamental. Uma questão se apresenta: quais as principais formas de questionamento existentes hoje? Acredito que as formas de expressão dos mais variados grupos representam hoje uma forma intrínseca de questionamento dos padrões de pensamento, comportamento e até mesmo de sociedade proposta para se viver. Em contrapartida, a maioria das pessoas está acomodada em seu mundo e não tem mais o interesse por aquilo que é de todos.
O que percebo hoje é uma apatia frente à vontade de questionar. A humanidade, em especial a juventude, está, a cada dia, mais acomodada em um consumismo sem sentido, em um radicalismo infundado. O erro não está em consumir ou em ser radical, mas em não haver sentido para tais ações. Não se tem objetivo, e muito menos finalidade, para as ações concretas no cotidiano.
Todo ser humano tem dentro de si a capacidade de criar, entender, saber, buscar, dominar, apreciar e questionar. O que falta é justamente à vontade, o incentivo para tais práticas. Ouvi inúmeras vezes, pessoas dizerem: “antigamente, vivia-se mais intensamente, pois a necessidade era maior e urgente”. E, hoje? Não tenho necessidade? Não há mais intensidade em meu viver? Ou melhor, nosso viver não tem mais sentido ou intensidade? Mais uma vez, o questionar se apresenta como porta de saída, como válvula de escape, como remédio para uma onda de comodismo que invade a sociedade.
O que seria mais fácil: aceitar tudo ou comprometer-se com o novo que questiona as antigas estruturas? Estruturas essas que certamente nos dão um conforto social. Questionar não é simplesmente entrar em um austero embate de ideias, mas ir além e propor algo novo, buscar novas formas, inovar sem perder a essência. Novos comportamentos pedem espaço em nosso cotidiano. Eles querem propor uma nova ordem de pensamento, um novo modelo de ideias, em que falar simplesmente não surte mais efeito.
Portanto, o questionar continua a ser o único meio possível de evolução, seja ela qual for. Logo, o questionamento benfeito, com objetivos claros, com fins previamente estabelecidos, provavelmente levará a humanidade a uma nova consciência, a uma nova forma de vida saudável, sustentável e harmoniosa. O questionamento é a arma mais poderosa à disposição da sociedade, podendo tornar reais as mudanças tão esperadas. “Se duvido, penso; se penso, logo existo; e, se existo, questiono”.
Lucas Fortunato Carneiro
Educador, graduado em filosofia pela PUC Minas e graduando em Teologia
01.08.2012
"O bóson de Higgs era a peça que faltava no chamado Modelo Padrão, que descreve tudo sobre as partículas que conhecemos no Universo. Achá-lo significa completar esse modelo com enorme sucesso", escreve Marcelo Gleiser, professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 08-07-2012.
Segundo ele, "na física de partículas, uma 'descoberta' é um evento tão raro que a chance de surgir outra nova explicação é de uma em 3,5 milhões". E continua: "O interessante é o que está por vir. Sabemos que a partícula é um bóson. Mas não sabemos se corresponde à previsão mais simples do Modelo Padrão ou se é algo mais exótico. Todos torcem pelo exótico, pois terão abertas portas para uma nova física. Depois de 45 anos, seria uma pena encontrar só o Higgs".
Eis o artigo.
Como não poderia deixar de ser, nesta semana escrevo sobre a descoberta sensacional do bóson de Higgs, anunciada na última quarta feira, 4 de julho, pelos cientistas do laboratório Cern, em Genebra, na Suíça. Começo repetindo a história de como o bóson de Higgs ficou conhecido como "partícula de Deus".
Obviamente, uma partícula elementar não tem nada a ver com Deus. O apelido vem do título do livro de Leon Lederman, o prêmio Nobel que durante anos caçou a partícula (a busca pelo bóson de Higgs durou ao todo 45 anos!).
Lederman conta que originalmente queria dar ao livro o título em inglês "The Goddamn Particle" ("A partícula Amaldiçoada por Deus" ou simplesmente "A Desgraçada da Partícula"). A ideia era demonstrar sua frustração em não tê-la encontrado. Porém, o editor do livro achou que, com a exclusão de "desgraçada" do título, o livro venderia bem mais. A coisa vingou - para o livro de Lederman e para a partícula.
Mas por que tanta empolgação com o bóson de Higgs, que inclui bilhões de dólares gastos na busca por uma mera partícula?
Essencialmente, o bóson de Higgs era a peça que faltava no chamado Modelo Padrão, que descreve tudo sobre as partículas que conhecemos no Universo. Achá-lo significa completar esse modelo com enorme sucesso.
O papel do Higgs é único entre as partículas: ele é responsável por "dar massa" a todas as outras. Vale lembrar que, na física moderna, as entidades essenciais são os campos. Partículas são excitações desses campos, como pequenas ondas na superfície de um lago. O campo de Higgs estaria por toda a parte, como o ar na nossa atmosfera. Ele interage com os campos de outras partículas: por exemplo, o campo dos elétrons ou o dos fótons (o campo eletromagnético), as partículas de luz. Essa interação tem uma intensidade que varia de campo para campo. É essa intensidade variável que determina a massa das partículas e as suas diferenças.
Por que, então, o nome de "bóson"? As partículas que conhecemos podem ser divididas em dois grupos, chamados genericamente de bósons e férmions. "Bóson" homenageia o físico indiano Jagadish Chandra Bose, que desenvolveu, junto com Einstein, as propriedades dessas partículas. Elas gostam de existir em grupos com muitas delas. O Higgs e os fótons são bósons.
Já os férmions (em homenagem ao físico italiano Enrico Fermi) são mais exclusivos e no máximo aparecem em pares. Os elétrons e os prótons são férmions.
Ninguém "viu" um bóson de Higgs, pois eles se desintegram em outras partículas em minúsculas frações de segundo. O que se "observa" são os vários produtos dessas desintegrações. Os resultados são estatísticos, devido aos bilhões de colisões e desintegrações que ocorrem. Na física de partículas, uma "descoberta" é um evento tão raro que a chance de surgir outra nova explicação é de uma em 3,5 milhões.
O interessante é o que está por vir. Sabemos que a partícula é um bóson. Mas não sabemos se corresponde à previsão mais simples do Modelo Padrão ou se é algo mais exótico. Todos torcem pelo exótico, pois terão abertas portas para uma nova física. Depois de 45 anos, seria uma pena encontrar só o Higgs.
Marcelo Gleiser
Artigo publicado na Folha de São Paulo 08.07.2012
Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.
Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.
Otto Lara Resende
In: Jornal “Folha de S. Paulo”, 23/02/1992.
Os ares se agitam em torno da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável no mês de junho. Brotam as mais diferentes expectativas. O divisor de águas se fará entre a opção por encontrar soluções, mesmo que boas, dentro do atual modelo de desenvolvimento e de produção, que o Ocidente vem pilotando faz séculos, ou iniciar processo radical de mudança.
Os termos “ecologia”, “verde”, ‘cuidado com a Terra” soarão, sem dúvida, de todos os lados. Ninguém ousará discursar a favor da selvagem destruição do ambiente em curso. Ela poderá continuar, mas velada e camuflada sob nomes de defesa do meio ambiente. Nenhuma mineradora, nem montadora de automóveis, nem agrobusiness terão coragem de prosseguir, sem mais, no mesmo tipo de agressão ao ambiente.
Mas a pergunta vai mais fundo. Que está em jogo quando se fala de sustentabilidade? Há dois pressupostos bem diferentes. Um implica o próprio sistema capitalista. Querem mantê-lo sustentável com o mínimo de destruição da natureza. Mas ele mesmo não está em questão. Buscam-se outras formas de diminuir-lhe o potencial destrutivo. No entanto, esquece-se que a lógica do capital não para diante de nenhum adversário. Ela pensa a curto prazo. A roda simples, mas fatal, do sistema funciona à base da produção para vender e acumular lucro. Não interessa se o produto pertence ao mundo da necessidade ou simplesmente pretende atrair as pessoas até o mais despudorado supérfluo. Importa seduzir o comprador, vender, acumular capital, investir.
A outra linha pensa diferente. Entra em questão a sustentabilidade do Planeta. E o atual sistema, ao retirar da Terra 30% a mais do que ela pode repor, levá-la-á à exaustão. Portanto, absolutamente insustentável, se pensamos em termos de vida humana. O Planeta continuará a girar em torno do sol, só que sem nós. Ou mesmo sem qualquer tipo de vida à espera de bilhões ou milhões de anos até que surja outra vida, fruto do quase infinito jogo de probabilidades. E ser humano: nem falar!
O verde desejado pelo sistema não significa o verde do Bem-Viver. O primeiro engana os olhos. Pois deixa a máquina destruidora a funcionar. Só o verde, que acontece nas pequenas dimensões da existência humana, que evita as devastações das mineradoras e agrobusiness, que poupa longos transportes de alimento com produção local, que incentiva a pequena propriedade, que controla os agrotóxicos e que toma outras medidas do mesmo jaz, salva o Planeta.
Não há verdadeiro verde sem justiça social, sem reforma agrária, sem deixar de medir um país pelo crescimento do PIB em vez do Bem-Viver de seu povo, sem buscar alternativas para a produção de energia, abandonando definitivamente a originada do petróleo, barata, desperdiçada e poluente.
A questão do Desenvolvimento Sustentável não se separa da ética, da justiça, da cultura, além naturalmente da economia. Esta não merece o primado absoluto que o sistema capitalista lhe atribui, mas cabe-lhe servir às outras dimensões do ser humano. Eis a grande inversão!
Pe. João Batista Libânio sj
In: Jornal “O Tempo” – 22/04/2012
Cuidado! Quem tem muitos amigos no "Face" pode ter uma personalidade narcísica. Personalidade narcísica não é alguém que se ama muito, é alguém muito carente.
Faço parte do que o jornal britânico "The Guardian" chama de "social media sceptics" (céticos em relação às mídias sociais) em um artigo dedicado a pesquisas sobre o lado "sombrio" do Facebook (22/3/2012).
Ser um "social media sceptic" significa não crer nas maravilhas das mídias sociais. Elas não mudam o mundo. Aliás, nem acredito na "história", sou daqueles que suspeitam que a humanidade anda em círculos, somando avanços técnicos que respondem aos pavores míticos atávicos: morte, sofrimento, solidão, insegurança, fome, sexo. Fazemos o que podemos diante da opacidade do mundo e do tempo.
As mídias sociais potencializam o que no humano é repetitivo, banal e angustiante: nossa solidão e falta de afeto. Boas qualidades são raras e normalmente são tão tímidas quanto a exposição pública.
E, como dizia o poeta russo Joseph Brodsky (1940-96), falsos sentimentos são comuns nos seres humanos, e quando se tem um número grande deles juntos, a possibilidade de falsos sentimentos aflorarem cresce exponencialmente.
Em 1979, o historiador americano Christopher Lasch (1932-94) publicava seu best-seller acadêmico "A Cultura do Narcisismo", um livro essencial para pensarmos o comportamento no final de século 20. Ali, o autor identificava o traço narcísico de nossa era: carência, adolescência tardia, incapacidade de assumir a paternidade ou maternidade, pavor do envelhecimento, enfim, uma alma ridiculamente infantil num corpo de adulto.
Não estou aqui a menosprezar os medos humanos. Pelo contrário, o medo é meu irmão gêmeo. Estou a dizer que a cultura do narcisismo se fez hegemônica gerando personalidades que buscam o tempo todo ser amadas, reconhecidas, e que, portanto, são incapazes de ver o "outro", apenas exigindo do mundo um amor incondicional.
Segundo a pesquisa da Universidade de Western Illinois (EUA), discutida pelo periódico britânico, "um senso de merecimento de respeito, desejo de manipulação e de tirar vantagens dos outros" marca esses bebês grandes do mundo contemporâneo, que assumem que seus vômitos são significativos o bastante para serem postados no "Face".
A pesquisa envolveu 294 estudantes da universidade em questão, entre 18 e 65 anos, e seus hábitos no "Face". Além do senso de merecimento e desejo de manipulação mencionados acima, são traços "tóxicos" (como diz o artigo) da personalidade narcísica com muitos amigos no "Face" a obsessão com a autoimagem, amizades superficiais, respostas especialmente agressivas a supostas críticas feitas a ela, vidas guiadas por concepções altamente subjetivas de mundo, vaidade doentia, senso de superioridade moral e tendências exibicionistas grandiosas.
Pessoas com tais traços são mais dadas a buscar reconhecimento social do que a reconhecer os outros. Segundo o periódico britânico, a assistente social Carol Craig, chefe do Centro para Confiança e Bem-estar (meu Deus, que nome horroroso...), disse que os jovens britânicos estão cada vez mais narcisistas e reconhece que há uma tendência da educação infantil hoje em dia, importada dos EUA para o Reino Unido (no Brasil, estamos na mesma...), a educar as crianças cada vez mais para a autoestima.
Cada vez mais plugados e cada vez mais solitários. Na sociedade contemporânea, a solidão é como uma epidemia fora de controle.
O Facebook é a plataforma ideal para autopromoção delirante e inflação do ego via aceitação de um número gigantesco de "amigos" irreais. O dr. Viv Vignoles, catedrático da Universidade de Sussex, no Reino Unido, afirma que, nos EUA, o narcisismo já era marca da juventude desde os anos 80, muito antes do "Face".
Portanto, a "culpa" não é dele. Ele é apenas uma ferramenta do narcisismo generalizado. Suspeito muito mais dos educadores que resolveram que a autoestima é a principal "matéria" da escola.
A educação não deve ser feita para aumentar nossa autoestima, mas para nos ajudar a enfrentar nossa atormentada humanidade.
Luiz Felipe Pondé
In: Folha de São Paulo – 16/04/2012
“O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio.
Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade.
O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome.”
Hélio Peregrino
(introdução do livro “O Encontro Marcado” de Fernando Sabino)
Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte.
O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Nesse estado, além da tranqüila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.
E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.
No estado de graça vê-se às vezes a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe - pessoa ou coisa - respira e exala uma espécie de finíssimo resplendor de energia. A verdade do mundo é impalpável.
Não é nem de longe o que mal imagino deva ser o estado de graça dos santos. Esse estado jamais conheci e nem sequer consigo adivinhá-lo. É apenas o estado de graça de uma pessoa comum que de súbito se torna totalmente real porque é comum e humana e reconhecível.
As descobertas nesse estado são indizíveis e incomunicáveis. É por isso que, em estado de graça, mantenho-me sentada, quieta, silenciosa. É como numa anunciação. Não sendo porém precedida pelos anjos que, suponho, antecedem o estado de graça dos santos, é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo.
Depois, lentamente, se sai. Não como se estivesse estado em transe – não há nenhum transe – sai-se devagar, com um suspiro de quem teve o mundo como este é. Também já é um suspiro de saudade. Pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma e a terra, quer-se mais e mais. Inútil querer: só vem quando quer e espontaneamente.
Não sei por quê, mas acho que os animais entram com mais freqüência na graça de existir do que os humanos. Só que eles não sabem, e os humanos percebem. Os humanos têm obstáculos que não dificultam a vida dos animais, como raciocínio, lógica, compreensão. Enquanto que os animais têm a esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto.
Deus sabe o que faz: acho que está certo o estado de graça não nos ser dado freqüentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado da vida, que também é real mas ninguém nos entenderia jamais. Perderíamos a linguagem em comum.
Também é bom que não venha tantas vezes quanto eu queria. Porque eu poderia me habituar à felicidade – esqueci de dizer que em estado de graça se é muito feliz. Habituar-se à felicidade seria um perigo. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes o são, menos sensíveis à dor humana, não sentiríamos a necessidade de procurar ajudar os que precisam – tudo por termos na graça a compensação e o resumo da vida.
Não, mesmo se dependesse de mim, eu não quereria ter com muita freqüência o estado de graça. Seria como cair num vício, iria me atrair como um vício, eu me tornaria contemplativa como os fumadores de ópio. E se aparecesse mais a miúdo, tenho certeza de que eu abusaria: passaria a querer viver permanentemente em graça. E isto representaria uma fuga imperdoável ao destino simplesmente humano, que é feito de luta e sofrimento e perplexidade e alegrias menores.
Também é bom que o estado de graça demore pouco. Se durasse muito, bem sei, eu que conheço minhas ambições quase infantis, eu terminaria tentando entrar nos mistérios da Natureza. No que eu tentasse, aliás, tenho a certeza de que a graça desapareceria. Pois ela é dádiva e, se nada exige, desvaneceria se passássemos a exigir dela uma resposta. É preciso não esquecer que o estado de graça é apenas uma pequena abertura para uma terra que é uma espécie de calmo paraíso, mas não é a entrada nele, nem dá o direito de se comer dos frutos de seus pomares.
Sai-se do estado de graça com o rosto liso, os olhos abertos e pensativos e, embora não se tenha sorrido, é como se o corpo todo viesse de um sorriso suave. E sai-se melhor criatura do que se entrou. Experimentou-se alguma coisa que parece redimir a condição humana, embora ao mesmo tempo fiquem acentuados os estreitos limites dessa condição. E exatamente porque depois da graça a condição humana se revela na sua pobreza implorante, aprende-se a amar mais, a perdoar mais, a esperar mais. Passa-se a ter uma espécie de confiança no sofrimento e em seus caminhos tantas vezes intoleráveis.
Há dias que são tão áridos e desérticos que eu daria anos de minha vida em troca de uns minutos de graça.
Clarice Lispector
In: Livro 'A descoberta do mundo'
Editora Rocco
Um jovem não sabe o que ele está a fim de fazer da vida, e os pais pedem que eu descubra qual é o desejo do filho, de modo que ele possa escolher o vestibular e a profissão que ele "realmente" gostaria.
Na mesma semana, encontro um adulto que acha que, de fato, nunca fez nada por desejo. Embora bem-sucedido, queixa-se de que suas escolhas (profissionais e amorosas) sempre teriam sido circunstanciais, efeitos de oportunidades encontradas ao longo do caminho. Ele pede, antes que seja tarde, que eu o ajude a descobrir qual é "realmente" o seu desejo.
Nos dois casos, o pressuposto é o mesmo: quem viver segundo seu desejo será, no mínimo, mais alegre. Esta é mesmo uma boa definição da alegria: a sensação de que nosso desejo está engajado no que estamos fazendo, ou seja, de que nossa vida não acontece por inércia e obrigação. Inversa e logicamente, muitos estimam dever sua (grande ou pequena) infelicidade ao fato de terem dirigido a vida por caminhos que - eles declaram - não eram exatamente os que eles queriam.
Pois bem, esse pressuposto e os pedidos que recebi se chocam com esta constatação: o "nosso desejo" nunca é UM desejo definido por UM objeto ou por UM projeto. Não existe, nem escrito lá no fundo escondido de nossa mente, UM querer definido, que poderíamos descobrir e, logo, praticar com afinco e satisfação porque estaríamos fazendo aquela coisa ou caçando aquele objeto aos quais éramos, por assim dizer, destinados. Nada disso: de uma certa forma, todos os objetos e os projetos se valem, e nenhum é "nosso" objeto ou projeto específico. Ou seja, nós desejamos sempre segundo as circunstâncias, os encontros, as oportunidades - segundo as tentações, se você preferir.
Somos volúveis? Nem tanto, pois cada objeto e projeto não substitui necessariamente o anterior. O que acontece é que desejar é uma atividade inventiva a jato contínuo. Por consequência, mesmo quando estamos alegremente convencidos de estar fazendo o que queremos com nossa vida, nunca estamos ao abrigo do surgimento de desejos novos.
Claro, podemos aceitar esses desejos novos. Por exemplo, em "As Confissões de Schmidt" (que não é um grande filme), de A. Payne, com Jack Nicholson, o protagonista acorda de noite, olha para sua mulher de sei lá quantos anos e se pergunta estupefato: "Quem é esta mulher que dorme na minha cama?". Logo, ele dá um rumo novo à sua vida, colocando o pé na estrada. Mas a expressão de seus novos desejos é fortemente facilitada por duas circunstâncias: providencialmente, o protagonista se aposenta e fica viúvo. Nessas condições, escutar novos desejos fica fácil, não é?
Agora, imaginemos alguém que esteja no meio de sua vida profissional e num bom momento de sua vida amorosa. Nesse caso, provavelmente, o novo desejo será silenciado, reprimido, menosprezado ("deixe para lá, é besteira"). Resultado: o indivíduo continuará declarando que está vivendo a vida que ele queria (e, em parte, será verdade); só que, de repente, sem entender por quê, ele perderá sua alegria.
Por que razão nosso indivíduo negligenciaria seus novos desejos? Simples: por serem novos, eles acarretam a ameaça de uma ruptura no presente: afetos e laços que poderiam ser perdidos, medo da solidão e preguiça dos esforços necessários para reinventar a vida.
Infelizmente, essa negligência tem um custo alto. Sempre entendi assim a "Metamorfose", de Kafka: alguém acorda, e o que até então era uma vida normal e legal, de repente, aos seus olhos, é uma vida de barata.
Nota útil para a clínica da depressão. Às vezes, procuramos em vão as causas de uma depressão; será que houve lutos ou perdas? Nada disso; está tudo bem, trabalho, família, filhos e tal, mas o indivíduo entristece, volta a fumar e a beber como se quisesse encurtar a vida, engorda como se estivesse num mar de frustração e precisasse de gratificações alternativas.
Em muitas dessas vezes, a origem da depressão não é uma perda, nem propriamente uma frustração, mas a aparição de um desejo novo que não foi reconhecido. E os novos desejos, sobretudo quando são silenciados, desvalorizam a vida que estamos vivendo.
Moral da fábula:
1) Não existem vidas definitivamente resolvidas, pois novos desejos surgem sempre;
2) É bom reconhecer os novos desejos, mesmo que deixemos de realizá-los.
Contardo Calligaris
(Texto publicado no Jornal Folha de São Paulo em 19/05/2011)
“O corpo tem alguém como recheio” Arnaldo Antunes, tema para o grupo “Corpo”, em 2000. Que corpo você está usando atualmente? Que corpo está representando você no mercado das trocas imaginárias, que imagem você tem oferecido ao olhar alheio para garantir seu lugar no palco das visibilidades em que se transformou o espaço público no Brasil? Fique atento, pois o corpo que você usa e ostenta, vai dizer quem você é. Pode determinar oportunidades de trabalho. Pode significar a chance de uma rápida ascensão social. Acima de tudo, o corpo que você veste, preparado cuidadosamente à custa de muita ginástica e dieta, aperfeiçoado por meio de modernas intervenções cirúrgicas e bioquímicas, o corpo que resume praticamente tudo o que restou do seu ser é a primeira condição para que você seja feliz. Não porque ele seja, o corpo, a sede pulsante da vida biológica. Não porque possua uma vasta superfície sensível ao prazer do toque – a pele, esse invólucro tenso que protege o trabalho silencioso dos órgãos. Não pela alegria que experimentamos os apetites, os impulsos, as excitações, a intensa e contínua troca que o corpo efetua com o mundo. O corpo-imagem que você apresenta ao espelho da sociedade vai determinar sua felicidade, não por despertar o desejo ou o amor de alguém, mas por constituir o objeto privilegiado do seu amor próprio: a tão propalada auto-estima, a que se reduziram todas as questões subjetivas na cultura do narcisismo. Nesses termos, o corpo é ao mesmo tempo o principal objeto de investimento do amor narcísico e a imagem oferecida aos outros - promovida, nas últimas décadas, ao mais fiel indicador da verdade do sujeito, da qual depende a aceitação e a inclusão social. O corpo é um escravo que devemos submeter à rigorosa disciplina da indústria da forma (enganosamente chamada de indústria da saúde) e um senhor ao qual sacrificamos nosso tempo, nossos prazeres, nossos investimentos e o que resta das nossas suadas economias...
Para milhares de brasileiros, incentivados pela publicidade e pela indústria cultural, o sentido da vida reduziu-se à produção de um corpo. A possibilidade de ”inventar” um corpo ideal, com a ajuda de técnicos e químicos do ramo, confunde-se com a construção de um destino, de um nome, de uma obra. “Hoje eu sei que posso traçar meu próprio destino”, declara um jovem freqüentador de academias de musculação, associando o aumento de seu volume muscular à conquista de respeito por si mesmo. As ciências biomédicas, em defesa de uma “pretensa” saúde, ocuparam o lugar deixado vazio pelos discursos religiosos, filosóficos e, morais no mundo contemporâneo. Seu saber orienta uma variadíssima indústria do corpo, ainda em expansão no Brasil, cujos imperativos em nome da vida, da felicidade e da saúde conquistam mercados e mentes. O cuidado de si volta-se para a produção da aparência, segundo uma crença já muito difundida de que a qualidade do invólucro muscular, a textura da pele e a cor dos cabelos revelam o grau de sucesso de seus proprietários...
É fato que as sociedades burguesas, desde o século XIX, consideraram o corpo como propriedade privada e responsabilidade de cada um. O corpo - mas o corpo vestido, domado pela compostura burguesa e embalado pelo código das roupas era o primeiro signo que o “self-made man” em ascensão, sem antecedentes nobres, emitia diante do outro a respeito de quem ele “é”. A aparência substituiu, com vantagens democráticas “o sangue”. O corpo bem comportado de até poucas décadas atrás dizia: sou uma pessoa decente, confiável, honrada – e meus negócios vão bem. O corpo malhado, sarado e siliconado do novo milênio diz: sou um corpo malhado, sarado, siliconado. O circuito se fecha sobre si mesmo...
No Brasil de hoje, em que o espaço público foi a um só tempo, desmantelado e ocupado pela televisão, a produção dos corpos é a produção da visibilidade vazia, da imagem que tenta apagar a um só tempo o sujeito do desejo e o sujeito da ação política. A cultura do corpo não é a cultura da saúde, como quer parecer. É a produção de um sistema fechado, tóxico, claustrofóbico. Nesse caldo de cultura insalubre, desenvolvem-se os sintomas sociais da drogadição (incluindo o abuso de hormônios e anabolizantes), da violência e da depressão. Sinais claros de que a vida, fechada diante do espelho, fica perigosamente vazia de sentido.
Maria Rita Kehl
Num livro magnífico, Maria Clara Bingemer conta a história de uma das figuras mais fascinantes do século XX — Simone Weil, filósofa, mística, ativista política. Nascida em Paris em 1909, de abastada família judia, Simone teve a melhor educação possível. Sua inteligência brilhou desde o início; mas ao lado disso estava um senso incrivelmente precoce de solidariedade com os que sofrem.
Aos cinco anos ela se fez madrinha de um soldado que combatia na Primeira Guerra Mundial e, por causa dele, privava-se de doces e tentava juntar dinheiro para remeter ao “afilhado”.
Era toda uma vocação que já se definia. Terminando seu curso secundário, tornou-se aluna do legendário Alain, filósofo e grande professor. Dali extraiu a sua base de estudos humanísticos, sua ligação com a Grécia antiga. Um de seus textos capitais trata da “Ilíada: o poema da força”. Outra característica de Simone: a ausência total de vaidade. Simone de Beauvoir encontrou-a na Sorbonne, achou graça na maneira de ela se vestir; mas assustou-se ainda mais com as suas idéias. Uma grande fome devastara a China e Simone chorava por causa disso. Ela já estava polarizada no sofrimento humano.
Convertida ao cristianismo sem rejeitar o judaísmo.
Mas não era polarização apenas intelectual, ou afetiva: ela queria viver a vida do povo, sentir as suas dificuldades. Começou uma série de experiências de trabalho em fábricas, onde disfarçava a sua condição de intelectual. Sem ter força física para aquilo, tinha dores de cabeça monumentais, mas recusava tratamento diferenciado.
Daí surgiu, depois de anos e de várias experiências, uma reflexão sobre a condição operária sem paralelo nas letras modernas. E também ali ela discernia o problema da força, da violência que dobra o ser humano, que o transforma numa coisa. Reflexão de absoluta atualidade. Do mesmo período vem toda uma meditação sobre a existência de Deus, que a levará na direção do misticismo. Ela acabou por converter-se ao cristianismo, sem com isso rejeitar a religião de seus pais.
Mas tinha dificuldades com o judaísmo ortodoxo, porque não conseguia digerir a violência que transborda de certos textos do Antigo Testamento. Neste sentido, sem chegar a uma adesão formal, é que ela experimentou a atração do cristianismo: na cruz de Cristo, ela via a figura divina finalmente irmanada às nossas dores, sofrendo o que nós mesmos sofremos.
Simone passou pelos grandes conflitos do século XX. Do ponto de vista teórico, desenvolveu uma crítica penetrante do marxismo, mostrando por que a obsessão pela economia não representava um caminho aceitável. Foi para a Espanha ajudar na luta contra o franquismo, mas também por esse lado colheu decepções. E, finalmente, fez tudo o que pôde para participar da luta contra o nazismo. Em todas essas peripécias, fazia questão de partilhar a sorte dos que tinham a vida mais dura: recusava-se a comer mais do que a ração entregue aos soldados no front, ou às populações depauperadas — com o que a saúde, já frágil, acabou cedendo, resultando na sua morte prematura. Ela é o exemplo do intelectual que desenvolve o seu pensamento em contato direto com a mais crua realidade. Quando ela escreve sobre o impacto da força nos seres humanos, é porque sentiu diretamente esse efeito, nas fábricas onde trabalhou, nos combates da Guerra Civil espanhola.
Pensamento racional acossado pela violência.
Escreve Maria Clara Bingemer: “Simone acusa a nossa época de ser o palco de uma decadência intelectual terrível. A ciência contém mecanismos intelectuais refinados para resolver os problemas mais complexos, mas é incapaz de ajudar a aplicar os métodos elementares do pensamento racional”. Diz a própria Simone: “Em todos os campos, parecemos ter perdido as noções essenciais de inteligência, limite, medida, grau, proporção, relação, ligação, conexão entre meios e resultados”. Sente-se nessa frase a antiga aluna de Alain — como o seu mestre, apaixonada pelo senso de medida dos gregos, pelas possibilidades do pensamento racional.
Mas, em todas as épocas, esse pensamento racional é acossado pela violência pura, pelo jogo das paixões — e é isso o que Simone identifica no descontrolado cenário moderno. Com o seu cérebro privilegiado, ela vai tentar destrinchar essas relações entre o ser humano e a força que o destrói, ou o oprime. Mas o problema é de tal natureza que não admite solução puramente racional. E é então que Simone — como a sua contemporânea e irmã espiritual, Edith Stein — vai procurar luz e consolo no mistério do Cristo. Maria Clara quase que resume o caminho espiritual de Simone Weil na idéia da compaixão — “sentir com”, “sofrer com”. É o que a menina Simone já sentia, e o que, na mulher adulta, se transforma em opção consciente. A autora cita Simone: “É extremamente difícil a capacidade de prestar atenção a um infeliz — é quase um milagre; ou é mesmo um milagre”.
Luiz Paulo Horta
Há uma dignidade no silêncio. Ele está acabando. Cercado de barulho por todos os lados, as pessoas perdem a cada dia a capacidade de ouvir determinadas verdades que brotam do interior. A poluição sonora (em forma de ruído e de arte musical padronizada de baixa qualidade) é talvez mais perniciosa que a visual. O olhar, com toda sua importância na economia psíquica, leva o homem até o mundo. A audição, com sua significação ainda não valorizada, traz o mundo até o homem. A poluição sonora macula a alma.
A extrema valorização do visual na contemporaneidade fez o homem esquecer a origem quase sagrada da audição e, conseqüentemente, do silêncio. No mundo ocidental, a filosofia tem como uma de suas marcas de origem a importância da palavra falada e mesmo uma desconfiança da palavra escrita. Os maiores mestres da humanidade não escreveram nada, mas falaram, buscaram comunicação, procuraram o diálogo vivo.
No Oriente, essa dimensão sagrada do som vai muito além das mensagens racionais ou poéticas. Há mesmo uma crença de que o mundo fala, em todas as suas emanações.. O cosmo é som. Algumas experiências científicas atuais parecem confirmar a intuição metafísica dos hindus, com captação de sons que vão da natureza aos céus. Perguntar se as rosas falam pode ser algo mais que poético, assim como a sinfonia dos planetas e a harmonia das esferas são mais que imagens e refletem algo verdadeiro.
Por excesso de ruído, desaprendemos a ouvir. O maior prejuízo nesse triste processo pode ter sido nossa surdez para o silêncio. A busca cada vez maior por meditação pode ser uma resposta à inflação do olhar. Quem medita se propõe a ouvir a si mesmo. No entanto, o maior problema talvez esteja na incapacidade de ouvir o outro. As duas pontas parecem se unir: a solidão e o silêncio são estágios necessários à verdadeira comunicação. O homem moderno tem vocação para ficar sozinho e tem medo de ouvir o outro. O caminho que se divisa é de um grande monólogo coletivo.
Uma das formas de manifestação dessa patologia social está no empobrecimento da linguagem e na ubiqüidade dos códigos automáticos de comunicação. As conversas parecem se dar antes do encontro. As pessoas apenas cumprem um roteiro dado de frases prontas e julgamentos pré-fabricados. As conversas entre alguns grupos se reduzem a tão poucas palavras que parecem apenas um exercício neutro de repetição de fórmulas. Não há verdadeira troca, apenas reconhecimento de grupo pelo domínio de um código comum..
A situação se torna ainda mais complexa quando se chega ao terreno da música, a mais nobre das artes, na expressão do filósofo romeno Cioran. Ainda mais para uma civilização musical como a brasileira, cercada de boa música por todos os lados. E é porque nossa música é tão boa que o problema é ainda mais grave. Estamos trocando uma história de riquezas pelo chorilho mercadológico da facilidade.
O sentido político (ou social) da música talvez seja uma das maiores perdas da incapacidade de conviver com o silêncio. Toda música carrega em si certa metáfora da democracia: é arte feita pelo povo, para o povo. Romper com o ciclo de produção e reconhecimento é uma das conseqüências mais explícitas do cenário pós – moderno. A música real foi trocada pela moda da música. O mercado é hoje o maior “criador” de obras.
Tudo se passa como se a história resolvesse dar um tempo (como defendem teóricos do fim da história) e afirmasse um presente absoluto. Num mundo sem perspectiva de superação, resta ao mercado oferecer as cotas de mudanças aceitáveis. Assim, o que é bom hoje se torna descartável amanhã. A moda é uma espécie de permanência sem verdade.
O músico teórico José Miguel Wisnik explicou esse processo em seu livro O som e o sentido: “O consumidor atribui uma cotação fetichista à última realidade. Para esse, a única verdade é que o futuro já chegou, como graça, para os que podem comprá-lo. Ao mesmo tempo o futuro não pára de chegar, é preciso se auto valorizar a partir de um consumismo ativo, supostamente seletivo e acelerado”. Para Wisnik, essa operação acaba por solapar o necessário intervalo do silêncio, que é valorativo no sentido mais nobre da palavra, permitindo a audição em profundidade. Sem esse momento reflexivo, “o banho lustral no zero do código”, todo o som corre o risco de tornar ruído. O silêncio é condição de possibilidade da música.
O historiador Eric Hobsbawn, escrevendo sobre jazz com o pseudônimo de Francis Newton, se pergunta sobre a capacidade de restauração da arte em nossas vidas. Para ele, parecia que uma manifestação como o jazz, que carrega em sim o sentido de uma arte popular, genuína, podia ser uma resposta, mas não era garantia. Ele alertava entre outros riscos, para os extremos do pop, como dissolvência, e das manifestações esotéricas, como prepotência. “Podemos ver que a arte popular genuína, excepcionalmente vigorosa e resistente, realmente funciona e modifica o mundo moderno.”, avalia em História Social do jazz. A padronização, infelizmente, parece estar vencendo a batalha. O jazz (como no samba) resiste, mas o mercado, que não tolera o silêncio e a qualidade que permanece, tem a capacidade de preencher seus espaços com barulhos. Jazz vira muzak, samba vira pagode.
Uma das técnicas de tortura mais eficaz inventadas pela besta humana consiste em invadir a interioridade do espaço íntimo com um som constante, que não dá tréguas. Esse método é mostrado no filme O ovo da serpente, de Bergman, em que um som contínuo, ainda que baixo, leva o indivíduo à loucura. O filme é de 1977. Desde lá, a tortura do ruído intermitente parece ter deixado a situação psicológica para ganhar dimensão social. Estamos enlouquecidos pelo barulho, viciado em ruídos, amortecidos pelo tumulto, felizes no isolamento ambientado com música eletrônica e outras simplificações.
O cenário de pessoas correndo em busca da saúde, com aparelhos de som nos ouvidos, é uma metáfora viva do nosso tempo. Todos querem viver mais e se cuidam praticando esportes, mas não suportam o silêncio, ou os sons verdadeiros do mundo, isolando-se com as capas das músicas que sopram dos i-pods como oráculos. Viver só tem sentido se aponta para a convivência. Ao esticar a vida e encurtar o contato, o mundo parece se tornar um lugar diferente, composto de individualidades que não se conectam.
O silêncio é o marco zero da conversa. Sem ele, cercado de ruídos por todos os lados, o outro é apenas um som a mais, com condão de turvar o ambiente em balbúrdia. O concerto do mundo é feito de vozes humanas que aguardam sua vez de falar. A boa música precisa do mesmo empenho para se construir como arte sedimentada no tempo, herdeira da tradição e capaz de inventar novas formas. Ouvir o som do silêncio é exercitar, como no Koan zen-budista, a habilidade de ouvir o som de uma única mão que aplaude.
João Paulo Cunha é diretor do Caderno Pensar e Cultura do Jornal Estado de Minas.
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