“Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía” (Lc 24,30)
Todos temos experiência que o passado carrega lembranças de fatos e de vivências negativas: crises, fracas-sos, decepções, rejeições, erros, pecados... Os desencontros, quebras e rupturas... costumam deixar feridas. Tudo isso pesa na memória e continua influenciando negativamente no presente.
Com isso, ela se torna “memória mórbida, doentia”: depósito de rancores, ressentimentos, hostilidades...; ao se fixar no passado, a “memória mórbida” alimenta remorsos, sentimentos de culpa, desânimo, angústia..., embotando a vida, queimando energias, paralisando a pessoa e não abrindo futuro de sentido.
Pessoa doente na memória é doente no seu coração, na sua afetividade, nos seus sentimentos...
Se a memória não é “evangelizada”, ela continua remoendo aquilo que aconteceu, num desgaste muito grande de energia. Não há mudança e conversão se não houver mudança e conversão da memória.
Somente através da “memória redentora”, a pessoa será capaz de se colocar diante do passado, de modo livre e aberto, dando-lhe um novo significado.
A memória sadia não muda o passado, mas “re-corda” (visita com o coração) de modo novo e inspirador. A memória resgata referências, cura feridas, reconcilia-se com a vida e consigo mesma, com as próprias riquezas e fraquezas, com o próprio passado; ela tem sua função de lugar santo do louvor e da gratidão, pois ajuda a tomar consciência dos benefícios recebidos e possibilita ter acesso às recordações não neutras, mas aquelas que tem um significado para o presente. Ela é capaz de tirar proveito de todas as vivências pessoais (nada é descartado, tudo é integrado); abre possibilidade para rever a própria história e lê-la como História de Salvação.
A cena do encontro de Jesus Ressuscitado no caminho de Emaús nos revela um longo diálogo amigável, que certamente ficou marcado na memória dos dois discípulos que fugiam de Jerusalém, após o evento da Paixão. Tudo o que havia acontecido com Jesus continuava presente na memória e no coração dos dois discípulos. Conversavam sobre o que significou para eles o encontro com Jesus, a convivência com Ele, o fascínio exercido sobre eles pelo anúncio do Evangelho e pela esperança da libertação de Israel.
Conversavam e discutiam também sobre a crucifixão e a morte de Jesus.
No fundo do coração dos discípulos havia um grande vazio que, inconscientemente, queriam preencher “conversando”. Estavam confusos e desorientados, mas não se separaram; não conseguiam entender-se, mas continuavam a caminhar lado a lado e a conversar; uma conversa carregada de tristeza, sem sentido, um diálogo de fracassados que não levava a lugar nenhum.
Foi justamente no meio desta “conversação”, triste e sem esperança, que o Ressuscitado se fez presente.
O Forasteiro, ao juntar-se a eles no caminho, ajudou-os a recontar a história, gentil e gradualmente. Partindo dos relatos bíblicos o Ressuscitado foi aquecendo o coração dos dois discípulos para que eles pudessem re-interpretar e ressignificar os fatos que tinham “acontecido em Jerusalém” até surgir uma nova perspectiva. Lentamente, eles foram fazendo a “travessia” de uma memória pesada, triste, doentia... a uma memória saudável, curativa e aberta ao futuro.
As viagens que fazemos em direção à reconciliação com nosso passado, muitas vezes se parecem com a viagem dos discípulos de Emaús. Na maioria das vezes, procuramos fugir da dor do passado e não sabemos para onde nos dirigimos. A viagem torna-se tediosa e pesada, marcada pelo fracasso e carregada de culpa, pois parece que não chegamos a lugar algum, embora nos movimentemos o tempo todo. É como estar preso a um moinho que nos mantém em movimento, mas não nos faz sair do lugar.
Re-ler o passado à luz de um horizonte maior de sentido é altamente libertador; novos recursos internos são mobilizados e a vida começa se movimentar, saindo do “fatal ponto morto”. As lembranças e os pesadelos dos relatos traumáticos sempre reaparecem e, apesar da passagem do tempo, permanecem tão nítidos e incontroláveis. No entanto, é preciso iluminá-los e situá-los no contexto dos relatos da História da Salvação. Só assim tudo adquire novo sentido, a história pessoal deixa de ser inimiga que alimenta culpa e torna-se companheira de estrada.
Quando alcançamos uma nova perspectiva sobre determinada experiência traumática ou frustrante, a esperança e o entusiasmo por viver vem habitar nosso interior. Trata-se de um momento tão fortalecedor e jubiloso que estremecemos reverentes diante do que vemos.
A narrativa de Emaús é um dos melhores exemplos de como podemos colocar nossas histórias dentro da História maior da paixão, morte e ressurreição de Jesus. “A Páscoa ocorre quando encontramos em Jesus não um amigo morto, mas um forasteiro vivo” (Rowan William)
Na narrativa de Emaús, o Forasteiro cria um círculo de amor em que os discípulos contam sua história em segurança e começam a reconstruir a confiança. Foi criado um ambiente de hospitalidade e acolhida.
Nesse círculo, a memória manifesta-se paulatinamente e revela suas feridas; lentamente, acontece uma “passagem” da memória mórbida à memória redentora.
A experiência do encontro com o Senhor e de seu reconhecimento transforma radicalmente a vida dos dois discípulos. O itinerário da fé pascal é longo e penoso, mas realiza uma verdadeira reviravolta nos pensamentos e sentimentos, nos ideais e na conduta daqueles que o percorrem até o fim.
Por meio da benção e do ato de partir e compartilhar o pão, os discípulos fazem a ligação com o passado.
Chega o momento do reconhecimento, e eles se transformam. Cheios de estímulo e esperança, e também de um novo propósito, apressam-se a voltar para Jerusalém a fim de partilhar a nova descoberta.
Que representa para nós a experiência de Emaús?
É na estrada que essa história começa a se desenrolar. O nó do problema não é a situação de fracasso de Jesus, como os discípulos pensam; o que está verdadeiramente em foco é a situação deles. Não é Jesus que desaparecera, eles é que ainda não conseguem vê-Lo e reconhecê-Lo, prisioneiros de uma tristeza e de uma cegueira tal que os impediam de aceitar a condição pascal de Jesus. Também eles precisam passar pela experiência de ressurreição, pois permanecem enfaixados no túmulo do passado e do fracasso.
Os dois discípulos vêem Jesus, mas não o reconhecem, porque a visão deles é, ainda, a pré-pascal. Foi preciso despertar a “memória redentora”, ativada pelo próprio Jesus, para que a experiência de intimidade fosse construída na Estrada, na escuta da Palavra, no convite a entrar em Casa e no ato de sentar-se à Mesa, onde acontece a benção e a fração do pão.
O relato deste domingo não fornece pormenores sobre a casa nem nos garante que ela seja a de um dos discípulos. Contudo o convite “fica conosco” destaca um elevado grau de aproximação. Jesus deixa de ser um forasteiro. O convite a que permaneça com eles traduz um desejo de relação e hospitalidade.
As casas, em Lucas, são territórios onde Jesus desenvolve preferencialmente o seu ministério sobre o anún-cio do Reino. A casa chega mesmo a representar uma alternativa ao Templo, e a tudo o que ele simboliza.
O centro das casas, no Evangelho, é a mesa; também aqui o movimento de Jesus vai nessa direção: “sentou-se à mesa com eles”. Aquele que era o forasteiro agora é o anfitrião; Aquele que estava morto convida a partilhar a sua vida.
Texto bíblico: Lc 24,13-35
Na oração: O Tempo Pascal é uma escola de “leitura orante da nossa história”, pois nos ajuda a abrir os olhos para a sua novidade inesgotável, faz “arder o coração”, desperta o desejo e mobiliza todas as nossas capacidades para um compromisso de ação na história pessoal e coletiva.
“Há feridas que em vez de abrir nossa pele, abrem nossos olhos” (Pablo Neruda). A memória desempenha aqui um papel essencial. Quando evangelizada, é a que permite abrir as portas e pôr em movimento os dinamismos de vida, muitas vezes reprimidos pelas crises, feridas e fracassos.
- Na estrada de sua vida, o que tem predominado: “memória doentia” ou “memória agradecida”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
20.04.23
“...e mostrou-lhes as mãos e o lado; então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (Jo 20,20)
Este 2º. Domingo de Páscoa revela-se como o domingo dos dons pascais: o dom da paz, como reconciliação do Ressuscitado com os seus discípulos; o dom do Espírito Santo que os recria como seres humanos novos; o dom da missão que os faz continuadores da obra de Jesus; o dom do perdão como expressão do amor pascal da e na comunidade; o dom da fé como adesão Àquele que é Vida; o dom da comunidade como lugar visível da presença do Ressuscitado.
Durante a paixão e morte de Jesus quase todos falharam: uns fugiram ou se esconderam, outro o traiu, um outro o negou abertamente, afirmando não ser seu discípulo ou conhecê-lo. Por isso, no encontro com o Ressuscitado, eles se sentem envergonhados e temerosos. E a primeira coisa que o Ressuscitado faz é devolver-lhes a alegria da reconciliação, ativando neles o dom da paz e do consolo.
Além disso, era preciso reconstruí-los por dentro; por isso, “soprou sobre eles” o dom do Espírito Santo, recriando-os. Se na criação Deus soprou nas narinas de Adão tornando-o um ser vivente, agora o Ressuscitado sopra sobre eles e não só comunica o dom da vida, mas seu próprio Espírito, tornando-os “homens novos da Páscoa”. E lhes confia a continuidade da missão que o Pai lhe havia encomendado.
Jesus também é consciente de que, apesar de tudo, seus amigos continuam sendo homens limitados e frágeis e lhes deixa o maravilhoso dom do perdão, capaz de reconstruí-los e de reforçar os vínculos comunitários.
Jesus ressuscitado não criou algumas estruturas nas quais a nova comunidade pudesse se mover e se organizar. Ele despertou um dinamismo interno capaz de mobilizar a nova comunidade dos seus seguidores.
Por isso, o primeiro dia da semana é o “domingo da comunidade”. Quase todas as aparições pascais têm lugar na comunidade. Jesus começa por curar e pacificar sua comunidade; uma comunidade enferma por sua infidelidade, seus medos e covardias; agora, uma comunidade curada e reconciliada já na primeira aparição. Mas alguém está ausente da comunidade: “Tomé não estava com eles”. Continua ferido e enfermo. E a comunidade se dá conta; não o exclui, pelo contrário, o protege. A comunidade procura integrá-lo, levantando-lhe o ânimo: “vimos o Senhor!”. “Está vivo; alegra-te conosco!”.
Mas Tomé não acredita neles; também ele quer ver o Senhor como os outros. Também ele quer ser curado pelo Ressuscitado. Com suas “feridas”, o Ressuscitado cura as feridas de cada um da comunidade.
Na segunda aparição destaca-se a presença de Tomé. Também ele vê; e o que os outros não fizeram, ele consegue tocar aquelas mãos chagadas. É o único que consegue pôr o dedo na chaga do lado. Mas terá que estar presente na comunidade.
Tomé não pecou contra Jesus; ele pecou contra a comunidade, pois não acreditou no testemunho dos seus companheiros de discipulado. Por isso Jesus o resgata e o faz proclamar publicamente, na comunidade, sua fé n’Ele, o Vivente. A comunidade agora curada pela presença do Ressuscitado torna-se comunidade pascal; é a comunidade do Ressuscitado; é a comunidade do Espírito Santo; é a comunidade da missão e do perdão; é a comunidade onde o Ressuscitado se faz visível.
Mas, esta nova comunidade ressuscitada não tem fim nela mesma. O evangelista João cuidou muito da cena em que Jesus vai confiar sua missão aos discípulos. Ele quer deixar bem claro o que é o essencial. Jesus está no centro da comunidade, como fator de unidade e transmitindo a todos sua paz e alegria, quebrando os medos, consolando-os e confirmando-os como continuadores da missão que Ele tinha iniciado na Galiléia.
Agora, como Ressuscitado, Jesus os “envia”; concretamente não lhes diz a quem devem se dirigir, o que deverão fazer ou como deverão agir. “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. A missão é a mesma que Jesus recebera do Pai: ser presença humanizadora no mundo, comprometendo-se com os enfermos e chagados, vítimas da situação social e religiosa de seu tempo.
Os discípulos já tinham visto de quem Jesus se aproximou, como cuidou dos mais desvalidos, como levou adiante seu projeto de humanizar a vida, como semeou gestos de libertação e de perdão. As feridas de suas mãos e seu lado lhes recordam sua entrega radical, evidenciando que é o mesmo que morreu na cruz. Ninguém pode tirar a verdadeira Vida que se revela em Jesus. A permanência dos sinais de morte, indica a permanência de seu amor. Além disso, garante a identificação do Ressuscitado com o Jesus Crucificado.
Assim como durante sua vida pública Jesus se fizera presente junto aos feridos, aliviando o sofrimento humano, agora, como Ressuscitado, continua solidário com todos os crucificados e chagados da história. Ao mostrar suas chagas para os discípulos, Ele está dizendo onde eles devem encontrá-Lo: no compro-misso com os sofredores e excluídos, vítimas das estruturas sociais injustas que desumanizam.
Há uma tradição ancestral entre os japoneses que se refere à arte de recompor vasos quebrados. Quando uma peça de cerâmica se quebra, os mestres desta arte recompõem-na com ouro, deixando a cicatriz da reconstrução completamente à vista e sem ocultar as marcas da quebra; para eles, a peça reconstruída é um símbolo perfeito que alia fortaleza, fragilidade e beleza.
Os primeiros cristãos também decidiram conservar e transmitir a história de Jesus sem ocultar as muitas rupturas, feridas e traições que lhe acompanharam durante sua vida. Podiam ter adocicado, suavizado ou omitido diretamente os aspectos mais polêmicos ou os elementos mais humilhantes de seu dramático fim.
Com certeza, teriam evitado controvérsias e facilitado a aceitação da mensagem cristã. No entanto, não fizeram isso. Pelo contrário, deixaram as cicatrizes de suas feridas completamente à vista de todos e sem nenhuma dissimulação. Mas, fizeram isso não só para serem fiéis à história de Jesus, mas, sobretudo, para mostrar a fortaleza, a fragilidade e a beleza da reconstrução realizada por Deus na sua ressurreição.
Convinha mostrar o ouro precioso que preenche os espaços entre as peças quebradas, as “marcas” de Deus nas cicatrizes da história.
Também os discípulos estavam quebrados pelo fracasso, dor, tristeza, desânimo... O Ressuscitado, ao soprar sobre eles, recompôs com o fio de ouro do Espírito, tudo o que estava quebrado. Também eles foram ressuscitados e re-construídos em sua essência.
E agora, também eles recebem a nova missão de recompor pessoas quebradas, machucadas, feridas... com o ouro da acolhida, da compaixão, da presença solidária. “Recompor o mundo quebrado” expressa a responsabilidade de todos para curar, reparar e transformar o mundo.
Uma das frases que melhor expressa este chamado ao compromisso de recompor o que está quebrado é encontrada no profeta Isaías: “Tu reconstruirás velhas ruínas, erguerás sobre os alicerces de outrora; e te chamarão reparador de brechas, restaurador de casas em ruínas” (Is 58,12).
Essa é a razão pela qual, para os cristãos, o compromisso com a restauração do mundo quebrado é um modo de atualizar a experiência da ressurreição e de viver a vocação. O(a) seguidor(a) escuta o chamado de Jesus para unir-se ao trabalho do Deus-Criador que, na Ressurreição, re-cria e recompõe de novo o tecido da humanidade quebrada.
É escandaloso o fato de muitos que não conseguem ver nos cristãos a paz, a alegria, a vida renovada; só encontram intolerância, moralismo, legalismo, ódio, críticas destrutivas... Cristãos que afirmam ser segui-dores do Ressuscitado, mas envenenam seus ambien-tes e as redes sociais com o “mau cheiro dos túmulos”.
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: Consolados pelo Ressuscitado, somos chamados a exercer o ministério da consolação. Trata-se da consolação de Deus como dom para uma missão, neste mundo carregado de solidão, enfermidade e exclusão.
- Traga à oração as dimensões de sua vida que estão quebradas: corpo, memória, afetividade, relações...
- Deixe que o ouro do Espírito recomponha sua história quebrada para fazer transparecer uma nova obra de arte, uma vida ressuscitada.
“A pedra da entrada do túmulo é removida” e amanhece um novo tempo, uma nova consciência plane-tária, uma nova espiritualidade, uma nova maneira de viver o mistério de Deus, uma concepção inspiradora do ser humano, uma nova mentalidade, uma nova maneira de ser Igreja...
Amanhece um novo mundo, heterogêneo, descentralizado; um novo humanismo, um novo movimento cultural. Brota um novo despertar a partir de uma maior lucidez e consciência dos problemas mundiais e uma escuta afinada diante do clamor unânime de que outro mundo é possível.
Em Jesus ocorre algo totalmente novo. Sua ressurreição traz uma nova maneira de viver que não cabe em nossos esquemas, que não se encaixa em nossos hábitos, sempre limitados e estreitos.
O “mistério pascal” é o salto para a novidade, para a beleza, para a transcendência. Imersos na história e na natureza, a Ressurreição nos faz descobrir a verdadeira extensão da Vida.
Não encontramos o Ressuscitado no sepulcro, mas na vida. Não encontramos o Ressuscitado enfaixado e paralisado pela morte, mas livre como a brisa da vida.
Não “vemos” a Ressurreição contemplando os restos da morte; só podemos contemplar o Ressuscitado no mistério da vida. E “Jesus ressuscitou de tanto viver”. Aquele que viveu tão intensamente não podia permanecer na morte. Por isso, só no compromisso com a vida é que podemos encontrá-Lo.
A Ressurreição nos revela: só existe a Vida; só nos resta viver intensamente. Somos seres visceralmente “pascais”, somos potencialidade de vida.
Há um dado constante nos relatos das Aparições do Ressuscitado: Ele se faz presente no meio do fracasso, da dor, da tristeza, da ferida..., e, aos poucos, vai iluminando a situação dramática de cada pessoa ou do grupo, vai reconstruindo vidas despedaçadas, vai abrindo horizonte de sentido e confirmando a missão de prolongar o “movimento de vida” iniciado na Galiléia.
Os relatos de suas Aparições nos revelam como Ele foi reconstruindo as pessoas, amigas e amigos, quebra-dos(as) pelo fracasso, pela tristeza, pela decepção... Foram ressuscitados por dentro, despertando a vida bloqueada e abrindo o horizonte da missão.
Na ressurreição, a vida emerge de forma misteriosa; ela se impõe, simplesmente. Tal realidade desperta fascinação, provoca admiração e veneração..., porque a vida é sempre sagrada. Diante dela ficamos exta-siados, boquiabertos, escancarados os olhos e afiados os ouvidos. Ela nos atrai por sua força interna.
Portador de uma vida inesgotável, revelada na madrugada pascal, o ser humano vive para mergulhar em algo diferente, novo e melhor. A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e ilu-minada em plenitude. Amar é romper a casca para que a vida se expanda na doação. A morte do falso eu é a condição para que a vida se liberte.
Vida plena prometida por Jesus: “Eu vim para que tenham vida e vida em abundância” (Jo. 10,10).
“Viver como ressuscitado” implica esvaziar-se do “ego”, para deixar transparecer o que há de divino. Quem se experimenta a si mesmo como “Vida” é já uma pessoa “ressuscitada” e isso faz a grande diferença, pois tem um impacto no seu modo de ser e de viver.
Marcadas pela ressurreição, as pessoas captam muitos detalhes que antes não haviam percebido, vivem intensamente, amam com mais paixão, prestam atenção a muitas coisas que antes passavam desapercebi-das. Tem um comportamento diferente para com os outros; há, nestas pessoas, mais ternura, são mais sensíveis à dor e à injustiça. Ao saborear o presente da vida, vivem como se fossem ressuscitadas. Crêem que, amando mais a vida, se afastarão mais da morte e resistirão às hostilidades do mundo presente. E, no entanto, continuam vivendo na mesma casa, no mesmo trabalho, fazendo as mesmas coisas... , mas seu olhar audacioso desperta as consciências, sacode as velhas estruturas, derruba os muros da exclusão.
A Ressurreição não só “dá o que pensar”, mas sobretudo, “dá o que fazer”.
“Olhar o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor exerce” (EE. 224). S. Inácio utiliza esta expressão quando apresenta, na 4ª Semana dos Exercícios, a contemplação das aparições do Ressuscitado.
Consolar é o que define a ação do Ressuscitado, transformando a situação dos seus discípulos e discípulas: a tristeza se converte numa alegria contagiosa, o medo em valentia e audácia, a negação de Jesus em profissão de fé e martírio... Não se trata de um ato pontual senão de um “ofício” que definirá para sempre a atividade de seu Espírito no mundo.
Nas cenas evangélicas das aparições, o efeito da presença do Ressuscitado sobre os discípulos termina sempre em reconhecimento, em chamado e envio, em restauração de uma vocação e missão. Jesus ressuscitado exerce sobre eles um específico “ofício de consolar”, cujo efeito é iluminar o caminho pelo qual, em seu nome e com Ele, eles hão de percorrer. O “ofício de consolar” é a marca do Ressuscitado, é força re-criadora e reconstrutora de vidas despedaçadas. Jesus “ressuscita” cada um dos seus amigos e amigas, ativando neles(as) o sentido da vida, reconstruindo os laços comunitários rompidos, e sobretudo, oferecendo solo firme a quem estava sem chão, sem direção...
Essa nova Vida é capacidade de amar como Jesus amou; é “passar pela vida fazendo o bem”. Somos seres ressuscitados quando vivemos os mesmos critérios e valores de Jesus, engajados em seu mesmo projeto.
A “vivência pascal” leva a querer algo mais. É “antecipação criadora”; ela tem “rosto novo”. É o futuro que ainda pode ser convertido em “história nova”; é vida vivida com encantamento.
A “pedra pesada” da nossa impotência diante da dor, do fracasso e da morte, foi tirada pelo Mestre, que, diante de nós, chama-nos pelo “nome” e nos desafia a viver como ressuscitados. Nossa vida é uma experiência a acolher, uma aventura a amar e um mistério a celebrar. Rompido o túmulo, removida a pedra, resta caminhar...
Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz da Ressurreição nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do nosso cotidiano.
Pois vida é um contínuo despedir-se e partir; é inútil permanecer junto ao túmulo. Porque o ausente “aqui” está presente na “Galiléia”. E a Galiléia é o lugar do compromisso com a vida, a justiça e a paz.
Se quisermos que a nossa vida cristã tenha a marca da Ressurreição, o convite é este: “sair do próprio túmulo” para viver “encontros mobilizadores de vida”. É preciso remover as pedras da indiferença que foram soterrando a vida dentro de nós e romper os muros que cercam nosso coração; é necessário compreender que somos chamados a um compromisso diferente e mais profundo: destravar portas e janelas, sair da reclusão de nossas casas para entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para vislumbrar o “outro lado”; afastar a “pedra” da entrada do coração para poder viver os encontros com mais criatividade.
Textos bíblicos: Mt. 28,1-10 Jo. 20,1-9
Na oração: Para viver a partir do ser mais profundo, é preciso dedicar uma atenção especial ao próprio coração e aprender a regozijar-nos da maravilhosa vida de Deus em cada um de nós. Basta um repouso e o estar-presente para fazer acalmar a agitação interior e aproximar-nos da fonte da vida.
- recorde situações onde você foi o mediador da consolação de Deus;
- quais são os sinais de ressurreição no seu interior e no cotidiano de sua vida?
Uma inspirada Páscoa a todos(as)!
Pe. Adroaldo Palaoro SJ
05.04.23
“José de Arimatéia, tomando o corpo de Jesus, envolveu-o num lençol limpo e o colocou num túmulo novo, que mandara escavar na rocha.
Em seguida, rolou uma grande pedra na entrada do túmulo e retirou-se” (Mt 27,59-60)
Normalmente o Sábado Santo não merece maior atenção de nossa parte; acabada a vivência litúrgica da Sexta-feira Santa já pensamos no Domingo da Ressurreição. No entanto, o Sábado Santo reivindica uma reflexão e um lugar na nossa vida espiritual.
O Sábado Santo é um dia de penumbra: entre a sombra da Sexta-feira e a luz do Domingo. É o dia da ambigüidade, do luto e da possível boa notícia, da espera e da esperança. É o dia dedicado à solidão de Maria, o “dia não-litúrgico”. É o dia em que Jesus “desce” à morada dos mortos, na obscuridade mais absoluta. Ali não há visão de Deus; por isso, a Escritura a chama “inferno”.
É o dia do ocultamento de Deus, do silêncio de Deus Pai, da grande solidão de Jesus, do Filho perdido na obscuridade, na “terra de ninguém”. Jesus no túmulo simboliza o silêncio, a volta ao mais íntimo de si mesmo, abraçando a solidão sem se sentir solitário.
Sábado Santo é o dia da impotência, da injustiça, da desolação, da solidão; dia em que nos situamos diante da morte injusta imposta pelos “podres poderes”; dia precedido por traições, fugas, gritaria ameaçante, linchamento cruel e mentiroso; dia das esperanças rompidas, do medo que paralisa, do fechar de portas mentais e emocionais; dia incompreensível do silêncio, da “ausência” de Deus.
Sábado Santo é também um dia obscuro onde nos custa ver saídas ou futuro, um dia ameaçante carregado de dor e morte; dia das perguntas sem resposta: “por que isso? Como pode estar acontecendo isto? Onde está Deus? Portanto, dia de uma crise radical porque afeta e põe em questão nossas falsas esperanças, nossa onipotência e prepotência, nosso individualismo independente...
Podemos expressar três atitudes no Sábado Santo: a) Jerusalém volta à normalidade, nada mudou; b) permanecer no “por quê” isso aconteceu? c) despertar o “para quê” isso aconteceu?
É tempo de deixar-nos abalar pelas perguntas que não suportam respostas fáceis.
“O Sábado Santo é aquele intervalo único e irrepetível na história da humanidade e do universo em que Deus, em Jesus Cristo, compartilhou não só nosso morrer, mas também nosso permanecer na morte. Trata-se da solidariedade mais radical” (Bento XVI).
A virtude teologal da esperança nos convida a mergulhar no sentido profundo do Sábado Santo: foi o dia do silêncio de Deus Pai e o dia da descida de Jesus, morto e sepultado, “aos infernos da condição humana”. Foi o dia do Espírito Santo que não tinha “onde repousar” e fica como sem alento.
O inferno ao qual Jesus desceu é, em primeiro lugar, a morte eterna, a destruição sem saída, o frio cósmico... Mas é, em segundo lugar, a morte histórica que tende a dominar tudo, a morte que vem da injustiça, da indiferença, da prepotência e violência de muitos. Essa morte aparece mais claramente nos ambientes dominados pela cultura do ódio, da intolerância, do preconceito; faz-se visível nos traficantes da vida, na miséria e nos rostos famintos, vítimas de uma estrutura social e política injusta. É a morte dos fabricantes de armas, dos violadores e assassinos...; a morte nos cárceres, nas casas sem pão, nos caminhos sem saída, nos hospitais...
O “inferno” está em todos os lugares onde a vida é massacrada pelos prepotentes, onde a Terra é destruída pela ganância de alguns, onde a “lei do mercado” se alimenta do sangue dos mais pobres...
Sem a “descida” de Jesus aos infernos da história humana não existe redenção cristã, não see pode falar de autêntica páscoa. Se não nos comprometemos com os “condenados ao inferno” de nosso mundo, não poderemos entender o mistério do Sábado Santo.
Ao longo de toda sua vida, e de um modo especial através de sua morte na Cruz (solidário com os expulsos e condenados da humanidade), Jesus “desceu aos infernos” da pobreza, da exclusão, da violência... Neste “dia de silêncio” o Crucificado se faz solidário universal; nenhuma situação humana, por mais extrema que seja, ficou excluída dessa presença compassiva.
Indo mais além, a vivência do Sábado Santo também nos move a “descer” aos nossos “infernos interiores”, carregados de feridas, sentimentos negativos, traumas, fracassos... e experimentar a redenção no mais profundo de nosso ser.
“Nossa época se converteu sempre mais em um Sábado Santo: a obscuridade deste dia interpela a todos aqueles que se perguntam pelo sentido da vida, e de maneira especial nos interpela a nós que cremos. Também a nós nos afeta esta obscuridade” (Bento XVI).
O Sábado Santo parece um sábado vazio: cala a liturgia, cala a Igreja, calam os corações. O vazio provocado pela morte de Jesus nos deixa sem alento; sua ausência nos deixa sem palavras. Quando Aquele que é Palavra está ausente, que podem nos dizer as palavras?
Mas há um silêncio que está vivo; é o silêncio de quem nos criou no silêncio.
Um silêncio entendido como outra forma de presença de Deus.
Deus se revela não só na Palavra, também em seu Silêncio, em seu ocultamento.
Quando Deus cala e faz calar, fecha-se os lábios, entra-se no mistério, na mística. O silêncio do Senhor nos move a procurar, a escutar, a enxergar...
O silêncio de Deus deve ser respeitado, pois a Deus lhe dói a morte de seus fiéis (Sl. 116,15): o Pai não estará fazendo luto por seu Filho e por suas criaturas?
* Não será que o silêncio do Sábado Santo supõe o direito de Deus se calar?
* Quê Deus não tem direito de guardar silêncio?
* Quem somos nós para exigir de Deus que nos esteja falando continuamente?
Além disso, através da passagem do Sábado Santo realiza-se uma transformação radical de nossa imagem de Deus: não como um Ser Onipotente insensível, que desconhece a dor, senão como Amor vulnerável e vulnerado, que assume como Seu o sofrimento da humanidade.
Para que haja uma nova revelação de Deus, deve haver “interrupção”, “silêncio”, da antiga revelação.
O Sábado Santo nos faz “morrer” a uma imagem de Deus para abrir-nos a outra nova dimensão e compreensão de seu Mistério. Atravessada a prova dessa “ausência”, seremos levados à Outra Margem, na qual nossa relação com Deus ficará purificada e aprofundada.
Textos bíblicos: Mc. 15,42-47 Mt 27,57-61
Dia de silêncio: recordar os grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises...) onde não há razões, não há uma lógica... mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.04.23
Imagem: Corregio
“Junto à Cruz de Jesus, estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena” (Jo 19,25)
Na vida e missão de Jesus encontramos duas paixões: a primeira, é a paixão pela vida, pelo Reino, pelo compromisso em favor dos mais pobres e excluídos. Esta paixão é expressão de uma opção, assumida fielmente por Jesus até o fim.
A segunda paixão é a da cruz, imposta pelos poderes religiosos e civis. Ela não é fruto da opção de Jesus e nem faz parte da vontade do Pai. Ela é a visibilização da violência, do ódio, do fechamento frente à proposta de vida revelada por Jesus.
No grego, “cruz” é “staurós” e tem dois significados: de um lado, é patíbulo, instrumento de tortura imposta pelos romanos aos rebeldes do império; de outro, significa prontidão, preparado, mobilizado, firme, sólido, estar de pé, ser fiel até o fim...
Jesus não buscou a cruz do sofrimento, o patíbulo, a morte violenta... Ele buscou a cruz da fidelidade, da vida comprometida. Nesse sentido, a “staurós-cruz” é vida aberta, expansiva, oblativa, vida descentrada em favor dos outros. Ela não é um evento, mas um modo de viver, pois perpassa toda a vida de Jesus. “Cruz-staurós” é vivida a partir de uma causa: o Reino.
Assim entendemos a afirmação de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua ‘cruz-staurós’ cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Significa esvaziamento do próprio “ego” para viver em sintonia com os outros, sobretudo com os mais sofredores.
Infelizmente, a história da espiritualidade cristã confundiu “cruz-patíbulo” com “cruz-fidelidade” e acabou gerando uma espiritualidade do sofrimento, da mortificação, da renúncia... como se isso fosse agradável a Deus. A Paixão e Morte de Jesus foi “desconectada” de sua vida comprometida em favor dos pobres e sofredores, dando a impressão que só a “paixão de Jesus” é salvífica. Toda a vida de Jesus é salvação porque é vida que destrava vidas e abre para elas um novo sentido.
Com isso, privilegiou-se a “cruz da dor” desligada da “cruz da vida”, do compromisso com o Reino. Tal concepção desembocou numa vivência cristã intimista, farisaica, alienada, descompromissada...
Sabemos que o(a) seguidor(a) de Jesus quando vive a fidelidade à “cruz-staurós”, por causa do Reino, pode encontrar a perseguição, oposição e morte, como o próprio Jesus (a cruz patíbulo). Mas Jesus integra a “cruz patíbulo” e revela sua máxima solidariedade com todos os crucificados da história. Por isso, esta Cruz assumida é também visibilização da salvação.
Nos relatos da Paixão de Jesus encontramos a presença das mulheres que vivem a “cruz-staurós”, ou seja, vivem a fidelidade ao seguimento de Jesus desde a Galiléia. Enquanto os discípulos fogem, elas permanecem “de pé junto à Cruz”, numa atitude solidária e comprometida. A presença delas, certamente, foi um alívio para Jesus no momento trágico de sua vida: sentiu que não estava sozinho, pois suas amigas caminhavam com Ele, sofriam com Ele, morriam com Ele...
Os evangelistas nos falam das mulheres muitas vezes; o relato da crucificação revela suas presenças como testemunhas, mediadoras e verdadeiras discípulas. Os relatos de Mateus, Marcos e Lucas coincidem em indicar que as mulheres “contemplavam a cena de longe”. João, “que vê por dentro”, as coloca junto à cruz.
Estão ali, precedendo-nos no caminho, e não dizem nada. É seu corpo, são seus gestos, suas mãos, seus olhos, seu silêncio... que falam por elas. A linguagem delas é a linguagem da relação. Se elas podem permanecer nessas circunstâncias, é porque amaram muito. Elas nos falam de resistência e de fidelidade, de uma presença comovedora. Estão juntas, expostas a outros olhares, como comunidade de discípulas em torno a seu Mestre, que lhes ensina, agora sem palavras, uma sabedoria muito maior.
Em meio à impotência, não se afastam da dor experimentada ao ver sofrer a quem mais se ama, senão que se expõem ao olhar d’Aquele cujo rosto foi desfigurado.
* Quem são elas? De onde tiraram forças para permanecer ali quando outros se afastaram?
* Onde estas mulheres encontraram a força para segui-Lo por este caminho do Calvário? Que faziam elas ali, junto à cruz? Realizam alguma ação eficaz? Vão poder impedir a morte de um inocente?
Algumas destas mulheres são chamadas por seu nome próprio, ou são identificadas por vínculos de parentes-co, ou ainda por ter gerado e acompanhado outras vidas. São as mesmas mulheres que haviam seguido e servido a Jesus na Galiléia, e agora o farão também na Sua morte. Sobem com Ele ao lugar do abandono e da ingratidão, levantando uma ponte de proximidade e de solidariedade que cruza a totalidade da vida de Jesus. Nem um só instante afastaram seus olhares d’Ele. E o que para uns é escândalo e para outros é loucura, para estas mulheres é uma força de Deus impressionante.
Elas têm a coragem de permanecer ali, acolhendo o acontecimento em toda sua crueldade e profundidade; elas estão de pé, enquanto outros desistiram ou se afastaram assustados.
A partir deste momento elas vão aprendendo a conviver com a morte, com a d’Ele, com a sua e com a dos outros. Vão aprendendo, precisamente em meio à morte, a “celebrar a vida”, mesmo intuindo que uma lança também as atravessará.
Estas mulheres nos ensinam que “subir a Jerusalém” é assumir o conflito e a rejeição por defender os pobres e pequenos; é encontrar a perseguição devido ao compromisso em favor da vida; é saber que os grãos que caem em terra precisam morrer para germinar e multiplicar a vida.
E é, também, subir animando a outros.
Neste dia, a presença silenciosa das mulheres junto à Cruz nos ensina a com-padecer, a abrir o coração e a despertar a sensibilidade solidária diante do sofrimento e da dor humanas. Nós nos humanizamos quando nos deixamos configurar pela compaixão, afetar por ela, ser tocados por ela.
E deixar que a compaixão comande nossos atos e decisões. Com-paixão, padecer com: esse é o segredo da vida, vivida em plenitude. Solidarizar-nos com o outro naquela situação onde ele ou ela não nos pode retribuir, pois está reduzido apenas a uma dor sem limites, a um sofrimento sem explicações.
Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-nos do ego para deixar transparecer o que há de divino em nosso interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que foram presença compassiva e, à maneira das mulheres junto à Cruz, consumiram suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudaram os outros a viver; pessoas que revelaram a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem brilho algum, sem vozes que as proclamassem; foram como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
Isso foram as mulheres para Jesus: companheiras, solidárias, compreensivas no sofrimento. E serão elas as primeiras em experimentar e anunciar a “Vida vestida de presença”, na manhã da Ressurreição.
Texto bíblico: Jo 18,1-19,42
Na oração: Somos grãos de trigo na grande Seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com sentido.
Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos; só assim nossa vida terá a dimensão da eternidade.
- “Se a semente do trigo sou eu, a que devo morrer, para que a vida interior possa se expandir?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.04.23
Imagem: bigstock
“Estavam tomando a ceia”; “e começou a lavar os pés dos discípulos...” (Jo 13,2.5)
Esta foi a prática de Jesus que mais causou espanto e escândalo: a partilha nas mesas com pobres e pecadores. Literalmente, Jesus foi aquele que “virou mesas” de muitas pessoas e fundou uma outra mesa: mesa da partilha, da festa, mesa da fraternidade onde todos se sentem iguais... Mesa da vida.
Trata-se de uma mesa provocativa, questionadora, incômoda... que requer mudança de lugar, de menta-lidade, de atitude... Sair da própria mesa e caminhar em direção à mesa dos outros.
Comendo e bebendo com todos os excluídos, Jesus estava transgredindo e desafiando as formalidades do comportamento social e das regras que estabeleciam a desigualdade, a divisão, a exclusão...
Jesus revelava uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos... Ele não só transitou por outras mesas, mas instituiu a grande Mesa para a festa, a intimidade, a memória: a “mesa do Lava-pés e da Última Ceia”.
Ali, Ele “despoja-se do manto” (sinal de dignidade de “senhor”) e pega o avental (toalha, “ferramenta” de servidor). Jesus está no meio dos homens como Aquele que serve.
“Despojar-se do manto” significa “dar a vida” sob a forma de serviço.
Jesus coloca toda a sua pessoa aos pés dos seus discípulos. O Criador põe-se aos pés da criatura para revelar como ela é amada e como deve amar.
O texto joanino nos diz que Jesus realizou o “lava-pés” durante a última Ceia. Todas as refeições tinham o “lava-mãos”. Algumas ceias especiais tinham o “lava-pés” no início como sinal de acolhida e de hospitalida-de. Jesus realiza seu gesto enquanto a refeição está acontecendo. Certamente Ele estabeleceu uma relação muito estreita entre o comer e o servir, melhor dizendo, entre a refeição e o serviço solidário.
Até Jesus, os convidados para a refeição eram servidos e saiam satisfeitos. A partir de Jesus, os convidados para a refeição servem-se uns aos outros e saem da refeição para servir os outros. O dom recebido é partilhado entre os seus; mas isso não basta, ele precisa ser colocado à disposição de todos, a começar pelos mais carentes. O dom é, ao mesmo tempo, graça e missão.
O Evangelho de João, portanto, substitui a instituição da Eucaristia pelo Lava-pés. Audaciosa inovação que dirige o gesto eucarístico para a revolução das relações humanas: o poder do Senhor se converte em capacidade para servir; a autoridade não se exerce submetendo o outro, mas possibilitando que o outro “seja”.
Com este gesto Jesus des-vela uma imagem nova de Deus: o Todo-Misericordioso esvazia toda e qualquer expressão de poder e submissão entre os humanos.
Ninguém serve a Deus, a não ser do jeito de Jesus, isto é, lavando os pés, amando até o fim.
Nosso Deus não é prepotência, mas condescendência. É o Criador que se põe aos pés da criatura.
Nosso Deus é um Deus que “desce”, que se “inclina” para acolher.
Mistério da Encarnação: Deus abraçando e sendo encontrado junto aos pés dos seus filhos(as).
O “descendimento” do Senhor aos pés dos discípulos e fazendo-se servidor, transforma o status da servidão (“o servo não sabe o que faz seu senhor” - Jo. 15,15) em fraternidade (“não vos chamo servos, mas amigos – Jo. 15,15).
Deste modo, aqui se revela o verdadeiro senhorio de Jesus: a possibilidade de restabelecer a igualdade entre as pessoas através da superabundância de um amor que se derrama, sem reservas, para todos. Este gesto provocativo de serviço e despojamento d’Aquele que é “Senhor” desperta em cada seguidor(a) o desejo de considerar suas qualidades e capacidades como veículos de doação, não de poder ou de manipulação.
A partir deste “ousado gesto” já não se justifica nenhum tipo de superioridade, mas somente a relação pessoal de irmãos(ãs) e amigos(as).
O Lava-pés é gesto ousado que quebra toda pretensão de poder. Jesus viu claramente que o perigo mais grave que ameaça seus seguidores é a tentação do poder. Não há dúvida de que isso é o que causa o maior dano a todos, o que mais nos desumaniza, pois alimenta divisão, submissão, obediência infantil...
Por isso, com esse gesto, Jesus expressa que nunca quis agir como o superior que se impõe com poder; do mesmo modo, viu em semelhante comportamento uma conduta radicalmente inaceitável entre seus segui-dores. A relação que se estabeleceu entre os discípulos e Jesus não foi a de submissão a um poder que manda e dá ordens, mas a do “seguimento” que brota da experiência de sentir-se atraído e seduzido pelo “modo de proceder” do mesmo Jesus.
O gesto do lava-pés é repleto da “espiritualidade do cuidado”.
O cuidado é um diálogo de presenças, não só de palavras. São seres “vulneráveis” que se encontram.
O cuidado é expressão de ternura e delicadeza. É atenção às pessoas; é gesto de inclusão.
O cuidado é gesto amoroso para com o outro, gesto que protege e traz serenidade e paz.
O amor é a expressão mais alta do cuidado, porque tudo o que amamos cuidamos. E tudo o que cuidamos é um sinal de que também amamos. Cuidar é envolver-se com o outro ou com a comunidade de vida, mostrando zelo e preocupação. Mas é sempre uma atitude de benevolência que quer estar junto, acompanhar e proteger; é ter espírito de gentileza e ternura para captar e sentir o outro como outro, como original, e acolhê-lo na sua diferença.
Lava-pés não é teatro, mas modo habitual de proceder e de estar no mundo.
“Tal Cristo, tal cristão”: na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”.
“Vestir o coração” com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escu-
ta comprometida, da presença atenciosa, do serviço desinteressado...
O que é “tirar o manto?” Para nós o “manto” poderia ser nossa máscara, nossa redoma, nossa capa de proteção que nos distancia dos outros...; é tudo aquilo que impede a agilidade e a prontidão no serviço... “Tirar o manto” é a atitude firme de quem se dispõe a “arrancar” tudo o que possa ser empecilho para melhor servir; é mover-se, despojado, em direção ao outro; é optar pela solidariedade e a partilha; é reno-var a vontade de “incluir” o outro no nosso projeto de vida.
Precisamos “levantar-nos da mesa” cotidianamente. Há sempre um lar que nos espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Há pessoas que aguardam nossa presença compassiva e servidora, nosso coração aberto, nossa acolhida e cuidado amoroso... Ora, se não nos livrarmos do manto, tornar-se-á difícil realizar gestos ousados, criativos...
Sempre teremos “pés” para lavar, mãos estendidas para acolher, irmãos que nos esperam, situações deli-cadas a serem enfrentadas com coragem... A mesa da vida aponta para a direção da gratuidade, da alegria, do convívio, do amor e da comunhão. É preciso “sentar à mesa” para renovarmos as forças e redobrarmos a coragem de nos levantar e, na humildade, sem manto, servir com amor, do jeito de Jesus.“Levantar-nos da mesa” – “sentar-nos à mesa”: movimento de partida e de chegada; mesa que se projeta para o serviço; mesa que faz memória festiva; mesa do encontro e da partilha. Junto à mesa prolonga-se o gesto provocativo e escandaloso de Jesus. Isso é viver a Eucaristia no cotidiano da vida.
Texto bíblico: Jo. 13,1-17
Na oração: Não podemos esquecer que na origem daquilo que celebramos neste dia houve uma ceia de despedida, e que somos convidados não a um espetáculo, nem a uma representação, nem a uma confe-rência, mas a uma refeição fraterna. E, para participar da refeição, a primeira exigência é “ter fome”.
- “De quê tenho fome? De quê tenho sede?”
- Como posso vivenciar, no cotidiano, a beleza e o cuidado revelados no gesto do lava-pés?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.04.23
“Ao cair da tarde, Jesus pôs-se à mesa com os doze discípulos” (Mt 26,20)
Dá muito o que pensar o significado antropológico da mesa, que tem um papel tão central na construção das nossas humanidades e é realmente, na diversidade de suas formas, medidas e feitios, um objeto transcultural. Não é por acaso que Jesus colocou a mesa no centro da celebração da fé cristã.
Porque é que existe a mesa? Porque é que nos sentamos à mesa uns com os outros para tomar a refeição? Não será apenas por razões materiais ou econômicas, mas sobretudo por razões de vida. Sentamo-nos juntos em torno do alimento, porque nos alimentamos não só de comida, mas da partilha dos dons de cada um. Temos uma verdadeira necessidade da presença, da hospitalidade, da palavra, do cuidado e do afeto dos outros. À volta de uma mesa reconhecemo-nos melhor, alimentamo-nos mutuamente com um alimento invisível: o da relação (cf. José Tolentino – Elogio da sede).
Uma das chaves de compreensão da pessoa de Jesus é a relação d’Ele com a “mesa da refeição”. Ele revelou uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos. Ele não só transitou por tantas mesas, mas instituiu a grande mesa para a festa, a intimidade, a memória: a “mesa da Ceia Pascal”.
Jesus descobriu junto à mesa o melhor jeito de se encontrar para celebrar a vida, reconstruir relações mais saudáveis, romper as distâncias. Em muitas culturas, a mesa da refeição é, ainda, o lugar mais importante da casa. Para a “mesa da refeição” convergem todos os encontros; ela é o centro para onde se voltam mentes e corações e não apenas estômagos vazios; ela se torna o grande palco da vida e, nesse palco, todas as histórias pessoais e coletivas são recontadas, revividas e revitalizadas, dando sentido à vida cotidiana.
Em cada encontro uma surpresa, uma riqueza revelada para os que se aventuram tomar parte dela. O “pôr-se-à-mesa” é mais do que aproximar-se da fonte da alimentação. É procurar a comunhão, a união, o convívio. Por isso, os que se assentam junto à mesa são “comensais” (companheiros de mesa).
A mesa tem o poder de romper fronteiras e hierarquias, pois quem dela se aproxima é bem-vindo por ser pessoa, gente, e não por ostentar títulos, status... A mesa é sempre oblativa, acolhedora, congrega as diferenças, quebra as hierarquias sociais...
A mesa funciona, então, como oportunidade ou lugar privilegiado, onde se elabora e se vive um encontro de profundidade. A mesa faz a comunidade, reforça a fraternidade, intensifica a amizade. Podemos afirmar que, partindo da “espiritualidade da mesa”, em torno do gesto de comer em comum, desvelamos um “modus vivendi” de um determinado povo, sua vida, seus hábitos e seu jeito de ser.
A nossa conduta numa refeição revela também o nosso agir social. Nesse encontro, nós comensais, vamos tecendo relações sociais de diálogo, de projetos, de compromissos...
Em última instância, o que nos reúne junto à mesa não é o simples fato de poder comer; existe, antes, algo que nos mantém unidos: um ideal, uma amizade, um laço de família, uma função comum, um aconte-cimento... Supõe-se que reine entre nós um conhecimento mútuo, ou ao menos um desejo profundo de estreitar laços de amizade.
Nós nos aproximamos da mesa como quem está diante de um território sagrado, porque sagrados são os alimentos e quem deles se alimenta.
À “mesa da refeição” encontramos pessoas abertas, lúcidas de seu momento, que não se deixam abater pelos fracassos e nem mesmo pelo sofrimento. São pessoas capazes de partilhar, de falar de si, de suas alegrias, conquistas, sonhos, mas também de suas dores, desânimos e cansaços. Essas pessoas buscam, junto à mesa, alimento para a vida; elas têm fome de algo para além do pão da mesa. “Não quero a faca, nem o queijo. Quero a fome” (Adélia Prado).
No relato da Última Ceia, Jesus nos convida a adentrarmos no território sagrado, consagrado, chamado “mesa da refeição”. Tão rica é essa mesa que sua espiritualidade, vista como manancial da vida, não exclui nenhum momento: situações tristes, felizes, momentos de sofrimento, de luta, de vitória...
Nesse espaço, onde o Eterno quer habitar, é que encontramos o bálsamo e o alívio para o nosso corpo e nossa existência psíquica e espiritual. Nessa fonte sagrada, o sofrimento pode ser compartilhado, a tristeza transformada em alegria, as trevas em luz, o desejo em realidade, a esperança pode ser reacendida.
É nessa mesa fecunda de alimentos que o Sagrado irrompe em meio aos nossos esquemas prévios, nos fazendo diferentes, separados da torrente massificante do dia a dia.
Ela nos sacia para voltarmos ao cotidiano, convictos de que não vivemos fechados nele, mas somos seres de passagem, em constante êxodo: “passar” da mesa de refeição como lugar onde matamos nossas fomes à mesa de refeição como espaço do sagrado. A mesa, com seus cantos e encantos, tem uma mística; ela carrega, nas suas entranhas, a força de uma peregrinação, o impulso para fazer caminho.
A mesa é ponto de chegada e ponto de partida; é “lugar” de celebração e de envio, de festa e de missão.
Ao redor da mesa nos movemos, somos, existimos e nos descobrimos para além de nós mesmos.
É ela que nos humaniza, nos expande em direção aos outros, nos faz solidários e sensíveis, sobretudo àqueles que não tem acesso à mesa da vida (os famintos, os pobres, os excluídos...)
Há personagens do Evangelho cuja notoriedade ultrapassa as margens do texto onde são recolhidas suas atuações. São imagens históricas de alcance universal, tais como Lázaro, a Samaritana, Jairo, Maria Madalena, Zaqueu, Pedro... Junto a estes personagens de primeira fila, encontramos outros, anônimos e sem protago-nismo, presentes nas estantes menos visíveis do relato evangélico. Um dos mais desconhecidos é o homem que emprestou sua casa para que Jesus celebrasse a Páscoa com seus discípulos.
Na maioria das vezes ele passa desapercebido. Sua passagem pela cena é vista, mas não lhe é dada atenção. Uma aparição tão passageira no texto que a maioria dos leitores não se fixa nele, apesar de ser citado nos três primeiros evangelhos. Por isso, ele se revela como inspirador a todos nós neste dia.
O saber estar “à sombra” para não fazer sombra a outros, a atitude de acolhida, a preocupação pelo bem-estar dos demais, a prontidão e a disponibilidade em abrir sua casa, o agir com a liberdade de quem sabe o que faz, colocando-se à inteira disposição dos outros, com total generosidade: estas são as qualidades com as quais o “um certo homem da cidade” entrou em sintonia com o desejo de Jesus em celebrar a Páscoa com seus discípulos. No seu anonimato ele deixa transparecer sua “existência eucarística”: ele nos revela uma presença surpreendente e servidora, presença que aponta para uma outra presença, a de Jesus.
Na realidade, ele foi o verdadeiro discípulo servidor, dando sua contribuição decisiva ao mistério da salvação. Presença anônima, mas comprometida; presença que é “música calada” no seu cotidiano, uma presença que se manifesta na ausência de recompensa ou de interesse próprio.
Textos bíblicos: Mt 26,14-25
Na oração: É urgente sermos criativos o suficiente para superarmos os desafios, na esperança de que venha o despertar da “nova mesa”, com gosto de pão, de vida fraterna, de compromisso...
Mesa criativa, solo de onde brota o alimento material, emocional, psíquico e espiritual em suas múltiplas formas, cores, aromas e sabores do Reino do Pão e da Festa da Vida.
- Quê lugar tem a mesa da refeição no cotidiano de sua vida familiar, comunitária...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.04.23
“Quando Jesus entrou em Jerusalém a cidade inteira se agitou, e diziam: ‘Quem é este homem?’
Jesus participava do sonho de todo o povo de Israel que via em Jerusalém a cidade da promessa de paz e plenitude futura, lugar da acolhida, ambiente fecundo onde ninguém passaria fome, pois todos teriam o direito de participar da “grande mesa do pão”. A tradição profética havia anunciado uma “subida” dos povos, que viriam a Jerusalém para iniciar um caminho de comunhão e justiça e adorar a Deus no Templo, que estaria aberto para todos. Toda a cidade se converteria num grande Templo, lugar da inclusão e da partilha, onde se cumpririam as esperanças dos povos.
Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade..., desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.
Jesus entrou em Jerusalém rodeado pelo povo simples. Este povo, escravo e oprimido, o aclamou porque viu n’Ele uma luz de esperança, de vida, de libertação; escutou seus ensinamentos e viu seus feitos durante alguns anos; sentiu-se tocado pelas palavras de vida, de justiça, de amor, de misericórdia, de paz...
Também viu seus gestos de cura dos enfermos, de defesa dos fracos, de oferta de alimento aos famintos, de reabilitação dos desprezados, de acolhimento dosmarginalizados, de denúncia dos opressores...
Jesus quis continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galiléia; quis também humanizar esta cidade para que ela fosse sol de justiça e paz para todos os povos.
Esta é a cidade que Deus deseja: uma praça da alimentação, uma mesa celebrativa para todos. A praça é de todos e todos podem ter acesso a ela, todos podem circular livremente, criar relações e convivência, fazendo a experiência de serem aceitos e reconhecidos como humanos.
A mesa, no centro da praça, é lugar de hospitalidade, de festa e de memória, lugar da partilha do pão e dos frutos da terra. Ali ninguém passa fome.
Compartilhar a mesa é o grande símbolo da convivialidade, da reconciliação e da inclusão. O ritual da mesa rompe as distâncias e garante a proximidade, estabelece o estreitamento dos vínculos com o diferente. Junto à mesa, cada um se coloca diante do outro, não importando as diferenças de vida, de opções. A comunhão acontece por meio de um gesto que não é de poder, mas de esvaziamento, não é de apropriação, mas de partilha, não é de fechamento, mas de abertura das mãos que acolhem, que distribuem...
A mesa da refeição se torna lugar de humanização do ser humano. Espaço de verdadeira reserva de humanidade. Muitos são aqueles que sabem abrir as mãos, partir o pão, saciar a fome do irmão.
Com o gesto do “re-partir” se estabelece uma rede de relações entre as pessoas que aceitam conspirar, co-inspirar, o mesmo ar, o mesmo sonho, a mesma causa.
E nada fica como estava... encantamento que faz ressuscitar a vida que já estava morta; refeição que transforma os desertos em mananciais de água.
Fazer memória da entrada de Jesus em Jerusalém pode ser uma ocasião privilegiada para transitarmos por nossa Jerusalém interior, um bom espaço onde encontrar a nós mesmos, identificar-nos com os diferentes persona-gens e sentir-nos parte daquela história. O relato da Paixão de Jesus revela ser também a história de cada um de nós. Porque, afinal de contas, é uma história que aconteceu no passado e continua acontecendo também hoje em nossa interioridade. E é a partir do hoje que nós temos de vivê-la, numa atitude contemplativa. E é a partir de nós, e não a partir daqueles personagens de então, que teremos de assumi-la.
Vamos, então, com Jesus montado num jumentinho, transitar pelas ruas de nossa Jerusalém interna, reco-nhecendo os diferentes personagens que ali atuam e que significam diferentes atitudes vividas por cada um de nós. Cada personagem do evangelho é um espelho onde nos vemos.
Jerusalém não é só uma cidade geográfica, situada na Palestina. Domingo de Ramos nos motiva a fazer o percurso em direção à nossa Jerusalém interior. Mas, para descer em direção a esta cidade é preciso des-pojar-nos da vaidade, do prestígio e do poder, montado no jumentinho da simplicidade.
Nossa Jerusalém interior é também lugar das contradições e ambiguidades; ali dentro experimentamos a trama de relações conflitivas, ali nos deparamos com as angústias, carências e dúvidas...
É preciso cuidar o coração da nossa “Jerusalém interior”, esvaziá-lo, limpá-lo, aquecê-lo, transformá-lo em humilde e acolhedor espaço, para que o Espírito do Senhor possa aí descer e habitar, transmitindo-lhe vida, luz, calor, paz, ternura...
É preciso voltar a pôr o “coração de Deus no coração de nossa Jerusalém”. Faz-se necessária uma opção corajosa, como Jesus, para entrar e estar no interior de nossa Jerusalém, para aí descobrir o verdadeiro coração de Deus, que pulsa no ritmo dos excluídos, dos sofredores, dos sedentos.
A Campanha da Fraternidade deste ano quer despertar em nós uma sensibilidade solidária com aqueles que são vítimas de uma estrutura social e política que concentra os bens nas mãos de poucos, de maneira especial os alimentos. “Fraternidade e fome” denuncia a vergonhosa chaga social dos famintos em um país que é grande produtor de alimentos. A fome clama aos céus e ressoa em nosso coração; ela é expressão de uma profunda incoerência dos cristãos que se dizem seguidores d’Aquele que veio multiplicar os alimen-tos. Estamos muito distantes das primitivas comunidades cristãs que “tinham tudo em comum, partiam o pão pelas casas com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46).
Nosso coração deve se revelar como “praça da alimentação”.
O lema da Campanha da Fraternidade deste ano – “dai-lhes vós mesmos de comer” – nos revela que nosso interior é uma reserva de “alimentos humanizadores”: compaixão, desejos nobres, dons originais, criatividade, espírito de busca... São alimentos que plenificam e dão sabor à nossa vida. É preciso extraí-los e multiplicá-los para que a fome de sentido e de esperança das pessoas seja saciada. Ninguém tem o direito de armazenar nos seus celeiros o “trigo” doado por Aquele que é fonte de todo “alimento salutar”. Afinal, alimento guardado é alimento que apodrece. Vida partilhada é vida abundante.
“Dai-lhes vós mesmos de comer”: este apelo nos inquieta, ativa nossa sensibilidade e nos faz ampliar a visão em direção à grande multidão de famintos, presentes em nossas cidades: famintos de alimento, de proximi-dade, de justiça, de comunhão, de afeto...
Para Jesus, uma humanidade constituída por nações, cidades, instituições ou pessoas comprometidas em alimentar os famintos, vestir os desnudos, acolher os imigrantes, atender os enfermos e visitar os presos, é o melhor reflexo do coração de Deus e a melhor concretização de seu Reino.
Esta é a utopia do Reino; tudo está reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os produtos do trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas, numa relação harmoniosa entre elas mesmas e com Deus, sem exclusões, competições nem privilé-gios. Isto é possível porque todos se deixam afetar pelo dom do mesmo Reino que cresce já no coração de todos.
Texto bíblico: Mt 21,1-11
Na oração: procure descobrir os sinais do Reino de Deus no meio da aparente confusão de sua Jerusalém interior: lugar da partilha? espaço aberto e acolhedor?...
- Como re-criar, no coração da cidade interior, o ícone da Nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade?
- Você já parou para pensar na abundância de recursos e nutrientes em seu coração e que poderia compartilhar com os outros? Em seus celeiros interiores há abundância de alimentos que humanizam.
- “Diga-me como você habita sua cidade interior e eu lhe direi como é sua presença no seu espaço urbano”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
31.03.2023
“Eu Sou a Ressurreição e a Vida” (Jo 11,25)
O tempo quaresmal caminha para o ponto culminante: a vivência do Mistério Pascal, a celebração da Vida plena, sem as amarras e os condicionamentos que travam o fluir de nossa vida. Tal como um sentinela, situado numa posição estratégica, já estamos vislumbrando no horizonte os sinais da Páscoa.
Por isso, a liturgia deste domingo nos traz um relato inspirador, onde Jesus se revela como a Porta da Vida. Cruzar essa porta é apelo Seu, mas é decisão nossa empurrá-la suavemente para dentro e avançar em direção à vida que, a partir do mais íntimo, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude.
No contexto anterior à ressurreição de Lázaro aparece de novo o tema das obras, desta vez em relação com o verbo crer: “Se não faço as obras do meu Pai, não acrediteis em mim. Mas, se eu as faço, mesmo que não queirais crer em mim, crede nas minhas obras, para que saibais e reconheceis que o Pai está em mim e eu no Pai” (Jo 10,37-38). Na cena deste domingo, Jesus vai realizar a obra por excelência do Pai que é comunicar Vida, destravando-a das faixas e tirando-a do túmulo da morte.
A beleza e a sabedoria do relato deste 5º. domingo da Quaresma consistem em integrar, na pessoa mesma de Jesus, uma dupla afirmação: “Jesus chorou” e “Eu sou a ressurreição e a vida”.
Essa é, justamente, nossa condição humana: somos seres frágeis, sensíveis, a quem nos afeta o que acontece e, ao mesmo tempo, somos Vida que se encontra sempre a salvo. Nós nos percebemos como pura necessida-de e carência – portanto, vulneráveis -, mas, ao mesmo tempo, somos plenitude à qual nada lhe falta.
Como Jesus, somos, ao mesmo tempo, sensibilidade – por isso choramos -, e somos Vida. E isto é o que na tradição cristã se expressou com o termo “ressurreição”.
Assim fez Jesus em Betânia: mostrou sua vulnerabilidade humana frente o amigo “que dorme”.
A morte será sempre uma história de dor e lágrimas. Quem não experimentou dor diante do sofrimento e morte de um ser querido? Quem não se sentiu, como Marta e Maria, em muitos momentos?
Também Ele sente os golpes da vida, sente a dor de quem perde um irmão e se faz solidário.
O sofrimento pode nos despertar para a dimensão de profundidade da realidade e de nós mesmos. Mas necessitamos passar por um processo de transformação para que o sofrimento e a dor nos abram ao Mistério e não nos afundem no desespero. Jesus vai ajudar Marta e Maria a passar por este processo.
Voltar à casa de seus amigos, num momento em que eles estão tão feridos, supõe também a Jesus deixar-se ferir. Algo terá Ele que perder para dar-lhe ao amigo. A amizade nos faz vulneráveis: “Mestre, ainda há pouco os judeus queriam apedrejar-te, e agora vais outra vez para lá?”
Jesus vai abraçar a perda de seu amigo até o fundo; e quando a dor e a perda se abraçam, deixam de ser nossos inimigos. “Ficou interiormente comovido e se aproximou do túmulo”, que um dia acolherá também seu corpo. Percorreu assim o caminho que depois percorreriam as mulheres depois de sua morte.
As perdas, a dor, a morte, aproximam uns dos outros. Marta e Maria já não estão numa relação de compe-tição nem de rivalidade e enviam, juntas, uma mensagem a Jesus. Mensagem que revela uma confiança profunda nas possibilidades do amor: “Senhor, aquele que amas está doente”. Não lhe dizem “nosso irmão”, porque querem vinculá-lo a Jesus.
A amizade leva-as a crer nas possibilidades latentes no amigo, em seu potencial ilimitado, em sua capacidade de amar e ser amado, em toda a novidade que quer irromper nele.E é nesta situação de vulnerabilidade onde Marta se deixa ordenar e faz sua aprendizagem de verdadeira discípula. Que foi aprendendo Marta desde aquela vez que pedia ajuda à sua irmã? Agora é uma mulher que cresceu e que se atreve a expressar uma petição maior, não mais para si mesma, mas para seu irmão, e diz a Jesus: “Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido... Mesmo assim, eu sei que tudo o que se pede a Deus, Ele te concederá”.
Este contato com seu amigo Jesus, num momento em que ambos compartilham a dor pela perda da pessoa querida, vai fazer Marta amadurecer. Daí em diante será uma mulher desperta, capaz de despertar a outros, e por isso pode dizer à sua irmã: “O Mestre está aí e te chama”.
Jesus foi “traído” pelo seu afeto. Aquele que é o Senhor da Vida, o vencedor da morte, tem um coração que ama como o coração do irmão mais fiel, do pai mais sensível... Jesus é atingido pela dor, é agitado por uma perturbação que brota de dentro dele mesmo e que não consegue controlar; a causa da sua emoção é a presença trágica da morte nos que o rodeiam, mas também com a sua morte iminente, que será devastadora.
Diante da morte, todos sentimos nossa impotência. Queremos que o enfermo fique curado e viva. A ciência médica hoje pode ampliar alguns anos de nossa vida, mas no final a morte termina vencendo o enfermo.
No texto evangélico deste domingo, Jesus, na força do Espírito, comanda a ação: pede às pessoas que afastem a pedra e que soltem as amarras de Lázaro, para que ele possa andar. A ação de Jesus é expansiva pois mobiliza as pessoas para que, por meio de sua cooperação, a vida seja destravada.
A vida com as amarras da fome, da exclusão, da violência... não pode ser chamada de vida. Diante de uma sociedade que se especializa em impor pesadas pedras e faixas imobilizadoras, defender a vida é caminhar na contramão de tudo que nos diminui como seres humanos. Há ainda aqueles que vivem a resignação do “quarto dia”, o dia da morte da esperança (para o judeu, o 4o. dia representava o começo da decomposição do corpo). Essas pessoas também precisam ser desamarradas da falta de perspectivas, da falta de esperança, da descrença na vida, da falta de fé n’Aquele que venceu para sempre a morte com todas as suas amarras.
Na 1ª. leitura deste domingo, Deus nos fala através do profeta: “Ó meu povo, abrirei os vossos sepulcros” (Ez 37,12). É uma maneira metafórica de falar. Mas anuncia o cumprimento da maior esperança humana, a vitória sobre a morte. O Deus que nos tirou do nada pode também nos tirar da tumba. É a força de seu amor, a força de seu Espírito.
E não devemos pensar só na morte biológica. Há muitas maneiras de morrer antes dessa morte. Cada um pode conhecer como se chama seu sepulcro (sepulcro da rotina, do medo, do desespero, da perda de fé, da tristeza, do ódio e da intolerância, do preconceito...). E poderíamos nos referir a sepulcros dos vícios, das escravidões íntimas, do consumismo desenfreado, da ignorância, do negacionismo, da falta de liberdade... E, sobretudo, poderíamos nos referir ao sepulcro gigantesco e vergonhoso da miséria e da fome, provocadas pela injustiça e falta de solidariedade.
Todos são sepulcros construídos por nós mesmos. Quem nos livrará de nossos sepulcros! No encontro com Aquele que é Vida, somos movidos a arrancar nossas faixas que impedem nossos movimentos e sair de nossos próprios túmulos.
Crer na Ressurreição é já viver como ressuscitados.
Texto bíblico: Jo 11,1-45
Na oração: Em companhia d’Aquele que é Vida, desça em seu túmulo interior e visualize as “faixas” que estão travando sua vida.
- Deixe ressoar o grito de Jesus: “............ vem para fora!”
- “Viver como ressuscitados(as)”: esta é a paixão que inspira todo(a) seguidor(a) de Jesus. Deixe-se iluminar, leve a luz da vida nas suas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos de seu cotidiano.
Páscoa é ter diante de si os desafios da vida.
Rompido o túmulo, resta caminhar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.03.2023
Imagem:
The Raising of Lazarus
Andrea Vaccaro (Italian, 1604-1670)
“Enquanto estou no mundo, Sou a Luz do mundo” (Jo 9,5)
A cura do cego de nascença (Jo 9) revela-se como uma instigante narrativa que requer ser lida em seu contexto imediatamente anterior; ali encontramos uma discussão de Jesus com os judeus e que começa com esta afirmação: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12). Frente à cegueira cultural-religiosa, Jesus se mostra como Luz na vida.
O relato deste domingo nos põe em contato com Jesus que traz Luz-Vida. Ele não só se revela como Luz, mas, através de seu “toque”, ativa a luz presente naquele que não podia ver a luz do dia. Como no caso da samaritana, é Jesus quem toma a iniciativa, mas o interessado deve responder pessoalmente.
Todo o relato é simbólico; as alusões ao batismo são constantes. A Igreja primitiva chamava o batismo “photismós”, que significa “iluminação”. Trata-se de indicar aos catecúmenos o caminho que precisam percorrer antes do batismo.
Este cego de nascença representa toda a humanidade, porque, em certo sentido, todos somos cegos enquanto não acolhamos Aquele que é Luz. Esta cegueira é a que impede ver a verdade que nos fará livres. Somos cegos quando nos fechamos em nossa mentalidade, critérios, ideologias... Somos cegos quando nos petrificamos no fanatismo, na intolerância e na resistência em perceber a luz que habita naquele que pensa e sente de maneira diferente.
“Jesus ia passando, quando viu um cego de nascença”. O “passar” é uma evocação do caminho do Êxodo, caminho de liberdade. No deserto, Deus é o “clarão” que orienta e move o povo de Israel a fazer a travessia da terra da escuridão para a terra da liberdade. Jesus é Luz que “passa” em meio ao mundo da marginalidade e da exclusão, reacendo a luz da esperança e da vida em cada pessoa.
Jesus é a “Luz que toca”; aqui aparece, com muita força, o símbolo do contato físico. O contato nos faz despertar. Existe a idade da palavra, a do ouvido, a do olhar..., mas neste momento Jesus se detém na idade do contato; é a idade da comunhão, a idade da ternura materna. O caminho do tato é o da mais profunda comunhão. Jesus tocava pessoas feridas, quebradas... e sua gestualidade prolongava o sexto dia da Criação.
Sabemos pouco da riqueza de nosso contato. O contato nos cura. É um caminho de comunicação maravi-lhoso. Na enfermidade, muitas pessoas não buscam mais que o contato.
Um verdadeiro contato nos envia sempre para dentro. Não é o contato da pele, mas o que nos põe em marcha para nosso interior.
Existem forças reconstrutoras presentes em todos nós. Através de suas palavras e do seu toque, o Mestre da Galiléia restabelece o contato do cego com a fonte, com os seus recursos interiores. Esses recursos existem em cada pessoa, e cada um pode aproveitá-los. Através do encontro com Jesus e do seu toque, as pessoas descobrem os recursos interiores que devem ser mobilizados. Ele confia nas forças de autocura do ser humano; não precisa fazer tudo sozinho.
No encontro com Jesus, o doente entra em contato consigo mesmo, com as fontes interiores que o Pai lhe deu: estas são as fontes das forças de autocura, de dons e habilidades, de força e de esperança.
Jesus não explica, não faz uma teoria sobre a origem da cegueira (quem pecou?). Realiza algo muito maior: ajuda o cego, afasta-o da cidade alta (dominada por sacerdotes e escribas) e o convida a descer à fonte da vida, abaixo, no manancial de Siloé, que é sinal profético de abundância e de iluminação futura.
Este cego é o homem que não consegue ver desde o nascimento; não se trata de pecado, mas da própria situação vital, da cegueira humana que se expressa, de um modo claro, neste ser humano. Há muitos que lhe querem ensinar a ver (os mestres da lei), mas lhe deixam na cegueira. É uma cegueira que começa sendo externa (não ver as coisas, não compreender o sentido da vida) e que termina sendo interior (não saber quem é, em quem pode confiar, viver sendo manipulado por outros).
Podemos, então, afirmar que o relato de João é um “texto de rebelião”, um texto que denuncia toda religião que aprisiona as pessoas nas trevas do sentimento de culpa, de medo e de impotência. É o testemunho de Jesus que se rebela contra aqueles que querem manter as pessoas cegas, travando a verdadeira identidade delas que se revela como participação na luz divina, presente no interior de cada uma.
Contra tal situação Jesus diz ao cego de Siloé que se rebele, que não permaneça cego à beira do caminho, que veja por si mesmo, que decida, que confesse sua nova liberdade mesmo que isto lhe custe a rejeição das autoridades religiosas, inclusive de seus próprios familiares.
Junto ao cego de nascença se faz visível o pecado de todas as pessoas que não lhe ajudam, que não querem entendê-lo, que o submetem às suas leis e conveniências. Pois bem, Jesus não consola o cego (em sentido superficial), mas lhe diz para ser ele mesmo, que assuma sua própria vida, que desça à água, que se purifique... Jesus mesmo põe barro nos olhos do cego (terra com saliva, alento vital) e lhe diz que vá, que veja, que não tenha medo, que assuma seu destino... Jesus não cria dependência; ativa no cego sua autonomia para que ele seja autor de sua própria vida, inclusive correndo riscos de ser rejeitado.
No fundo, Jesus pede ao cego que se rebele contra uma lei de cegueira, que o obriga a mendigar, sob a “caridade” dos mestres cegos que vivem à custa da cegueira dos outros. Pede-lhe que se rebele, que deixe seu lugar de mendigo, que saia da margem e que recupere sua verdadeira identidade. Trata-se de uma rebelião para a liberdade, para a vida. É uma rebelião que conduz ao encontro com Jesus que é simplesmente “filho do homem”, o homem em plenitude.
O cego passa a crer em Jesus como “filho do homem”, ou seja, como humanidade libertada e libertadora.
Pouco a pouco, o mendigo vai ficando sozinho. Seus pais não o defendem; os dirigentes religiosos o expulsam da sinagoga. Ao ver a realidade com o novo olhar que Jesus lhe ofereceu, já não cabia dentro da sinagoga, lugar de uma atrofiada visão de Deus e da vida.
O que era cego experimentou o amor gratuito e libertador. Para ele é impossível negar o que pessoalmente viveu. Do mesmo modo que Jesus teve que sair do templo, o cego que recebeu a luz, foi expulso da sinagoga.
Jesus não veio colocar uma pequena vela sobre nossas cabeças, mas acender nossa existência humana para que brilhemos a partir de nosso interior, com luz própria. Cada um de nós carrega dentro o combustível inextinguível da luz, colocada por Aquele que é Luz e que ilumina constantemente nossa existência.
Ao despertar, caímos na conta de que não somos o “ego inflado” criado por nossa mente, mas o “eu sou” universal, numa identidade compartilhada com todos.
A luz da treva é sedutora, mentirosa e assassina. Todos levamos dentro resquícios de trevas, espaços onde ainda não deixamos entrar a luz.
Por um lado, temos a luz, a visão e a vida. Por outro, as trevas, a cegueira e a morte. No meio, a longa gestação da luz dentro de nós, que pode progredir na visão de Deus e do mundo como o cego curado, ou que pode crescer também na cegueira das trevas como as autoridades que negam o evidente. Este é o dilema: “Ver ou perecer” (cf. Benjamin Buelta, sj).
Texto bíblico: Jo 9,1-41
Na oração: Aquele(a) é capaz de olhar o próprio interior, sensibiliza-se para olhar de modo dife-rente a realidade que o cerca.
Espeleologia é a ciência das cavernas.
A oração é a “espeleologia” que se dedica a explorar as cavernas do “eu profundo”: nossa dimensão iluminada.
O “eu profundo” é um emaranhado de cavernas iluminadas por uma luz que se insinua por frestas estreitas, cavernas que vão ficando cada vez mais fundas e escuras. Lugar do silêncio e da escuta atenta.
Ao entrar na caverna o medo se manifesta; são poucos os que tem coragem de fazer este percurso. Lá dentro tudo é diferente. As vozes se transformam em sussurros; a pupila dos olhos aumenta; também cresce o assombro diante das novas descobertas.
Aqui nos descobrimos sozinhos. Há solidão e silêncio, habitados por uma Presença iluminante e iluminadora que tudo harmoniza, integra e pacifica. Aqui está enraizada nossa identidade (“sou eu”), a verdade do “eu profundo” onde as palavras cessam e podemos ouvir uma serena melodia.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.03.23
“E a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna” (Jo 4,14)
Nestes próximos três domingos da Quaresma a liturgia nos apresenta três grandes relatos do evangelho de João: a samaritana, o cego de nascimento e a revivificação de Lázaro.
A expressão “Eu sou”, característico do quarto evangelho, se encontra nestas três cenas: “eu sou a Água viva”, “eu sou a Luz”, “eu sou a Vida”. São imagens-símbolo que des-velam e nos ajudam a compreender a verdadeira identidade de Jesus; ao mesmo tempo, são imagens que também revelam nossa identidade. É no encontro destas duas identidades que se fundamenta o sentido profundo do seguimento de Jesus.
A Quaresma se apresenta como momento oportuno para enraizar nossa vida n’Aquele que “morreu de tanto viver”; afinal, somos seguidores de uma Pessoa e não de uma religião, de uma doutrina... Seguir Jesus implica tornar visível em nossa vida o modo de ser e viver d’Aquele que foi o “biófilo”: amigo da vida.
O relato deste domingo – encontro de Jesus com a samaritana – é uma verdadeira catequese, que nos convi-da ao seguimento d’Aquele que é a Fonte da Vida. Nem no templo, nem em Jerusalém, nem em nenhum outro lugar se pode viver o verdadeiro culto, que se revela como encontro e identificação com Jesus.
Muitas vezes, o que entendemos por prestar culto é apenas idolatria: a tentativa de domesticar e manipular Deus segundo os nossos interesses.
Uma mulher da Samaria chega a um poço para tirar água, alheia a tudo o que ali a espera e distraída na trivialidade de sua vida cotidiana que não se abre ao imprevisível: vai só buscar água com o cântaro vazio para retornar à sua casa com ele cheio. Não há mais expectativas, nem mais planos, nem mais desejos.
Mas o imprevisível está lhe esperando na pessoa daquele galileu sentado na beira do poço e que inicia uma conversação com ela sobre coisas banais, talvez para não a assustar: falam de água e de sede, de poços e de velhas rixas entre os povos vizinhos, coisas de todos os dias. Repentinamente, irrompe a linguagem “das coisas do alto”, o dom, uma água que se converte em manancial vivo, a promessa de uma sede pacificada para sempre, um Deus em busca do ser humano, fora dos espaços estreitos de templos e santuários.
E, no final da cena, o cântaro que era símbolo da pequena capacidade que está disposta a oferecer, fica esquecido junto ao poço, agora já inútil pois não pode conter uma água viva.
A sede da samaritana – e a de Jesus – é a mesma sede de todo ser humano: é insatisfação radical que não pode ser saciada por nada humano. A sede representa as necessidades e aspirações fundamentais do ser humano: sede de sentido e de plenitude, sede de comunhão e de encontro, sede de vida...
Somos pessoas-sede!
A sede é uma água que nos habita e nos dá vida. A sede é fundamental, essencial. O nosso coração é um «interminável reservatório de sede. Sede de amor. Sede de verdade. Sede de reconhecimento. Sede de razões de viver. Sede de um refúgio. Sede de novas palavras e de novas formas. Sede de justiça. Sede de humanidade autêntica. Sede de infinito» (José Tolentino Mendonça, Elogio da Sede).
Como um bom pedagogo, Jesus acompanha a samaritana a descobrir o desejo de água fresca, a saudade humana de amor e felicidade.
Em termos orantes, o ser humano, todos nós, temos “sede do Deus vivo” (Sl 42,3), que brota de nossa terra ressequida, rachada, sem água: suspiramos como a corça suspira pelas torrentes de água, por Deus. Só o Senhor nos conduz para as fontes tranquilas (Sl 22).
Neste precioso e profundo relato do evangelho de João são tantos os temas que o autor vai alinhavando, a partir de diferentes níveis (histórico, simbólico, espiritual), que se torna impossível aprofundá-los em um breve comentário. A imagem da sede remete à nossa aspiração profunda, incapaz de ser saciada por nenhum objeto. A imagem da água, por sua vez, nos remete à nossa identidade original, que está brotando constante-mente em nosso interior.
Jesus aparece como o mestre que nos liberta de enganos e de falsas identificações, para que possamos entrar em contato com a “água viva” que Ele mesmo já saboreia, a única que torna possível “nunca mais ter sede”.
Essa água não é “algo” – algum objeto que possa nos preencher – nem se encontra longe de nós. Constitui nosso núcleo mais profundo. O que normalmente acontece é que – como a samaritana – estamos longe dela. Ao viver “fora” de nós, desconectados da fonte, nos acontece aquilo que S. Agostinho lamentava:
“Tarde te amei, beleza sempre antiga e sempre nova, tarde te amei! No entanto, Tu estavas dentro de mim e era eu quem estava fora”.
O importante é saber que a “beleza sempre antiga e sempre nova” não é “algo” (ou “alguém”) separado de nós, embora possamos nos dirigir a ela em chave relacional, nomeando-a como um “Tú”.
É outro nome da “água” de que falava Jesus, e constitui nossa identidade última, aquela na qual nos reconhecemos quando nossa mente se silencia; aquela que saboreamos quando, simplesmente, nos deixamos ser; aquela que está sempre a salvo e que, para além das aparências mentais, partilhamos com todos os seres.
O encontro com Jesus move a samaritana e, nos convida também, a descobrir o manancial de água viva que flui em nossas entranhas em lugar de continuar sendo buscadores de “poços no deserto”.
Jesus espera a samaritana, como espera cada um de nós, ali onde está a trama de nossa vida. Ele inicia sempre o encontro pedindo-nos daquilo que já recebemos, do que já temos... Junto a Sicar ou ao lado de nossos próprios poços... Não é preciso percorrer um caminho diferente, não pede a ela, nem a nós, ir a nenhum templo, nem lugar sagrado; nossa própria vida, com as circunstâncias nas quais vivemos, é o lugar em que Jesus se faz presente. Às vezes o escutamos e outras nem sequer o vemos.
Ali nos pede, como à samaritana, que entremos no mais íntimo de nós mesmos, que desçamos ao nosso próprio centro, à nossa realidade profunda, que estejamos atentos à nossa própria fonte e à fonte dos outros. O encontro com Jesus não acontece na superfície de nossa vida, no banal ou impessoal, nas aparências ou falsas imagens que tantas vezes alimentamos. A presença d’Ele des-vela (tira o véu) nosso manancial, muitas vezes bloqueado por uma cultura da exterioridade que nos resseca e torna estéril nossa vida.
Em nosso percurso existencial encontramos, muitas vezes, pessoas que são verdadeiras nascentes. São límpidas e transparentes, inspiradoras e mobilizadora, habitualmente delicadas. Estar na presença delas é saciar nossa sede, saímos renovados. São pessoas-fonte que despertam em nós o desejo de acessar nosso manancial interior de desejos, criatividade e busca... É ali, na fonte interior, que a vida se renova.
Outras vezes nos encontramos com pessoas que são verdadeiros lençóis de água. Subterrâneas, circulam debaixo da terra, discretas, silenciosas, mas surpreendentemente criativas. Trabalham no silêncio e fazem mover a engrenagem do mundo com seus gestos escondidos, simples, mas eficazes; suas presenças fazem a diferença. Sem elas não seria possível a vida.
É certo que também há as pessoas pântano, pessoas charco, pessoas “águas paradas” ou águas poluídas, pessoas “enxurrada” que tudo destroem. Claramente, nem todas as águas são boas!
Bebemos de muitas águas e partilhamos muitas fontes. Talvez em nós convivam agora, e em diversas fases da vida, muitas destas águas. A água é dinâmica, viva. Como nós. Não somos estáticos, mas vamos no expandindo ao longo da vida, regando ambientes secos e áridos. Às vezes pensamos que só quando estivermos saciados poderemos saciar, ou só quando formos água boa poderemos matar sedes. No entanto, em nós convivem miséria e grandeza, força e fragilidade, estagnação e movimento, água boa e água pior. Simultaneamente, somos água e somos sede. E o encontro destas duas realidades constitui nossa verdadeira identidade.
Tentar só guardar a nossa água ou permanecer fechados na nossa sede faz-nos definhar e morrer. Sondar as nossas águas e oferecer as nossas sedes é caminho comum de vida e redenção.
Afinal, Jesus fez-se sede para nos redimir.
Texto bíblico: Jo 4,5-42
Na oração: Somos seres insaciáveis, insatisfeitos; vivemos eternamente buscando, sem saber o quê. Em contato com o “poço infinito” (nosso interior), sentimos a necessidade de preenchê-lo a qualquer preço; na maioria das vezes, preenchemo-lo com “coisas”: busca de poder, posses, prestígio... e sentimo-nos frustrados, porque nada nos satisfaz. Precisamos ativar outras “sedes”.
- Dê nomes às suas “sedes existenciais” que o(a) mantém criativo(a), buscador(a)...
- Escave seu interior e verifique a “qualidade” da água que brota do seu manancial?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.03.23
“O seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz...” (Mt 17,2)
O evangelho deste segundo domingo da Quaresma nos apresenta um acontecimento muito profundo e transcendente da vida de Jesus, na presença de seus discípulos. O contexto desta passagem é a subida de Jesus a Jerusalém, antes de sua morte. O Mestre leva consigo três discípulos com os quais já tivera dificuldades devido à falta de compreensão deles com relação à sua missão. Pedro tentara desviar Jesus de seu caminho de Cruz e os outros dois, João e Tiago, disputavam os primeiros lugares no Reino. Jesus deseja revelar a eles, e a nós, que há uma dimensão muito mais profunda neste seguimento e que o impulso egóico deve se esvaziar diante da transcendência de uma vida que se faz entrega.
Ali, no Monte Tabor, também aparecem dois personagens que são referenciais na tradição judaica: Elias e Moisés. Elias é aquele que lhes revela que a Divindade é uma presença única como brisa suave e que se comunica como sussurro interior no mais profundo do ser humano, algo inesgotável. Moisés, em outra dimensão, revela que a Divindade atua na história como ação libertadora de toda opressão.
Na transfiguração, Jesus vai além destes dois personagens e revela que não é um profeta eleito para nos ensinar quem é e como é Deus; Ele mesmo deixa transparecer sua divindade e revela que toda a humanidade é chamada a visibilizar a presença divina em cada um. Deus é Luz que envolve a realidade humana na pessoa de Jesus, e é Palavra dirigida agora aos discípulos para lhes comunicar que Ele é o Filho Amado.
Já vimos no Batismo que essa voz foi dirigida somente a Jesus; mas a revelação continua avançando e essa Voz agora é dirigida aos discípulos e a cada um de nós. Na verdade, todos(as) somos “filhos e filhas amados(as)”; todos somos um pequeno “sol”, conectados com o Grande Sol que tudo ilumina. Somos criaturas profundamente amadas, para além de nossos medos e inseguranças, para além das imagens que temos ou que outros têm de nós. A nossa condição humana se “transfigura” na “filiação divina”: aqui está a nobreza e a grandeza de cada um de nós.
A Transfiguração de Jesus nos mobiliza a ultrapassar a superficialidade da realidade e nos impulsiona a ir além das aparências: é a profundidade de um rosto, de um acontecimento ou de um ato que pode chegar a transfigurar nossas vidas. É questão de ativar um novo olhar que vai se aprofundando, um olhar contemplativo que que vai além do imediato e faz captar o sentido de tudo e de todos; um olhar que nos revela nossa verdade mais profunda; um olhar que percebe a luz escondida em meio às sombras da vida.
É o olhar de um amor não condicionado que transfigura nossa vida e irrompe em nosso corpo e em nossos olhos em forma de uma luz suave e intensa que nos impacta.
Esse é o olhar verdadeiro sobre nossas vidas, aquele que desperta as fontes de amor adormecidas em nós.
Esse é o olhar que nos pacifica, elimina toda inquietação e nos faz dizer com Pedro: “Senhor, é bom estarmos aqui”.
A Transfiguração de Jesus põe em evidência nossa condição humana; de um lado, ela deixa transparecer que, como humanos, somos frágeis e vulneráveis, carentes de necessidades, e que buscamos nos apegar àquilo que nos promete segurança; no entanto, de outro lado, ela manifesta que, na nossa essência, somos partícipes da Luz divina, plenitude de presença, em profunda unidade com tudo e com todos.
O “relato das tentações” de domingo passado nos situou frente à nossa condição de vulnerabilidade e carências (busca de poder, prestígio, riqueza...); o “relato da transfiguração” deste domingo des-vela (tira o véu) a luminosidade que somos. Ambos os relatos revelam nossa natureza contraditória: somos Plenitude que se expressa na vulnerabilidade, somos luzes e sombras, seres enraizados, mas abertos ao horizonte, carregados de “bem-aventuranças” e de “mal-aventuranças, vida que se expande e vida que se retrai...
A sabedoria cristã integra estes dois polos de nossa vida: o absoluto e o temporal, o oculto e o manifesto, a identidade e o ego inflado, interioridade e exterioridade... É do encontro dos polos contrários que brota a energia, a criatividade, o espírito de busca...
O tempo quaresmal, inspirado pela pessoa de Jesus Cristo, nos faz “descer” ao chão de nossa vida e nos colocar diante da nossa realidade contraditória: justa e injusta, pacífica e violenta, amorosa e odiosa, sincera e falsa, fiel e infiel... É preciso ser sábio o bastante para crescer na consciência da nossa identidade profunda e não ficarmos presos e fechados na ignorância sobre aquilo que “somos”. Na essência, somos “luz” e, no entanto, vivemos perdidos nas sombras da culpa, preocupação, competição, ativismo, perfeccionismo...
É preciso avançar na compreensão e na consciência do que pensamos, do que sentimos, do que fazemos, do que vemos e ouvimos... a partir do nosso ser profundo. E isso é luminosidade, transparência, trans-figu-ração, plenitude de presença. Na realidade, isso que somos não tem, e nem pode ter, um nome adequado, porque escapa e vai além do sentido das palavras. Dizia José Saramago que “em nós há algo que não tem nome. Esse algo é o que somos”. Isso que somos só pode ser percebido quando calamos nossa mente, nossas concepções estreitas, nossas visões atrofiadas... O monte da transfiguração nos desafia a contemplar nossa interioridade sem o filtro dos pre-conceitos, ideias, percepções...
Celebrar a “transfiguração de Jesus” é despertar nosso ser, nossa essência, nossa originalidade... No encontro com o Jesus transfigurado, também nos trans-figuramos. Já somos “seres transfigurados” e não sabíamos disso. A transfiguração não é algo externo, uma mudança de disfarces como no carnaval, mas significa uma abertura à realidade cotidiana e tomar consciência de que a vida e a história estão cheias de sentido. A realidade torna-se “diáfana” (transparência) e nos impulsiona a ir além da pura materialidade.
A transfiguração é mistério de mão dupla: por um lado, nos “diviniza” ao revelar que somos “filhos(as) amados(as); por outro, nos “humaniza”, pois nada do que é humano é descartado; todas as dimensões que compõem nosso ser (corpo, razão, afetividade, coração, memória, vontade, relações...) são perpassadas pela realidade divina que nos habita. Somos seres de transcendência e de enraizamento.
Assim, a transfiguração não é um evento que acontece num determinado momento especial, mas um “modo de ser e de viver” na realidade cotidiana; só quem tem sensibilidade contemplativa pode perceber e entrar no fluxo da transformação, sendo presença transfigurada e iluminante.
Um entardecer, um encontro com alguém, uma ação oblativa, uma oração... podem transfigurar nosso ser, nossa existência para a verdade, a bondade e a beleza.
Há pessoas petrificadas por dentro que tudo o que tocam, ou o ambiente em que vivem, se transforma em sombra pesada: a vida familiar, comunitária, política, trabalho, ambiente eclesial... Outras, pelo contrário, transfiguram a vida e os problemas, desafios, cuja presença proporcionam um clima de paz; há quem transforma a vida, a enfermidade, os desafios em paz e serenidade. Há quem transfigura a guerra em paz, o ódio em respeito e amor, a enfermidade em fonte de aceitação da própria finitude, o desespero em esperan-ça... Há pessoas que bloqueiam a ação da luz presente em seu interior; há outras que, tal como um vitral, deixam a luz divina atravessar sua vida e transmitem a luz da bondade, da proximidade, da compaixão...
Enfim, viver é transfigurar a existência, iluminá-la, transcendê-la...
Texto bíblico: Mt 17, 1-9
Na oração: Quem crê se torna luz, reflexo da Luz de Jesus transfigurado.
A vida inspirada pela fé é um “caminhar na Luz”. Somos portadores da “luz nova”; não extinguir essa luz que queima dentro. Abafar essa luz é menosprezar a vida da Graça, o tesouro que nos foi confiado no batismo.
Devemos guardá-la ciosamente, velar por ela, valorizá-la pela nossa colaboração, estimá-la e protegê-la, como a chama olímpica que nos levará à vitória.
- Sou pessoa que transfigura a realidade da vida? Deixo transparecer a luz da bondade, do amor, da compaixão que habita em mim? Sou presença “radiante” que tudo des-vela, ilumina...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
02.08.23
“Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4)
O primeiro domingo da Quaresma nos des-loca até o “deserto das tentações”; ali Jesus se deparou com as grandes “fomes que desumanizam”: “pão do ego”, “poder auto-centrado”, “vaidade estéril”.
Jesus foi conduzido ao deserto imediatamente depois do seu batismo, com a palavra do Pai ressoando em seu coração: “Tu és meu filho amado...”; mas agora, no deserto, vai escutar outras palavras que “tentam” convencê-lo para que não ponha o centro de sua vida nesse amor, mas no poder, na vida fácil, na fama, nas posses... O relato das tentações resume simbolicamente outros momentos da vida de Jesus nos quais esteve submetido à alternativa entre “a maneira de pensar de Deus” ou “a maneira humana”.
As tentações foram uma ocasião privilegiada para Jesus ativar as “grandes fomes que humanizam”: fome de vida doada, fome do Reino, fome de comunhão, de pão partilhado, de compromisso solidário...
Conduzido pela força do Espírito, Ele viveu uma integração a partir de seu coração e não se deixou levar pelas aparências enganosas.
Sua vocação à messianidade ficou clara no batismo; agora, tratava-se de buscar os meios para viver sua missão. No seu discernimento, Jesus sentiu que o poder, a riqueza, o prestígio não são “meios” para realizar a Vontade do Pai; pelo contrário, inspirado pelo Espírito, elegeu o caminho do esvaziamento de si, da pobreza e do compromisso solidário com os mais pobres e excluídos. Sua missão como Messias devia começar nas periferias, junto aos abandonados pelo poder religioso e civil da época.
À luz do discernimento de Jesus, também nós, durante esta Quaresma, seremos conduzidos pelo Espírito ao deserto interior para o despertar das “fomes” que nos tornam mais sensíveis, abertos à realidade, comprometidos na partilha do “pão”, que é dom e deve chegar a todos.
A Campanha da Fraternidade (CF) deste ano nos alerta para o drama da fome, escândalo e incoerência na vivência do seguimento de Jesus.
Sabemos que a fome e a sede são mecanismos fundamentais dos seres vivos. Todo ser vivente necessita nutrição e hidratação, mas, nos seres humanos, estas necessidades biológicas têm caráter social. Em muitas culturas humanas, compartilhar o alimento e a bebida revela-se como gesto de socialização e de integração.
Na experiência cristã, esta necessidade vital é transladada ao campo da fé: o alimento é dom do Criador para todos. O problema crônico da atualidade não é unicamente a satisfação das necessidades básicas, mas também o despertar de uma consciência que exija a justa distribuição dos recursos naturais, para que a humanidade cultive o melhor de si mesma e viva a solidariedade e a justiça como um projeto social alternativo frente às políticas egoístas e concentradoras de bens.
A CF nos revela que a fome tem várias raízes (escassez de recursos, alterações climáticas, subdesenvol-vimento de alguns povos...); no entanto, em sentido mais profundo, ela provém de duas causas principais: a) o egoísmo de grupos e indivíduos, que se apropriam dos recursos de todos e não partilham seus produtos; b) a injustiça de um sistema político e econômico que não se preocupa com o bem comum. Ter alimento faz parte dos direitos fundamentais de toda pessoa, um direito que deve ser garantido pelo Estado.
A pedagogia quaresmal, portanto, nos sacode e nos desnuda, porque desmascara nossas falsas seguranças, centradas na riqueza, no poder, na vaidade. Inspirados pelo “discernimento” de Jesus no deserto, somos também movidos a buscar nossas raízes mais profundas. Quando esse percurso é vivido de maneira intensa, o Espírito nos conduzirá ao fundo estável e sereno, nos conduzirá à “casa”, à nossa verdadeira identidade, à “Terra prometida” onde há fartura de pão.
Por isso, é preciso ampliar nosso interior para despertar outras fomes.
O lema da CF – “dai-lhes vós mesmos de comer” – nos revela que nosso interior é uma reserva de “alimentos humanizadores”: compaixão, desejos nobres, dons originais, criatividade, espírito de busca... São alimentos que plenificam e dão sabor à nossa vida. É preciso extraí-los e multiplicá-los para que a fome de sentido e de esperança das pessoas seja saciada. Ninguém tem o direito de armazenar nos seus celeiros o “trigo” doado por Aquele que é fonte de todo “alimento salutar”.
Afinal, alimento guardado é alimento que apodrece. Vida partilhada é vida abundante.
Com frequência, nossa existência humana parece uma corrida em busca daquilo que nos sacia de um modo definitivo. Nesta corrida, aparecem muitos elementos que nos são familiares: necessidades, ansiedade, insegurança, vazio, insatisfação... Todos eles, à primeira vista, nos fazem tomar consciência que somos seres carentes. Seria, pois, essa carência aquela que nos movimenta na busca de algo para preencher nosso vazio?
De fato, o ser humano é um ser insaciável, insatisfeito... vive eternamente buscando, muitas vezes sem saber o quê. Em contato com o seu interior, sente a necessidade de preenchê-lo a qualquer preço; na maioria das vezes, preenche-o com “coisas”: busca de poder, posses, prestígio, pão que se perde... e sente-se frustrado, porque nada lhe satisfaz.
Não são as “coisas exteriores” que nos tentam. O que nos tenta é a maneira injusta, perversa com o qual utilizamos as coisas, o espírito com o qual vivemos a nossa vida. Só o Pão da Palavra pode preencher nosso interior; só um alimento nos plenifica: “fazer a Vontade do Pai”.
Aqui, também é preciso nos perguntar: - qual é a nossa tentação? O que é que nos seduz?
Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções. A cena das “tentações de Jesus” des-vela (distingue, põe às claras...) os dois dinamismos, duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso interior (um de alargamento ou expansão de nós mesmos em direção aos outros e de Deus; e outro de fechamento, auto-centramento, resistência e medo).
A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos alimentamos; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.
“Dai-lhes vós mesmos de comer”: este apelo nos inquieta, ativa nossa sensibilidade e nos faz ampliar a visão em direção à grande multidão de famintos, presentes em nossa realidade: famintos de alimento, de proximi-dade, de justiça, de comunhão, de afeto...
Jesus ensina que a dinâmica do Reino é a arte de compartilhar. Talvez todo o dinheiro do mundo não seja suficiente para comprar o alimento necessário para todos os que passam fome... O problema não se soluciona comprando, o problema se soluciona compartilhando.
O pão nas mãos de Jesus era pão para ser partido, repartido e compartilhado.
O pão armazenado, como o maná no deserto, se corrompe, apodrece.
Também hoje Ele precisa de nossas mãos para multiplicar os grãos; precisa de nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.
O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo.
O pão sem coração gera divisões e conflitos. Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração!
Deus precisa de nosso coração para que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão, para que possamos comungar.
No pão compartilhado, encontramos a luz da vida. “Se partes teu pão com o faminto, brilhará tua luz como a aurora” (Is 58,7).
Texto bíblico: Mt 4,1-11
Na oração: Já paramos para pensar na abundância de recursos e nutrientes em nosso coração e que poderíamos compartilhar com os outros? Nem sempre se trata de encher estômagos vazios. Não só o estômago tem necessidades. Há outras muitas necessidades vitais no coração humano. Nosso coração é habitado pelo impulso do “mais”; ali não há carência. Em nossos celeiros interiores há abundância de alimen-tos que nos humanizam.
- Quais são as “fomes” que mobilizam sua criatividade e seus melhores recursos? São “fomes” egocentradas ou oblativas, fomes auto-centradas ou abertas à solidariedade e partilha?
- Visite seu “celeiro interior”; ative suas “reservas” de bondade, recursos, beatitudes originais...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.02.23
“Tu, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto...” (Mt 6,17)
Mais uma vez a Quaresma vem ao nosso encontro e nos convida a recomeçar um caminho novo; talvez seja necessário refazer nossa rota de vida pois nos desviamos por caminhos que levaram a um auto-centramento, à superficialidade, à frieza nas relações com os outros, ao consumismo, ao afastamento da presença de Deus.
A vivência quaresmal nos convida a descer até à raiz da vida, à fonte germinal, porque só a partir dali é que podemos construir o fundamento de uma nova vida centrada no seguimento de Jesus.
Diante do novo que a Quaresma nos propõe viver, na realidade o que importa não é tanto o caminho pessoal que devemos percorrer (podemos cair num intimismo e numa vivência piedosa sem atitude compassiva diante dos outros). O decisivo são os encontros surpreendentes que acontecem ao longo da travessia do deserto existencial, sobretudo na relação com os pobres, excluídos, aqueles que estão à margem da vida...
A Campanha da Fraternidade deste ano quer despertar em nós uma sensibilidade solidária com aqueles que são vítimas de uma estrutura social e política que concentra os bens nas mãos de poucos, de maneira especial os alimentos. “Fraternidade e fome” denuncia a vergonhosa chaga social dos famintos em um país que é grande produtor de alimentos. A fome clama aos céus e ressoa em nosso coração; ela é expressão de uma profunda incoerência dos cristãos que se dizem seguidores d’Aquele que veio multiplicar os alimen-tos. Estamos muito distantes das primitivas comunidades cristãs que “tinham tudo em comum, partiam o pão pelas casas com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46).
“Convertei-vos e crede no Evangelho”: este apelo ressoará em todas as igrejas e comunidades cristãs nesta Quarta-Feira de Cinzas; certamente terá uma ressonância especial em nosso interior, pois irá direto ao mais profundo em nós, ao coração, onde é gerada a confiança que afasta os medos, a aliança que gera relações verdadeiras, a meta que dá sentido à nossa vida. É ali, nas profundezas de nosso ser onde nasce o amor maior, capaz de expandir nossa vida; é ali onde aprendemos a amar ao Tu que nos habita; ali onde aprende-mos que em cada um está presente um desejo de infinito que só o Tu divino pode preencher. É também ali, justamente ali, onde nascem o jejum, a esmola e a oração, ou seja, as atitudes vitais que nos afastam do superficial e nos fazem descobrir o essencial: vida que se faz partilha, amor que se doa, sensibilidade que se compromete.
A vivência quaresmal nos faz descer em direção à nossa própria humanidade; ao mesmo tempo, somos também impulsionados a descer em direção à humanidade dos outros; ela visa colocar “ordem” nos nossos afetos, esvazia nosso ego e desperta nossa solidariedade para com tantos irmãos nossos que carecem do mais essencial, em parte, pelo mau uso que fazemos dos recursos da natureza, em parte devido à nossa acumulação e monopolização desmedida deles.
Assim, o Tempo Quaresmal nos sensibiliza a viver o verdadeiro sentido das conhecidas “práticas quares-mais”: jejum, esmola e oração. Tais práticas nos movem a sair do nosso “ego inflado” e entrar em sintonia com os outros, com a natureza e com o Criador; tal experiência ativa em nós a generosidade, o despoja-mento, o verdadeiro sentido da pobreza evangélica e, sobretudo, o sentir-nos irmão com o irmão. Quem sabe partilhar nunca se empobrece, pelo contrário, se enriquece infinitamente.
Para que isto aconteça, a liturgia da Quarta-feira de Cinzas nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, conosco, com os outros e com o mundo.
À luz da Campanha da Fraternidade deste ano, o jejum adquire um novo sentido; em primeiro lugar, porque nos associa ao jejum de Jesus; e, em segundo lugar, porque nos inspira a viver uma relação justa e harmoniosa com os alimentos, não nos deixando possuir por eles e nem querendo possuí-los (afeição desordenada). A justa relação com as coisas e os alimentos consiste em reconhecer com gratidão o valor destes dons que Deus criou para suprir as necessidades básicas de todos.
Com o jejum aprendemos a conhecer e a ordenar nossos diferentes apetites mediante a moderação do apetite fundamental e vital: a fome. Aprendemos, desta maneira, a regular nossas relações com os outros, com a realidade exterior e com Deus, relações muitas vezes motivadas pela voracidade. Ao mesmo tempo, o jejum nos desperta a “fome essencial”: fome de sentido, fome do Reino, fome em favor da vida.
No sentido bíblico, o jejum vai além de um ato voluntário: significa uma “atitude de vida”; ele nos humaniza, nos faz descer do pedestal e nos torna mais sensíveis e solidários; fazer jejum tem sentido quando brota da sensibilidade que evita o desperdício, o consumo desenfreado, o esbanjamento.
Na linguagem inaciana, jejuar é “sair do próprio amor, querer e interesse”, ou seja, viver na simplicidade de quem renuncia a um “eu inflado” em favor de um “mundo diferente”, onde predomina a partilha.
Jejuamos para crescer; jejuamos para recordar que as “coisas” não são um fim, mas um meio; jejuamos como forma de olhar ao redor e recordar que a realidade é muito mais ampla que nossa própria situação.
Jejuar não é “deixar de comer”. É aceitar de maneira consciente que nossos desejos, nossas necessidades, nossos interesses, nossas preocupações não são o centro do mundo.
Por isso, jejuar pode ser um convite a ordenar a mente, a pacificar o coração, a serenar os olhos, a guardar a língua...; purificar a tendência ao imediatismo, ao falso moralismo, puritanismo e perfeccionismo.
Por lembrar-nos de nossa precariedade, o jejum pode nos tornar sensíveis ao próprio mistério da vida que somos; é colocar em questão a razão de ser da vida. Para quê vivemos?
A esmola (“elemosyne”) sempre esteve ligada à compaixão e piedade. Quem partilha “o ser e o ter” revela-se compassivo e misericordioso. Trata-se, fundamentalmente, da inclinação para com os desfavorecidos.
A misericórdia (qualidade da esmola) é a atitude própria de quem tem um coração sensível à miséria do outro. Mantém profundamente unidos o sentimento de compaixão e ternura com a solidariedade efetiva. Está atenta à necessidade de cada pessoa, que em uns casos será econômica, em outras psicológica, em muitos afetiva...
Uma das qualidades mais atraentes da esmola é precisamente sua capacidade para criar laços de comunhão. Se cada um põe seus bens a serviço dos outros e se deixa socorrer em suas necessidades, criará verdadeira comunidade. A esmola – misericórdia em ação – é uma realidade central para o cristão. Trata-se de uma virtude tão querida e apreciada pelo Senhor que a pôs em prática fazendo-se, Ele mesmo, “esmoleiro”.
Por fim, a Quaresma nos revela o verdadeiro sentido da oração: ela é uma mão estendida para o divino; não é dobrar a vontade de Deus a nosso favor; pelo contrário, é colocar-nos em sintonia com Ele, para entendermos o que é melhor para nosso verdadeiro bem. É deixar Deus ser Deus, ou seja, deixar que Ele revele sua paternidade/maternidade para com cada um de nós, na sua providência e cuidado.
A melhor a oração não é aquela que nos enche de palavras; não deveríamos preencher a oração de palavra “nossa”, mas de escuta da Palavra de Outro. Na oração, como em toda relação humana, precisamos alimentar uma atitude de escuta que busca “entrar em sintonia”, ser consciente, estabelecer e consolidar relação, caminhar para a verdade, construir pontes...
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: - Mobilize todo o seu ser para viver com mais intensidade este “percurso quaresmal”;
- Alimente ânimo e generosidade para deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito que conduzia Jesus;
- Ao longo da Quaresma, você é movido(a) a “cristificar” suas relações básicas: com Deus, com os outros, com as coisas e consigo mesmo; verifique sua vivência frente a estas relações: qual delas está mais fragilizada? como alimentá-las? como torná-las mais oblativas, abertas...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.02.23
Imagem: pexels.com/Marshall Jones
“Vós ouvistes o que foi dito: ‘olho por olho e dente por dente!’ Eu, porém, vos digo...” (Mt 5,38)
Não é preciso ser um especialista em análise da realidade para perceber e sentir que está se difundindo na nossa sociedade uma linguagem que deixa transparecer o crescimento da agressividade e do ódio. Cada vez, com mais frequência, ouvimos e lemos nas “redes sociais” insultos agressivos, intolerantes, preconceituosos, proferidos só para humilhar, desprezar e ferir a dignidade do outro. São “palavras ácidas” nascidas da rejeição, do ressentimento, da vingança...; palavras proferidas sem amor e sem respeito, que envenenam a convivência e causam profundas rupturas nas relações interpessoais; palavras que emergem de interioridades mesquinhas, vazias, baixas...Asconversações, nos espaços públicos e privados, estão sendo tecidas de expressões injustas que espalham condenações e semeiam suspeitas.
Assim, vai sendo gestado, lenta, mas implacavelmente, um espírito de combate, de linchamento, uma guerra de mentiras, um fogo cruzado carregado de desprezos, revanches e incompreensões frente àqueles que pensam diferente, creem diferente, amam diferente.
A virtude da mansidão está cada vez mais distante das esferas públicas e das relações pessoais.
E isso não é um fato que acontece só na convivência social. É também um grave problema no interior da Igreja. São divisões, conflitos e enfrentamentos de “cristãos emguerra contra outros cristãos”. Trata-se de uma situação tão contrária ao Evangelho que o Papa Francisco sentiu a necessidade de nos dirigir um apelo urgente: “não à guerra entre nós!”
Assim fala o Papa: “Dói-me comprovar como em algumas comunidades cristãs consentimos diversas formas de ódios, calúnias, difamações, vinganças, ciúmes, desejos de impor as próprias ideias à custa que qualquer coisa, e até perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas. A quem vamos evangelizar com esses comportamentos?”
Diante desse contexto, onde imperam a prepotência, a agressividade e os radicalismos, ressoa estranho as palavras de Jesus: “Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem”. Parece um grito ingênuo, proferido no deserto da desumanização.
No entanto, talvez sejam as palavras que mais precisamos escutar nestes momentos em que, submersos na podridão do ódio e da intolerância, não sabemos o que fazer de concreto para ir arrancando a violência do nosso mundo e do nosso coração.
E é precisamente aqui onde o evangelho de Jesus tem muito a iluminar, não para oferecer técnicas para resolver conflitos, mas sim para nos ajudar a descobrir com que atitudes devemos abordá-los.
Há uma convicção profunda em Jesus: não se pode vencer o mal apelando à espiral do ódio e da violência.
Já dizia Martin Luther King que “o último defeito da violência é que gera uma espiral descendente que destrói tudo o que engendra. Em vez de diminuir o mal, aumenta-o”.
Sempre há tentativas de justificar, em algumas circunstâncias, a legitimidade da violência. No entanto, Jesus nos convida a trabalhar e lutar sempre para que ela não seja nunca justificada. Por isso, é decisivo buscar sempre caminhos que nos conduzam à convivência fraterna e não ao fratricídio.
“Amar os inimigos” não significa tolerar as injustiças e retirar-se comodamente da luta contra o mal. O que Jesus viu com claridade é que não se luta contra o mal quando se destrói as pessoas. É preciso combater o mal, mas sem buscar a destruição do adversário.
A dificuldade maior para compreender o “amor aos inimigos” está no fato de que confundimos “amor” com sentimento. O amor evangélico (ágape) não é instinto, nem sentimento. Portanto, não podemos esperar que seja algo espontâneo. O verdadeiro amor, seja ao inimigo ou a um filho, não é o instinto que nasce de nosso ser biológico. O amor ágape é algo muito mais profundo e humano. Nem sequer nossa razão pode nos conduzir a este nível.
Amar o inimigo não é questão de voluntarismo, mas atitude de vida. Um exemplo: no mar sempre haverá ondas, de maior ou menor tamanho, mas sempre estarão aí. Ao chegar no litoral, a mesma onda pode encontrar-se com a rocha ou encontrar-se com a areia. Contra a rocha, quebra-se em mil pedaços; contra a areia, ela se desfaz suavemente.
Os inimigos sempre vão aparecer em nossas vidas; mas a maneira de encontrar com eles dependerá de cada um de nós. Se somos rocha, o encontro se manifestará com estrondo e todos sofrerão danos. Se somos praia, todo seu potencial de violência ficará anulado e chegará até nós com a maior suavidade.
Um detalhe, a rocha e a areia são constituídas da mesma matéria, só muda seu aspecto exterior.
“Assim seremos filhos de nosso Pai...” Um Deus que ama a todos de maneira igual, porque seu amor não é a resposta às atitudes ou às ações, mas é anterior a toda ação humana. Deus nos ama não porque somos bons, mas porque Ele é bom e ama infinitamente a todos. É da essência de Deus: “Deus é amor” permanen-temente. Da mesma maneira, o amor que temos para com os outros não tem sua origem nem é condicionado pelo que eles são ou fazem, mas pela qualidade de nosso próprio ser. O amor não é resposta às ações de alguém; sua origem está em cada um de nós, pois, na essência, fomos criados à imagem e semelhança do Deus que é amor. “Amar os inimigos”, portanto, é entrar no fluxo do amor que brota do coração de Deus e faz morada no nosso coração.
Por isso, hoje, mais do que nunca, é preciso ativar toda nossa reserva de amor e bondade em favor de uma resistência firme, mas lúcida, para aplacar o rufar dos tambores do ódio; não entremos na barca dos furiosos pois a cólera nos fará naufragar a todos! Nascemos para voar; deixemos voar a ternura e despertemos a mansidão que se encontram na essência do nosso ser profundo. São atributos humanos que tornam a nossa vida mais leve, flexível, aberta, acolhedora... E não nos deixemos envolver por aqueles que, carregados de ódio ou preconceito, não querem alçar o vôo. Quem sabe, algum dia consigamos que ninguém mais decida permanecer no deserto da desumanização.
Sem dúvida, a “mansidão” e a “ternura” definem radicalmente o sentir e o atuar de todo(a) seguidor(a) de Jesus. A maior contradição é alguém dizer que segue Aquele que é “manso e humilde de coração” e, ao mesmo tempo, revela-se como presença agressiva e conflituosa, expele ódio por todos os poros, faz-se mediação para a transmissão das piores mentiras.
A mansidão e a ternura são virtudes irmãs, andam sempre de mãos dadas. Quem cultiva a mansidão mais facilmente se torna terno com todos. É sentimento de suave comoção, de afeto doce e delicado, de atenção amorosa, de profunda e autêntica humanidade, no sentido de constante abertura aos outros, de consideração positiva, de disponibilidade e ajuda.
O Papa Francisco usa, com frequência, uma expressão carregada de intensidade: “revolução da ternura”.
A “revolução da ternura” nos convida a acompanhar, curar e acolher, a partir de nossa realidade, aqueles que nos rodeiam, a viver investindo nossos melhores recursos em favor da quebra da cadeia de violência.
Hoje, essa proposta simples, mas de profunda marca evangélica, responde à desumanização que estamos vivendo. Essa revolução da ternura nos convida a sair de nós mesmos, a colocar nossa vida a serviço do irmão, a entrar no fluxo do Amor de Deus, fazendo-o chegar a tantos que dele necessitam, através de nossas palavras mansas, de nossa presença cheia de ternura; assim vivendo, seremos pura transpa-rência do Coração manso e humilde de Jesus.
Texto bíblico: Mt 5,38-48
Na oração: A suavidade é o significado mais relevante e mais perceptível da mansidão. Mas a mansidão não é apenas suavidade; ela é plena de força, de iniciativa, de criatividade...
- Você vive num ambiente onde predomina mansidão, tolerância, compreensão...? Ou, ao contrário, um am-biente carregado de suspeitas, julgamentos, ódios...?
- Como despertar a bem-aventurança da mansidão, presente em seu interior?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.02.23
imagem: pexels.com
“Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus,
vós não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20)
A liturgia deste domingo (6º Dom. Tempo Comum) nos apresenta um longo texto do evangelho de Mateus. É importante que descubra-mos a mensagem central, essencial e sumamente importante ali presente, se não quisermos correr o risco de nos enredar em cada detalhe, perdendo aquilo que, de verdade, Jesus desejava para as comunidades cristãs.
O primeiro parágrafo já nos dá a chave de leitura de todo o texto. Mateus explicita a atitude de Jesus frente à Lei: “Vim para dar-lhe plenitude”; ou seja, Ele não se limita a analisar os detalhes da Lei, nem criticar alguns preceitos, mas dar plenitude e sentido profundo.
E esta plenitude não significa melhorar a lei com novas normas que Jesus confrontaria com as antigas, por considerá-las mais perfeitas. A plenitude que o evangelho nos apresenta não vai na direção de “maior perfeição” da lei, mas de uma mudança radical: Jesus mesmo é a plenitude da Lei. Sua pessoa, sua identidade, sua mensagem, sua maneira de viver é a Lei mesma em sua plenitude. Por isso, acolhê-Lo, crer n’Ele, identificar-nos com Ele, vivendo como discípulos seus, nos torna “grandes no Reino dos céus”.
Os evangelistas deixam claro que Jesus não vive centrado na Lei; não se dedica a estudá-la nem a explicá-la a seus discípulos. Nunca o vemos preocupado por observá-la de maneira escrupulosa. Certamente, não põe em marcha uma campanha contra a Lei, mas esta não ocupa um lugar central em seu coração. Jesus não foi contra a Lei, mas foi além da Lei. Quis dizer-nos que sempre temos que ir mais além da letra, da pura formulação, até descobrir o espírito da lei. “A lei mata, o espírito vivifica” (S. Paulo).
Jesus busca a Vontade de Deus a partir de outra experiência diferente, ou seja, procurando abrir caminho entre os homens para construir com eles um mundo mais justo e fraterno. Isto muda tudo. A Lei já não é o decisivo para saber o que Deus espera de nós. O primeiro é “buscar o reino de Deus e sua justiça”.
“Justiça” é um termo particularmente especial para Mateus, e que poderia ser traduzido como “ajustar-se ao modo de agir Deus” “sintonizar-se à sua vontade” – uma justiça que é infinitamente superior à Lei.
Para ressaltar a “novidade” da mensagem de Jesus, o evangelista Mateus realça que “se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”.
O texto aponta para algo de grande profundidade e que toca uma questão básica do caminho espiritual: “a partir de onde eu vivo? vivo a partir da lei externa ou a partir do coração?”
Os códigos morais insistem nas ações: “não matar”, “não cometer adultério”, “não jurar”. Mas, provavel-mente, todos temos experiência de que é possível não ter cometido nada disso e, no entanto, vivemos com o coração endurecido, desconectado daquilo que é realmente importante.
A mensagem de Jesus é radical pois quer chegar à raiz. E por isso nos confronta com nossa própria verdade interior. O evangelho deste domingo nos revela um Jesus que vem para dar plenitude à lei. Mas essa pleni-tude está muito distante do mero cumprimento externo: não matar, não cometer adultério, não jurar falso... Supõe ir mais adentro, mais a fundo, examinando nossas atitudes, nossas razões, nossos sentimentos e tudo aquilo que nos constrói e define como pessoas. É aí, no centro de nossa humanidade, onde conecta-mos com o espírito e o divino em nós; onde todos somos uno e nossas ações são um fluir dessa unidade interior.
Viver a partir do “coração” significa viver a partir do amor que nasce da compreensão da unidade que somos, e que se modela na “regra de outro”: “faça aos outros o que gostaria que eles fizessem a você”.
A nova situação que se instaurou a partir da vinda do Messias não é como a antiga aliança, a aliança da lei exterior ao homem; é, pelo contrário, a aliança da interioridade, a situação que se define pelas atitudes que brotam do coração.
Há uma frase que se repete três vezes no texto deste domingo, e que, ao mesmo tempo, é novidade e ruptura. Certamente, ela se revelou escandalosa para muitos contemporâneos de Jesus, judeus fiéis à lei de Moisés, à qual consideravam-na como voz de Deus: “Vós ouvistes o que foi dito... Eu, porém, vos digo”.
A novidade e a ruptura estão na afirmação: “Eu, porém, vos digo”. A força da expressão é o “eu”. Sua autoridade reside em sua pessoa. Sua maneira de ser e viver é nossa “lei” e referência. A partir de agora, cumprir a lei é crer n’Ele e segui-lo. A coerência de Jesus é a origem de sua autoridade; não é a dos escribas e fariseus que dizem, mas não fazem.
O evangelho pede de todos nós uma mudança absoluta. É como se Jesus nos dissesse: “não fiques só em tuas ações, a lei está dirigida ao coração, ao interior de tua pessoa, às tuas atitudes profundas, às tuas razões para agir, aos teus sentimentos, àquilo que te constrói e te define como pessoa. Tu não podes te limitar em não atacar teu irmão; és chamado a amá-lo, compreendê-lo, perdoá-lo...”
Com a novidade do anúncio e da prática de Jesus, realizou-se uma transformação radical nas relações do ser humano com Deus e com os outros. Esta transformação consiste em que o regime da observância da lei foi sucedido por outro regime, o regime filial, que comporta uma situação muito diferente. Por conseguinte, a nova situação consiste em que não só fomos libertados da lei, senão que, além disso – e sobretudo – Deus nos fez verdadeiros(as) filhos(as) seus(suas).
Nesse sentido, as relações de intimidade familiar não se fundamentam a partir de um regulamento ou de uma codificação legal. Seria simplesmente absurdo que duas pessoas, que se amam, se pusessem a redatar um regulamento no qual se estipulasse taxativamente como dever-se-iam agradar mutuamente. Quando se trata de uma relação pessoal, vivida nessa profundidade, é o dinamismo do amor que faz cada um inventar sua própria conduta, descobrir o que agrada ao outro e evitar a todo custo o que pode causar distância entre eles.
Pode-se e deve-se dizer: a liberdade que a fé exige é viver o amor com todas as suas consequências. As exigências da lei são sempre limitadas; as exigências do amor, pelo contrário, não têm limites.
O único limite do amor é amar sem limites, é a disponibilidade e o serviço incondicional aos outros. Ou seja, no amor não há limite possível. E isso, no fundo, é o que nos dá medo e nos assusta a ideia de uma vida cristã na qual tudo depende, não da observância de algumas leis (com seus limites e casuísticas), senão do grau e da dose de amor sincero, da bondade sem limites que alguém tenha frente aos outros com quem convive.
É preciso superar o legalismo que se contenta com o cumprimento literal de leis e normas. O empenho de Jesus consistiu em fazer as pessoas passarem de uma religiosidade externa a uma atitude interna, ou seja, passar de um cumprimento de leis a uma descoberta das exigências de nosso próprio ser.
Nosso cristianismo será mais humano e evangélico quando aprendermos a viver as leis, normas, preceitos e tradições como Jesus os vivia: buscando esse mundo mais justo e fraterno que o Pai tanto deseja. Nesse sentido, o Sermão da Montanha não é Lei, mas Evangelho.
Esta é a diferença entre a Lei e o Evangelho: a Lei deixa a pessoa abandonada às suas próprias forças, impõe-lhe preceitos que é preciso esforçar-se por cumpri-los, ameaça-a, premia-a, exige-lhe empenho…
O Evangelho, no entanto, coloca a pessoa diante do dom de Deus, faz-lhe conhecer seu Pai, converte-a em filho(a), transforma-a por dentro… e não a obriga a nada. No amor não há imposição, mas acolhida.
Texto bíblico: Mt 5,17-37
Na oração: Diante de Deus, deixar aflorar os sinais de “farisaísmo”, presentes no seu cotidiano.
- Frente às limitações do outro, o que prevalece? O peso da lei ou a força da misericórdia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.02.23
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“Vós sois a luz, vós sois o sal...
”O evangelho deste domingo é a conclusão das bem-aventuranças, proclamadas no domingo passado.Jesus faz uma afirmação lapidar: “vós sois o sal, sois a luz”. O artigo determinado nos adverte que não há outro sal, que não há outra luz. Todos têm direito a esperar algo de nós. O mundo dos cristãos não é um mundo fechado e à parte. A salvação que Jesus propõe é a salvação para todos. É preciso que a única história, o único mundo fique temperado e iluminado pela vida daqueles(as) que seguem a Jesus.
Mateus nos traz uma mensagem de muita transcendência para o discipulado. Este texto pertence ao Sermão da Montanha no qual transparece a intenção de Jesus de construir uma nova comunidade, aquela que decide pertencer ao movimento de vida iniciado por Ele, identificando-se com o modo de ser e viver do Mestre da Galiléia. Aqui está a verdadeira identidade dos seguidores(as): ser presença que ilumina e dá sabor à realidade carregada de tantos conflitos e divisões.
A originalidade desta nova comunidade não está centrada na pertença a uma nova religião, com seus ritos, leis, doutrinas, hierarquias..., mas no fato de prolongar o movimento humanizador iniciado por Jesus. Movimento de inclusão de todos, movimento que põe em questão toda forma de submissão, movimento que abre um horizonte de esperança e de vida.
É importante destacar que as palavras de Jesus dirigidas ao discipulado não são uma promessa, mas uma realidade existencial, porque lhes diz que já são “sal da terra” e já são “luz do mundo”. Ele utiliza estas duas imagens para que todos compreendam que estão equipados de sabedoria e luz para iniciar este caminho.
O sal não tem valor para si mesmo, mas para conservar e dar sabor, para diluir-se no processo da vida da terra. Não somos sal para nós, para um pequeno grupo, mas sal para a terra inteira.
Ser luz... Tampouco a luz tem valor em si mesma, mas para iluminar os outros.
Devemos cair na conta de que Jesus não pede para salgar ou iluminar, mas ser sal, ser luz. O matiz tem sua importância. A missão fundamental de cada um está dentro dele mesmo, não fora. A preocupação de cada um deve ser alcançar a plenitude humana. Se é sal, tudo o que ele toca ficará temperado. Se é luz, tudo ficará iluminado ao seu redor. Com demasiada frequência o cristã acredita ser sal e luz, mas sem dar-se conta de que perdeu toda capacidade de dar sabor e iluminar a vida, porque é sal insosso e luz tímida.
O simbolismo do sal aqui é extraordinário: ele não pode salgar a si mesmo. Sua capacidade não lhe é útil para nada. Mas é imprescindível para os outros. É para ser acrescentado a outro alimento, é para ressaltar seu sabor. O humilde sal é feito para os outros, para que os outros sejam eles mesmos. Ele garante o sabor, com a condição de que se dissolva.
O sal serve para ativar o sabor dos alimentos; não é o sal que “dá sabor”, mas é ele que realça o sabor de cada alimento. As palavras “sabor” e “sabedoria” tem a mesma raiz do verbo latino: “sapere”, que significa, ao mesmo tempo, tanto “saber” quanto “ter sabor”. Assim como está o sabor para os alimentos, também está o sabor da vida.
Sabedoria rica e nova: o coração é “sábio” quando sabe “saborear a verdade”, quando é livre, quando intui a direção da própria existência, quando se sente “seduzido” pelo que é verdadeiro, bom e belo.
Saber é experimentar o gosto das coisas. Saber é sentir o sabor.
“Sapiencia” quer dizer conhecimento que tem sabor. Segundo a Anotação 2 dos EE, “não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa, mas o sentir e saborear as coisas internamente”.
Portanto, sabedoria é a arte de degustar, distinguir, discernir...
O sábio é aquele que conhece, não com a razão, mas sente o gosto daquilo que já está dentro dele.
Sábia é a pessoa que sintoniza atentamente seus ouvidos aos desejos do coração.
“Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?” (T.S. Eliot).
A verdadeira sabedoria, portanto, nos ajuda a descobrir a profunda raiz da vida e como investir, da melhor maneira e em sua justa medida, nossas energias vitais. Mas, há um forte alerta: “se o sal perde seu sabor, com que se salgará?” Esta frase é um provérbio usado na literatura rabínica pois se refere a um sal extraído do mar Morto e que perdia seu sabor muito rapidamente. Agora, Jesus situa o discipulado diante de uma grande responsabilidade: a inutilidade de uma fé centrada na razão e não vivida a partir da profundidade humana. Viver o seguimento a partir de uma fé focada na doutrina gera ideologia; mas, quando é vivida como raiz existencial gera sentido para chegar a ser o que somos em potencialidade.
O tema da luz é muito frequente na Bíblia. Partindo de um dado experimental, descobre-se sua importância para o desenvolvimento da vida. Não só porque a luz é imprescindível para a vida, mas porque o ser humano não pode desenvolver-se na escuridão. Daí que a luz tenha se convertido no símbolo da vida mesma e de tudo o que a rodeia. Assim como a escuridão se converteu no símbolo da morte e de tudo o que a provoca.
A escuridão nos paralisa; tudo está aí, mas não podemos nem nos mover. A pequena luz põe as coisas em seu devido lugar, nos faz capaz de contemplar a beleza presente em tudo. É como o primeiro momento da Criação: “Faça-se a luz”, e a partir daí o caos foi se transformando em cosmos.
Quem segue Aquele que é a Luz, reacende a faísca de luz dentro de si e se torna reflexo da Luz de Cristo.
A vida inspirada pelo seguimento é um “caminhar na Luz”.
“Deus é luz e nele não há treva alguma” (1Jo 1,5). Deus revela, potencializa, ilumina, dá sabor. A pessoa que vive descentrada de si mesma torna-se um canal por onde passa a mesma luz divina. Não a impede, não a retém e nem se apropria dela, mas permite que a Luz divina ilumine tudo.
Ser luz, significa explorar nossas possibilidades humanas e espirituais e pôr toda essa riqueza a serviço dos demais. Devemos ter cuidado de iluminar, sem deslumbrar.
Ninguém é “a” luz, senão que tem um pouco de luz. E todos compartilhamos mutuamente a luz que vem de Deus. Nossa pequena luz reforça e ativa a luz presente no outro.
A vida do(a) discípulo(a) transcorre em meio a um contínuo discernimento para encontrar a medida justa de sal/sabor e a medida justa de luz. Um excesso de sal torna intragável qualquer alimento, um excesso de luz nos cega. Às vezes, o discipulado se vê envolvido em um ego que expele um excesso de sal até afastar os comensais. Assim também, um excesso de luz faz permanecer na sombra àqueles a quem ela se dirige.
Do mesmo modo, uma dose menor de sal gera uma falta de sabor que dilui o sentido original ou a pouca luz gera um ambiente sombrio e frio. É a tibieza de um discípulo que não se atreve a viver com inspiração esta mis-são, porque suas raízes se desconectaram da fonte e ele se reduz a cumprir alguns ritos ou normas, sem viver uma profunda identificação com Jesus.
Texto bíblico: Mt 5,13-16
Na oração: Rezar sua presença e sua atuação na realidade cotidiana e no encontro com os outros.
“Ser sal” e “ser luz” significa vida descentrada, oblativa e servidora. Lembre-se: o sal, para salgar, tem de desfazer-se, dissolver-se, deixar de ser o que era. A lamparina ou a vela produzem luz, mas o azeite ou a cera se consomem.
Seguir Jesus é deixar que a Luz d’Ele transpareça em sua vida; o carvão e o diamante são feitos da mesma matéria: tem a mesma composição química.
No entanto, o carvão afoga a luz, enquanto o diamante a faz resplandecer.
- Você é carvão ou diamante no seu “existir cristão”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.02.23
“Felizes os pobres em espírito, os mansos, os pacíficos, os misericordiosos, os puros de coração...”
Todo ser humano anseia por felicidade; como filhos e filhas do “Sopro criativo”, somos habitados por uma “fome e sede” de eternidade, de infinita liberdade, de vida plena...
Muitas são as pistas sobre o lugar onde se encontra a “chave da felicidade”. Alguns o situam na arte; outros, numa religião fundamentalista; muitos, num consumo desordenado; vários, na política alienada; tantos, no sucesso a todo custo; poucos, na militância comprometida; inúmeros, no trabalho estressante; raros, no serviço desinteressado...
A sociedade de consumo que tudo invade, realça a felicidade como a meta imediata de nossas buscas, algo ao qual temos direito e que depende de fatores externos. Esta felicidade é passageira, pois quando a alcançamos, invade de novo a insatisfação, a inquietude, o ressentimento, a inveja... e de novo empreen-demos nossa busca.
A felicidade não se encontra na saída e nem no final. Parodiando Guimarães Rosa, podemos dizer que ela está presente na travessia.
Nesse sentido, felicidade pode ser entendida como um “estado de espírito”; é experimentar uma sensação de renascimento contínuo, de satisfação interior... ou sentir despertar em si um potencial de bondade, muitas vezes desconhecida...
A felicidade não vem a nós a partir de fora, nem nos espera no futuro; tampouco se encontra em “algo” que deveríamos alcançar. A felicidade se identifica com o que somos;é outro nome de nossa identidade profunda e transcende toda circunstância e acontecimentos.
Muitas vezes somos ignorantes de nosso estado de felicidade; na essência, já somos felicidade. O problema é que nos identificamos com o que não somos e, nessa mesma medida, nos afastamos da felicidade quando a localizamos em “algo” ou a projetamos “fora”. Mas a felicidade não é um “estado de ânimo” que pode variar, mas um “estado de ser”, que nasce justamente da experiência profunda de nossa vida e que é capaz de abraçar todos os estados de ânimo.
A verdadeira felicidade coincide com a paz interior; é o prazer de descobrir a cada dia que a vida se inicia novamente a cada amanhecer; é fazer da mesma vida uma grande aventura...
As bem-aventuranças, pronunciadas por Jesus sobre um monte, tem o caráter de uma teofania e constituem umas das páginas mais belas da sabedoria universal. Falam de uma felicidade diferente que abre caminho em meio às adversidades e contradições. Cada frase é uma passagem, uma páscoa, onde chega ao auge o que parece contraditório: bem-aventurados são os que sofrem, os pobres, os persegui-dos, os humildes, os que choram... pois demonstram que eles ainda não perderam a sensibilidade, que eles sentem o mundo como injusto e que, por isso, são, verdadeiramente, os únicos a sonharem, a buscarem e a lutarem por um novo mundo.
Tanto as bem-aventuranças como o Reino são trans-confessionais. São atitudes que aproximam todos os seres humanos. Seu caráter universal é o que faz com que muitas vezes sejam lidas em encontros inter-religiosos. Elas nos convocam a ir além de nossos pequenos e atrofiados lugares, em direção a uma terra prometida da qual já falavam os profetas de Israel.
Para surpresa de todos, Jesus subiu a uma montanha para ver o amplo horizonte da vida e lá fez um profundo mergulho em seu interior, estimulando também os discípulos e a multidão a descerem no insondável mundo do “eu profundo”. É ali que se encontra a fonte das inspiradas “beatitudes”, aquelas que tecem nossa vida e nos fazem originais.
Não há outro modo de alcançar o divino a não ser “escavar” e fazer emergir aquilo que é mais nobre e humano, escondido nas profundezas da vida. Para ativar as bem-aventuras é preciso perfurar a dura casca do ego inflado e prepotente.
Nas afirmações surpreendentes de Jesus, são chamados de bem-aventurados ou felizes aqueles que vivem em sentido contrário ao que o mundo propõe: pobreza, mansidão, paz, compaixão, sensibilidade solidária.
A felicidade evangélica não é como aquela que o mundo vende, ou seja, euforia fácil e prazer imediato. Ela é muito mais um chamado à plenitude e sabe suportar os embates que a vida apresenta. Com frequência, associamos a felicidade à ausência de problemas, ao êxito econômico, à beleza perene ou ao prazer em todas as suas dimensões. No entanto, tudo isso esgota ou é simplesmente insustentável, pois não tem consistência interior.
Não podemos considerar as bem-aventuranças como leis ou como algo a cumprir. Elas são o horizonte, a meta, o tesouro a descobrir. Devemos nos aproximar de cada uma delas como “atributos divinos” presentes em nosso interior e no interior de todas as pessoas. Elas são como estradas através das quais avançamos até viver na “dinâmica do Reino”, que tantas vezes encontra resistência frente a outras dinâmi-cas egóicas e formas de viver auto-centradas que nós mesmos alimentamos.
- Ao escutar e acolher que somos felizes quando somos “pobres de espírito”, significa ter alcançado a liberdade interior, ser conscientes de onde colocamos a segurança de nossa vida. Mas também implica viver uma existência simples e despojada, sentindo-nos chamados a partilhar os dons e a nossa própria vida com os mais necessitados.
- Quando Jesus proclama que devemos ser “mansos, para possuir a terra” percebemos a radical diferença frente ao orgulho e prepotência cultivados pela nossa sociedade. A mansidão é fruto do Espírito, próprio de quem deposita toda sua confiança em Deus. Se vivemos tensos, agressivos diante dos outros, acabamos cansados e esgotados. Mas, quando olhamos nossos limites e fragilidades com ternura e mansidão, sem nos sentir superiores ou inferiores a ninguém, podemos viver mais integrados, evitando desgastar energias em lamentos ou dissimulações inúteis.
- Ao escutar que somos felizes quando “sabemos chorar com os outros”, significa compartilhar o sofrimento alheio e enfrentar as situações dolorosas, solidarizando-nos com o sofrimento do mundo para transformá-lo.
- E continuamos escutando que somos felizes, bem-aventurados, quando sentimos “fome e sede de justiça”, ou seja, quando emerge de nosso interior um impulso mobilizador para que a vida digna seja possível para todos e sentimos isso como se sente a fome, a partir das entranhas.
- Quando somos “misericordiosos”, significa que deixamos fluir de nosso coração o amor recebido de Deus, significa que estamos acolhendo os outros incondicionalmente, assim como nos sentimos acolhidos por eles.
- Ao nos descobrir que somos felizes quando temos “um coração limpo para poder ver a Deus”, significa ter um coração simples, sem falsidade, autêntico, transparente.
- E nos admiramos, nestes tempos tão sombrios, ao escutar que somos felizes quando “trabalhamos pela paz” sem excluir ninguém; construímos paz quando buscamos o consenso, a harmonia, o perdão, a possibilidade de vida para todos.
- Mais ainda, no final nos é dito que somos felizes quando nos sentimos “perseguidos por causa da justiça”, porque o Reino de Deus pede uma sociedade justa e em paz e isto não é possível sem uma grande dose de entrega pessoal para contrapor todos os obstáculos que nascem dos interesses pessoais e dos egoísmos grupais, retardando a plenitude do Reino.
Texto bíblico: Mt 5,1-11
Na oração: “Contemplar” o significado de cada bem-aventurança; verificar em que medida e em que circunstância ela se faz visível em sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.01.23
Imagem: Tissot
“Jesus andava por toda a Galileia, ensinando em suas sinagogas...” (Mt 4,23)
Galileia foi a primeira decisão importante que Jesus tomou no início de sua vida pública. Uma decisão que foi essencial em sua vida, porque Jesus permaneceu na Galileia até pouco antes de morrer. Jesus viu claramente que o melhor lugar em que Ele podia e devia comunicar sua mensagem era precisamente a Galileia. Assim sendo, é evidente que o lugar de onde fala condiciona o que essa pessoa diz. Não é a mesma coisa falar de uma cátedra no Templo que da janela de uma casa simples em um povoado perdido.
“Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judéia, a começar pela Galileia” (At. 10,37), dirá Pedro em seu discurso, batizando para sempre a Galileia como lugar dos começos. Os galileus não viviam preocupados em conservar a memória de antepassados ilustres ou de veneráveis predecessores; nenhum personagem de peso tinha marcado aquela região com sua fama; nenhuma tumba patriarcal a havia convertido em terra sagrada; nenhum profeta ocorreu nascer ali. O pior da Galileia já havia sido descrito por Isaías quando disse: “caminho do mar, do outro lado do Jordão, Galileia dos gentios... (8,28). Respiravam ares de liberdade naquela sociedade mesclada e heterogênea, acostumada ao vai-e-vem das caravanas do Oriente e de muitos gregos e romanos nas ruas das cidades. Havia algo de “marginalidade” em uma Galileia refratária a continuar escutando os discursos, palavras e temas de sempre.
O fato é que Jesus, para realizar sua missão docente, não se dirigiu à capital, Jerusalém, nem à importante província da Judéia. Logo após sua decisão, Jesus foi viver e desenvolver sua atividade, pregar sua mensagem numa região distante, habitada por humildes camponeses e pescadores pobres, pessoas que, naquele tempo, eram consideradas uma população sem influência, que não vivia na abundância e que, ainda por cima, tinha má fama, má reputação. Os “galileus” do tempo de Jesus não gozavam de especial estima (Jo. 7,52); eram considerados ignorantes e impuros com os quais se devia manter distância.
Se efetivamente Jesus queria “evangelizar”, ou seja, comunicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, não buscou conquistar para si os notáveis e as classes influentes da sociedade, nem procurou os postos de privilégios, nem o favor dos mais influentes e, muito menos, os que tinham poder e dinheiro. Mais ainda, quando Jesus tomou a decisão de ir pregar na Galileia, o que na realidade fez foi dirigir-se a um país governado por um tirano sem escrúpulos (Herodes) e que não estava disposto a admitir “denúncias proféticas” de ninguém. Portanto, Jesus foi para esta região ciente de que estava “entrando na boca do lobo”. Mas nada disso o desviou de seu projeto de ir em busca dos pobres e dos marginalizados, nem o fez tomar precauções para denunciar as mazelas dos poderosos de seu tempo.
Por isso, Galileia é o lugar da luta e compromisso pela vida, o lugar dos excluídos e desprezados, o lugar do discipulado, o lugar no qual Jesus realizou os gestos libertadores em favor da vida. Todos sabemos que as “mudanças profundas e duradouras” na sociedade não vem de cima, mas de baixo, a partir da solidariedade e da identificação com os últimos deste mundo. Há uma esperança alentadora que vem das periferias e das margens, daqueles que se empenham por imprimir um movimento novo à história; neste lugar está a semente na qual Jesus viu a possibilidade de uma vida diferente, nova e mais promissora.
E Jesus foi o ponto de partida de uma profunda mudança na história da humanidade.
Foi na Galileia que Jesus anunciou uma notícia alvissareira: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”; foi na Galileia que Jesus lutou contra os poderes que atentavam contra a vida; foi ali que Ele abriu novo horizonte de vida a todos; foi ali que Ele despertou a esperança no coração de cada um: um mundo de fraternidade, de comunhão, de acolhida, de relações sadias...
O “Reino de Deus” constituiu o centro da mensagem de Jesus: a utopia que enchia seu coração, embora nunca explicasse seu conteúdo concreto. Poderia ser traduzido como o projeto de uma nova humanidade, centrada na vivência da fraternidade e marcada pela compaixão.
Por isso, o anúncio de Jesus não é, em princípio, uma exigência moral, nem a constituição de uma nova religião, com sua doutrina, normas, ritos... O original na mensagem de Jesus está no chamado a despertar, a tomar consciência da nossa verdade mais profunda. Dessa compreensão brotará uma atitude e um comportamento coerentes com o projeto humano – que é o projeto divino – do “Reino de Deus”.
Galileia foi também a terra do chamado e do discipulado.
No evangelho de Mateus, a cena do chamado de Jesus nos introduz na dinâmica da troca de olhares. A resposta ao chamado só é possível a partir do olhar inspirador e mobilizador de Jesus, que consegue ter acesso ao seu oceano interior de cada um e faz emergir as ricas possibilidades, criatividades, inspiração... Com sua presença instigante, Jesus desperta, ativa e faz vir à tona o que há de mais humano nas pessoas e o potencializa. Debaixo das cinzas do cotidiano, encontram-se as brasas da paixão, daquilo que é mais nobre. Assim aconteceu no encontro e chamado dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior; Jesus os desafia a serem mais humanos. “Farei de vós pescadores do humano”.
“Pescar o humano” é trazer à tona o que de humanidade está escondido ou atrofiado em cada pessoa; é ajudar as pessoas a viverem com sentido, tirando-as do mar da desumanização. O chamado-resposta é ocasião para motivar e buscar a inspiração no oceano interior. Jesus revela a extraordinária capacidade de “pescar” o maior bem possível do outro, de fazer brotar o melhor de cada um, sem necessidade de dar-lhe lições ou arrastá-lo com argumentos racionais.
“Pescar o humano” é extrair a melhor e mais original versão humana de cada um, garimpar a autêntica qualidade humana no cascalho das limitações e fragilidades presentes em todos nós. No contexto do chamado-resposta somos mobilizados a viver a experiência de ter os olhos fixos em Jesus e de nos sentir olhados por Ele, deixando-nos afetar pela Sua Pessoa, Suas relações, Sua paixão pelo Reino, Sua missão, Seu chamado...
“Chamado-resposta” implica, pois, uma troca comprometedora de olhares. O olhar transparente e livre de Jesus e sua Palavra mobilizadora ressuscitam o nosso olhar tímido e estreito e nos capacitam a olhar novas realidades: seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar e sua palavra nos predispõem a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual e plural com amor, com entusiasmo e criatividade.
Jesus nos precede com seu olhar, se adianta à nossa necessidade, nos convida e nos desafia a ir mais além de nós mesmos, destravando nossa estreita vida; em outras palavras, o olhar de Jesus vai mais além da casca humana para buscar o que é mais nobre e digno em cada pessoa. Este jogo de olhares é humanizador e não possessivo: nosso olhar fixo em Jesus e deixar-nos olhar por Jesus.
Uma vez que levantamos o olhar para Jesus e nos deixamos olhar por Ele, brota a Palavra. Depois do olhar, a Palavra. Depois do amor, a missão. O olhar de Jesus gera uma atitude de serviço.
Texto bíblico: Mt 4,12-23
Na oração: Ao “fixar seu olhar” em cada um de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos a fazer opções mais radicais e integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus.
- Sinta-se movido(a) a ser original, criativo(a), audacioso(a) em dar um estilo e um matiz diferente à principal mensagem de Jesus: a doação ao próximo, o serviço gratuito, a presença inspiradora em um mundo que interpela a sair das estreitas fronteiras pessoais.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.01.23
“Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo”
É muito significativo que o segundo domingo do tempo litúrgico comum continue falando de João Batista. Tudo o que o evangelista João nos diz do Batista é surpreendente. Ele nos indica uma relação especial de Jesus com o João do deserto. O evangelista quer deixar claro que não há rivalidade entre eles. Por isso nos apresenta um Batista totalmente integrado no plano de salvação de Deus. Sua missão é a de ser precursor, ou seja, preparar o caminho para o verdadeiro Messias.
Recordemos que João não narra o batismo de Jesus em si; vai diretamente ao centro e nos fala do Espírito, que é o mais importante em todos os relatos do batismo do nazareno.
O evangelho deste domingo, com o qual iniciamos o Tempo Comum, depois das festas natalinas, nos convida a fazer uma reflexão sobre o sentido do que celebramos, sobre o que foi verdadeiramente importan-te nestes dias.
Quem é este Jesus que nasceu entre nós? Como é esta Pessoa que o Pai nos enviou? Como Ele afeta nossas vidas?
São as perguntas que as primeiras comunidades cristãs também fizeram a si mesmas e são suas respostas que nos chegam neste texto que o evangelho de João põe na boca do Batista, saltando toda cronologia.
João Batista que nos acompanhou durante o Advento é agora, ao terminar o tempo do Natal, aquele que nos diz: “ficai atentos, abri os olhos, descobri quem é, na verdade, este Menino que nasceu para nós e como tem a força do amor para libertar nossas vidas”.
João não fala porque ouviu dizer, nem estudou nos livros; ele nos fala de sua própria experiência. Afirma que “vê” Jesus que se aproxima dele, que vem ao seu encontro e descobre n’Ele algo novo, que “não conhecia”. Descobre exatamente quem é Jesus. Esse a quem ele mesmo saiu a anunciar, mesmo sem conhecê-lo. E isso que ele vê não o deixa indiferente: afeta-o profundamente, move a tomar posição, a se resituar diante de sua missão.
João Batista confessa a Jesus como o “Cordeiro de Deus”, expressão muito familiar e significativa para o povo judeu contemporâneo de Jesus, mas não para nós. Era para eles uma clara referência à saída do Egito, ao cordeiro com cujo sangue eram marcadas as portas das casas dos judeus e os livrava da morte, abrindo-lhes o caminho para a libertação, saindo do lugar de sua escravidão para viver em liberdade. Recorda-nos o cordeiro que era sacrificado para celebrar, cada ano, a festa da Páscoa, este acontecimento fundamental para a vida de fé do povo de Israel.
Mas João continua: “este Cordeiro de Deus tira o pecado do mundo”. Fala de pecado, no singular; não está nos falando dos pecados ou falhas individuais, mas da situação global de opressão que impede o ser humano de ser plenamente pessoa segundo o plano de Deus. Todos os demais pecados se reduzem a este; ou, em outras palavras, este “pecado do mundo” é fonte de todos os outros pecados.
Trata-se do grande pecado de “raiz”, presente no coração de todos, que se expressa como ruptura de relações entre as pessoas, quebra de comunhão, esvaziamento da capacidade de amar... Pecado que brota de um coração petrificado, insensível e que se encarna nas estruturas sociais-políticas-econômicas-religiosas, alimentando divisão, ódio, intolerância... Este “pecado do mundo” apresenta vários rostos: injustiça, humi-lhação, violência em sentido moral e físico...
Jesus “tira o pecado do mundo” com sua maneira de viver, elegendo o caminho do serviço, da humildade, da pobreza e da entrega em favor da vida. Esta atitude é fruto de uma radical liberdade que lhe permite ser “homem autêntico”, eliminando de sua vida toda opressão e anulando toda forma de domínio sobre Ele. Por isso, Ele é portador da salvação radical para todos.
Jesus viveu esta liberdade durante toda sua vida. Foi sempre livre; não se deixou avassalar nem por sua família, nem pelas autoridades religiosas, nem pelas autoridades civis, nem pelos costumes ou tradições impostas pelos letrados e fariseus. Tampouco se deixou manipular por seus amigos e seguidores, que tinham objetivos muitos diferentes dos seus (zelotas, Pedro...)
João Batista completa, assim, seu testemunho reafirmando seu olhar contemplativo sobre Jesus. Contemplar é mais que ver, é observar com atenção, interesse e profundidade. E acrescenta que “viu” o Espírito que estava com Ele. E essa contemplação lhe abre os olhos e descobre, na pessoa do nazareno, o Messias do Senhor, o esperado dos profetas. Desvela a origem divina de Jesus, quando percebe que n’Ele está o Espírito. O Filho de Deus é quem batizará com Espírito Santo e fogo.
A humanidade de Jesus está inundada do Espírito; é a humanidade do Filho de Deus possuída pelo Espírito, guiada pelo Espírito. Jesus é, por excelência, o homem nascido do Espírito e se deixa conduzir pelo Espírito do Pai, vivendo intensamente o seu tempo presente. “Tempo carregado” da presença do Espírito; por isso, tempo criativo, inspirador...
“Deus armou sua tenda entre nós” e seu Espírito está nas entranhas de nossas vidas e nas entranhas mesmas da história da humanidade. Assim, os cristãos se deixam transformar internamente pelo Espírito de Jesus.
Esquecer isto é mortal para a Igreja. O movimento de Jesus não se sustenta com doutrinas, normas ou ritos vividos exteriormente. É o mesmo Jesus quem há de “batizar” ou “empapar” os seus seguidores com seu Espírito. E é este Espírito que há de animá-los, impulsioná-los e transformá-los. Sem este “batismo do Espírito” não há cristianismo.
Não podemos esquecer isto: a fé que há na Igreja não está nos documentos do magistério nem nos livros dos teólogos. A única fé real é a que o Espírito de Jesus desperta nos corações e nas mentes de seus seguidores. Esses cristãos simples e honestos, de intuição evangélica e coração compassivo, são aqueles que de verdade prolongam o modo de ser e viver de Jesus e abrem espaço à ação de seu Espírito no mundo. Eles são o melhor que temos na Igreja.
Infelizmente, há muitos outros que não conhecem por experiência essa força do Espírito de Jesus. Vivem uma “religião de segunda mão”. Não conhecem nem amam a Jesus; não O seguem porque não se identificam com Ele. Contentam-se com algumas práticas piedosas, alienadas, autocentradas.
Simplesmente creem no que os outros dizem e não experimentam em seu coração nada do que viveu Jesus.
O que os cristãos hoje precisam não são catecismos que definam corretamente a doutrina cristã nem exortações que apresentem com rigor as normais morais. Só isso não transforma as pessoas. Há algo prévio e mais decisivo: narrar nas comunidades a pessoa de Jesus, ajudar a que as pessoas entrem em contato direto com o Evangelho, ensinar a conhecer e amar a Jesus, aprender juntos a viver com seu estilo de vida e seu Espírito.
João Batista aponta para uma pessoa: “este é o Filho de Deus”. Ele não aponta para uma religião, para uma doutrina, para um código de normas e leis.
Recuperar o “batismo do Espírito” é a primeira missão da comunidade dos seguidores de Jesus.
Texto bíblico: Jo 1,29-34
Na oração: Com Jesus chega um “novo tempo”, um tempo decisivo para a história da humanidade.
Deixar o Espírito “pousar sobre nós” é dispor-nos a algo grande. A missão que Ele nos anima a viver é alucinante, imenso, fora do nosso tempo rotineiro. É Ele que nos faz mais lúcidos, mais sensíveis, muito mais corajosos para descobrir a profundidade e a riqueza de tudo o que acontece ao nosso redor e dentro de nós.
Somos feitos disso: desejo, busca, esperança... No mais profundo de cada um há uma carência que nos faz clamar: “Vinde Espírito Santo!”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.01.22
“E a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até parar sobre o lugar onde estava o menino” (Mt 2,9)
Mateus começa e termina seu evangelho dando a Jesus o título de “rei dos judeus”. Trata-se de um “rei” que nasce e morre rompendo todos os esquemas das realezas mundanas: nasce em uma gruta que acolhia animais e morre numa cruz.
Em seu nascimento, os Magos vão em busca do “rei dos judeus”. Se estamos falando de um rei, compreen-de-se que os magos o buscaram na cidade dos grandes palácios, ou seja, em Jerusalém. Equivocaram-se de caminho e de lugar, porque o “rei” que tinha nascido era tão diferente e tão novo que só podia nascer entre os pobres. O evangelista Mateus não se refere a nenhuma realeza que não seja a de Jesus. Foram as tradições populares posteriores que, usando muita imaginação, consideraram os Magos como reis. O evangelista só reconhece um rei, que é Jesus. Por isso os magos se prostam diante dele e o adoram.
Estamos celebrando a Epifania, quer dizer “manifestação”. Se o Senhor não se manifestasse, sua Encarna-ção não teria chegado à toda a humanidade. Pois bem, a manifestação de Deus em Jesus tem um alcance universal, está destinada a todos os seres humanos.
É interessante que a tradição tenha interpretado que os três magos procediam dos três continentes até então conhecidos: África, Ásia e Europa. O mago negro aparece sempre. No Reino de Jesus Cristo não há distinção de raça ou de origem, não há diferenças nacionais, nem sociais, nem religiosas. Todos são filhos e filhas do mesmo Pai. Jesus Cristo une todos os povos e todas as pessoas, sem perder a riqueza de sua diversidade.
Os Magos são aqueles que vieram dos confins da terra ao encontro do Menino, os estranhos ao povo judeu, os que não eram da raça do recém-nascido, os afastados. Também para eles nasceu o filho de Maria. E também a eles deve chegar a boa notícia do Evangelho.
O Evangelho é para todos os seres humanos porque, mesmo sem saber, todos buscam a Cristo, já que Ele é o “princípio e modelo dessa humanidade renovada à qual todos aspiram, cheia de amor fraterno, de sinceridade e de paz” (Vat. II). A partir desta perspectiva, os Magos representam a humanidade em busca de paz, verdade e justiça. Representam o desejo profundo do espírito humano, a marcha das religiões, da ciência e da razão humana ao encontro d’Aquele que se “humanizou” plenamente. Há sempre uma “estrela” na vida de todos indicando o caminho para a gruta da simplicidade e do despojamento, “lugar” onde se faz visível o “novo rebento” da vida.
Talvez a presença da “estrela” no relato dos Magos tenha suas raízes na bonita tradição judaica que diz: quando uma criança nasce, “acende-se” uma estrela no céu. Por isso no céu há tantas estrelas. Quando nasce uma criança, acende-se uma luz, um mundo de possibilidades se abre, um universo pessoal se faz visível no espaço da comunidade humana.
A estrela, porém, moveu os Magos a que deixassem de olhar para ela, mas que olhassem antes para o lugar, na Terra, que a sua luz iluminava. Ali havia uma presença surpreendente que dava sentido a todos os peregrinos desta terra.
Cristo como “estrela”, é guia dos homens e mulheres, e por isso “desce” à terra. De fato, a estrela se deteve no presépio, onde estava Jesus. A estrela, portanto, é Jesus presente no cosmos; logo, o cosmos fala implicitamente de Cristo, embora sua linguagem não seja totalmente decifrável para o ser humano.
A Criação inteira desperta no interior de todos uma sintonia com Aquele que, a partir da gruta, abre seus braços para a todos acolher. Suscita também a expectativa, mais ainda, a esperança de que um dia este Deus se manifestará plenamente. A partir de então, as verdadeiras “estrelas” serão as pessoas que mostrarão o novo caminho para o Deus encarnado.
Para a Igreja do Oriente hoje é o dia da Natividade, o dia que Jesus se manifestou como a Luz do mundo, o dia que Deus elegeu para manifestar-se a todos os homens através da pequenez do filho de Maria.
Como os Magos, esta cena nos convida a também “cair de joelhos”. E por que fazer isso? Porque quando aqueles Magos se levantaram já não eram os mesmos.
Ajoelhar-se pode parecer um gesto servil, mas em ocasiões como esta é um gesto de humildade. Implica descer do pódio do ego ao qual subimos constantemente, acreditando ser os melhores, os mais sábios, os mais formosos, os mais perfeitos. De joelhos pedimos compaixão, ajuda, clemência, compreensão, misericórdia. E levantar-nos é poder de novo estar de pé, tendo passado pela experiência da pequenez.
Além disso, pôr-se de joelhos diante daquele Menino de Belém é abrir passagem à ternura, à grandeza que não está em saber mais, nem ser mais forte, mas em ser mais humano, e por isso, profundamente imagem de Deus. E ajoelhar-se diante daquele menino é deixar-se deslumbrar, despertar o assombro e o encanto.
Quando entregamos a luz a alguém, parece que tudo em sua vida se torna mais luminoso, e essa luz se expandirá. Quando alguém recebe sol revela um aspecto mais vital, mais saudável...; é a isso que nos convida a celebração da Epifania.
Como Igreja e como cristãos temos de repensar muitas coisas, mas não a partir do poder (Herodes e Jerusalém), mas a partir da Luz. A revelação, a estrela, estão no fluxo da história da Igreja e da humanidade; precisamos ativar nossa essa luz para que ilumine cada situação humana e eclesial. É preciso despertar os “magos” que nos habitam para sairmos de nossa “normalidade doentia”, de nossos lugares atrofiados, de nossas visões estreitas... Somos seres de travessia; quem não se desloca apaga a estrela que o habita.
Esta festa nos convida a descobrir a epifania não só em nós, mas em tudo e em todos; ela nos inspira a respeitar e acolher quem pensa, sente e ama de maneira diferente. Esta festa também nos instiga a viver a cultura do encontro frente à cultura da indiferença e intolerância que geram tantas rupturas.
Os Magos são sinal da grande missão cristã, ou seja, da missão do evangelho que se abre como dom a todos os povos e culturas da terra, não para conquistar ninguém, nem para fazer proselitismo, nem para destruir outras culturas, mas para oferecer a todos os povos uma experiência de gratuidade.
Em um mundo de pobreza e exclusão, marcado por tanto ódio e intolerância, somos portadores da riqueza de Deus, do amor feito presente... Só podemos encontrar nossa verdade em Jesus quando entramos na Gruta de Belém, onde encontramos Aquele que não foi recebido na cidade, mas entre estrangeiros e margi-nalizados; só O encontraremos quando nos aproximarmos das vítimas de Herodes, de ontem e de hoje.
Uma Epifania política, uma Epifania religiosa, uma Epifania social... No centro do relato dos magos está a oposição do Rei Mau (Herodes) que mata os meninos e todos os inocentes para poder reinar e os milhares e milhões de “magos e magas” que, apesar de tudo (apesar de Herodes) continuam buscando a verdade de Deus nas crianças marginalizadas e nos perseguidos. Por isso os Magos são reis e rainhas de um modo diferente: pela realeza do coração, pelo mistério da vida (a luz na noite), pela peregrinação para a verdade que eles encontram em Belém.
Texto bíblico: Mt 2,1-12
Na oração: a mensagem do Evangelho dos Magos é um mapa que nos mostra o terreno onde pisar na busca, encontro e manifes-tação do “Emmanuel”, Deus conosco. E, em versão do séc. XXI: “Deus em nós”.
Ele é a Luz que brilha em nossa gruta interior.
E então seremos lamparinas acesas e colocadas no candeeiro para iluminar àqueles que nos rodeiam.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
05.06.22
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