2.5
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas
Manoel de Barros
(Os deslimites da Palavras)
"Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil.
Criar pombos sem pensar em comê-los,
plantar roseiras sem pensar em colher rosas,
escrever sem pensar em publicar,
fazer coisas assim sem esperar nada em troca.
A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta,
mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas."
(Lygia Fagundes Telles, trecho do livro 'Ciranda de pedra')
"Considero isto a maior tarefa
numa relação entre duas pessoas:
que uma vigie a solidão da outra.
Pois, se a essência
tanto da indiferença
quanto da multidão,
consiste em não reconhecer
solidão alguma,
o amor e a amizade
existem para propiciar continuamente
oportunidades para solidão.
E são verdadeiras
apenas as comunhões
que ritmicamente
interrompem
estados profundos de solidão..."
Rilke
Então, em maio, um Anjo incendiou-me.
Em seu olhar azul havia um dia
claro como os da infância. E a alegria
entrou em mim e em sua luz tomou-me
o coração. Depois, suave, guiou-me
para mim mesmo, para o que morria,
em meu peito, de olvido. E a noite, fria,
fez-se cálida – e a mágoa desertou-me.
Já não eram as cinzas sobre o Nada,
mas rios, e ventos, e árvores, e flamas,
e montes, e horizontes sem ter fim!
Era a vida de volta, resgatada
e nova, e para sempre, pelas chamas
Desse Anjo de maio que arde em mim!
Ruy Espinheira Filho
Em maio a tarde não arde
em maio a tarde não dura
em maio a tarde fulgura.
Adélia Prado
In: Oráculos de Maio, Editora Saraiva, 1999.
NO MAIS, POESIA!
Quereis saber
como eu me faço
ou de mim como eu me quero?
é fácil:
cultivo em mim os meus contrários
e a síntese dos termos cultivo
Sabendo que o canto é quando
E a palavra é onde,
e que ela o ultrapassa
mais o que o complementa.
E certo que o homem
embora sinta e pense,
cante e fale,
seus conflitos nunca vence,
é que eu, tranquilo, me exponho,
em fala me traduzo,
em canto me componho:
pois um homem somente se organiza
e completo se apresenta
quando seus contrários se acrescenta.
Afonso Romano de Sant'anna
Aprendo com abelhas do que com aeroplanos.
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
É um olhar para o ser menor, para o
insignificante que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado como uma
barata – cresce de importância para o meu olho.
Ainda não aprendi por que herdei esse olhar
para baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades
machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão –
Antes que das coisas celestiais.
Pessoas pertencidas de abandono me comovem:
tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.
MANOEL DE BARROS
em Retrato do Artista Quando Coisa, Ed. Record, 1998.
INICIAÇÃO
Se vens a uma terra estranha
curva-te
se este lugar é esquisito
curva-te
se o dia é todo estranheza
submete-te
- és infinitamente mais estranho.
Fontela, Orides. Trevo.
São Paulo: Duas Cidades, 1988.
Acorda bem cedo o homem
da casa de telha vã
e abre janela e porta
como se abrisse a manhã.
E eis que a vida não é mais
nem triste, nem só, nem vã.
É doce: cheira a goiaba
e brilha como romã
orvalhada. E ele caminha,
o homem, com passos de lã
para em nada perturbar
a quietude da manhã.
Já não há mágoas de perdas
nem angústias de amanhã,
pois a alma que há na calma
entre a goiaba e a romã
é a própria alma do homem
da casa de telha vã,
que declara a noite morta
e acende em si a manhã.
Ruy Espinheira Filho
"Deus mastiga com dor a nossa carne dura,
Mas nem por chorar estamos abandonados.
A água do regador alçado sobre as couves
alvoroça os insetos.
A larva na hortaliça nos distrai.
Não inventamos nada.
O ponto de cruz é iluminação do Espírito;
o rei, a dama, o valete, são sérios farandoleiros.
Se nos mastiga com dor,
é por amor que nos come.
Vamos rezar as matinas".
Adélia Prado
In: Coração Disparado, Editora Record.
“Apenas sei que caminho
Como quem é olhado, amado e conhecido.
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco”.
Sophia de Mello B. Andresen
(poeta portuguesa)
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender.
Fernando Pessoa
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Fernando Pessoa
O Paraíso é tão longe
Quanto o quarto mais perto
Se nesse quarto se aguarda
Felicidade ou deserto
Forte é o coração
Que suporta
O estalido
De um passo na porta.
(Emily Dickinson, Um Livro de Horas. Tradução de Ângela Lago)
por arrancar nossos olhos
da pedra.
Bendita a sede
por ensinar-nos a pureza
da água.
Bendita a sede
por congregar-nos em torno
da fonte.
Orides Fontela
Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos que a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”. E o monge se calou descabelado.
Manoel de Barros
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles
Pior que o cão é sua fúria,
Pior que o gato é sua garra,
Pior que a sanha de ferir
a que se enconde
sob feição de amor.
Pior que a vida é a não-vida
Do que se faz espectador;
nem mergulha, nem nada, nem conhece
o mar fundo:
está sempre à beira da estrada.
Marly de Oliveira
Do interior, quero
um vestido semeado de flores
a repetir em seus botões de vidro,
em suave reticência:
o musgo do beco
a luz pungente do meio-dia,
a praça,
a poesia de um cemitério pequeno...
Quero do meu interior
o caminho sombrio das entranhas
e seus quentes humores...
Do interior do interior
quero
a intensidade do fogo,
o sangue,
e deles
a coragem para os abismos.
Elizabeth Gontijo
in: De um segredo.
Um rio jorra entre o porão e o sótão:
leva dores e amores, e nosso último riso
há tanto tempo.
Mas numa curva qualquer, porque de novo amamos,
tudo pulsa e brilha de ousadia,
sabendo que temos pela frente
esse calor, esse rumor de águas na areia.
Passa no meio de nós, entre o sonho do sótão
e o medo dos porões, o rio da vida:
que me leve para ti ainda uma vez e muitas,
que venhas até mim antes daquela curva
com a audácia e o fervor que tínhamos perdido.
Lya Luft
In: Secreta Mirada. São Paulo: Mandarim, 1997.
“Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”.
Clarice Lispector
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